Coletivo DAR, março de 2010
Nesta segunda-feira, o dia 8 de março completa cem anos de celebração do Dia Internacional da Mulher, dia de luta por uma sociedade livre das opressões de gênero. Como explica a socióloga Maria Lygia Quartim de Moraes, em sua tese de livre-docência 20 anos de feminismo, “O feminismo, enquanto conjunto de valores e representações sobre a mulher, é uma ideologia contemporânea que animou com bandeiras de luta e plataformas polÃticas uma fração importante do movimento popular†e parte de duas premissas consensuais: “(1) as mulheres, além de sofrerem outras formas de exploração, são oprimidas enquanto tais, isto é, enquanto representantes do sexo feminino; (2) a opressão da mulher antecede o capitalismo e persiste no socialismo, demonstrando uma especificidade que só poderá ser superada através da militância das mulheresâ€.
Como militantes do movimento anti-proibicionista, que busca alternativas à atual polÃtica de guerra à s drogas – responsável pela inaceitável intromissão do Estado na esfera privada dos cidadãos e instrumento de corrupção, violência e criminalização da pobreza – vemos na luta das mulheres por liberdade muitos pontos de confluência, o que levanta cada vez mais a necessidade de articulação entre os diferentes setores que atuam no combate à s opressões especÃficas. As lutas das mulheres por direito ao próprio corpo, pelo fim da hipocrisia que separa público do privado, pela não hierarquização das lutas e contra a militarização e a criminalização da pobreza são irmãs da bandeira do anti-proibicionismo das drogas. Assim como questionar a arbitrária ilicitude de algumas drogas é tarefa não só dos usuários destas substâncias, as bandeiras levantadas pelas feministas devem ser empunhadas por todos que buscam uma sociedade mais justa e igualitária.
Feminismo e anti-proibicionismo são lutas polÃticas contra um status quo sustentado por interesses econômicos e valores morais milenares que, infelizmente, ainda balizam nossa estrutura social para muito além do que se pode ver na aparência. E são esses interesses e valores um importante pilar de sustentação das desigualdades que oprimem pobres, mulheres, homossexuais, negros, imigrantes e indÃgenas. Todo comportamento que destoa da ideologia dominante é tachado a priori como ameaçador ao sistema, mesmo que este depois apresente ferramentas de incorporá-lo.
Direito ao próprio corpo
Uma das principais pautas do movimento de mulheres hoje é a defesa da legalização do aborto, cuja ilicitude acarreta em milhares e milhares de mortes de mulheres pobres, que realizam seus abortos em clÃnicas clandestinas com péssimas condições. Assim como a demanda por drogas ilÃcitas não diminui com a proibição, a realização de abortos não é inibida pela inexistência de polÃticas de saúde públicas que o prevejam de forma segura e consequente. E, assim como no caso da proibição das drogas, é um setor muito especÃfico da sociedade o que sofre as consequenciais dessa proibição: os pobres. Se o usuário de drogas que tem dinheiro não tem problemas em obter essas substâncias por enquanto ilÃcitas e nem é reprimido pela polÃcia, a mulher de classe alta também não encontra o menor obstáculo para realizar um aborto seguro em clÃnicas clandestinas de qualidade.
A ilegalidade do aborto é incompatÃvel com um Estado laico, e com uma sociedade que preveja a diversidade como baliza para relações igualitárias. Da mesma forma como a proibição das drogas, a proibição do aborto viola a intimidade e a vida privada dos cidadãos, e representa invasão do Estado sobre a auto-determinação de cada pessoa. E da mesma maneira como defender a legalização das drogas não significa defender o uso de drogas necessariamente, a bandeira do aborto legal não é uma defesa apologética de uma prática que não é simples e livre de consequenciais perigosas – no entanto, em ambos os casos, o status jurÃdico não pode impedir decisões individuais que não tragam prejuÃzos a terceiros.
Não por coincidência, os setores mais ativos no combate à legalização das drogas e do aborto são os representantes do que há de mais nefasto na ideologia conservadora e religiosa que sustenta o Poder com P maiúsculo.
Não hierarquização das lutas
Tradicionalmente, dentro dos setores combativos existe um antagonismo entre os que defendem uma relação de horizontalidade entre as diferentes formas de luta – como a sindical, a estudantil, a feminista, a do movimento gay, etc – e grupos dogmáticos que defendem a centralidade da luta polÃtica “revolucionáriaâ€, que deveria submeter todas as outras, colocando-as em segundo plano. Algo como “primeiro tomamos o poder, depois resolvemos esses problemas menoresâ€.
Exemplo claro está no diálogo entre a alemã Clara Zétkin, precursora feminista que propôs a criação do 8 de março, e o bolchevique Lênin, que defendeu em 1920 que a prioridade na atuação de sua companheira alemã deveria ser “a revoluçãoâ€, não o debate sobre as condições de vida das mulheres (coincidentemente a imensa maiorias das lideranças da Revolução de Outubro era composta por homens, mesmo que entre a “base†dos lutadores houvesse milhares de mulheres). “Seria agora o momento de incentivar as proletárias com discussões de como se ama ou é amada, como se casam ou estão casadas?†questionou Lênin. “Agora todos os pensamentos das companheiras, das mulheres da classe trabalhadora, precisa ser direcionada para a revolução proletária. Isso criará as bases de uma renovação real no casamento e nas relações sexuais. No momento outros problemas são mais urgentes que as formas de casamento de Maoris ou incesto dos tempos antigos. A questão dos sovietes ainda está na agenda do proletariado alemãoâ€.
Seriam essas questões excludentes? É mais importante a tomada do poder ou a mudança nos valores cotidianos que oprimem inclusive as mulheres dos revolucionários bolcheviques? Não é possÃvel uma luta que congregue mudanças macro-econômicas e polÃticas com a transformação da mente e das concepções cujas raÃzes remontam à própria constituição da famÃlia e da sociabiliadde humana?
No caso da demanda por alternativas ao proibicionismo, é comum ouvirmos que essa é uma pauta importante mas “não prioritáriaâ€. Mesmo os que não assumem essa hierarquização, fazem como fazem com as bandeiras das feministas dentro de parte das organizações de esquerda: resoluções que não saem do papel. Defendemos o aborto ou lutamos contra a guerra à s drogas em nossas resoluções, jornais ou até posicionamentos públicos, mas nossa atuação se concentra na disputa do poder (invariavelmente identificada com a disputa do Estado).
Sem falar no moralismo entranhado na prática mesmo dos que supostamente combatem a ordem dominante mas que reproduzem em seu cotidiano pessoal e polÃtico distorções e preconceitos contra os quais deveriam lutar.
É a separação entre público e privado, também combatida pelas feministas.
Como explica Maria Lygia, “a instituição da famÃlia monogâmica, com o advento da sociedade de classes, reduz a produção doméstica a um serviço privado, feito por cada mulher, no interior de cada unidade familiar. A partir de então a vida social cinde-se em duas esferas: a pública, domÃnio dos homens, que sofrerá grandes transformações no decorrer da História e a esfera privada, lugar da famÃlia, domÃnio da mulher, que se vê, pois, excluÃda de qualquer participação social que ultrapasse os limites do seu “larâ€â€.
A luta polÃtica restringe-se a transformação da esfera pública, na privada reproduz-se a opressão e a desigualdade. No caso da relação com o uso de drogas, se observa o mesmo comportamento: combatemos os preconceitos, as desigualdades, o senso-comum, mas apenas na esfera pública, em nossa vida pessoal reproduzimos a mesma moral de ascetismo e disciplina que pregam as igrejas e os setores mais conservadores (pensemos na explicação de Weber sobre a relação entre a ética protestante e a moral capitalista – não seria essa pregação ao “sacrifÃcio militante†análoga à louvação do trabalho como salvação?). Experimentações sexuais e sensorais só fazem atrapalhar a “moral bolchevique†(nos termos de Nahuel Moreno) necessária à prática polÃtica e à transformação social, esquecendo-se que também as transformações micro-polÃticas são passos para a formação de uma nova consciência. “Ainda somos os mesmos e vivemos como nossos pais 
Combate à militarização e à criminalização da pobreza
Um dos quatro eixos de ação da Marcha Mundial das Mulheres para 2010 é “Paz e Desmilitarizaçãoâ€. “No Brasil, lutamos contra a criminalização da pobreza e dos movimentos sociais e contra o processo crescente de militarização da sociedade, que se manifesta por meio de atitudes repressivas e violentas do Estado, como os inúmeros assassinatos cometidos pelas polÃcias, ou na crença de que as armas são capazes de resolver a questão da segurança pública. Denunciamos como essas ações atingem, sobretudo os negros e negrasâ€, diz a Marcha.
A relação é evidente entre essa bandeira e a necessidade do combate à guerra às drogas, instrumento dessas atitudes repressivas e violentas do Estado. Crimes relacionados às drogas são responsáveis pelo encarceramento de cerca de 75 mil pessoas no Brasil, e no caso das mulheres são a principal justificativa para aprisionamento, o que se repete no mundo todo. Cresce cada vez mais o número de mulheres presas pelo pequeno comércio de drogas, obviamente pobres e na maioria das vezes negras.
Aproveitemos o 8 de março para levantar ainda mais alto a bandeira dos direitos das mulheres. Aproveitemos o momento também para refletir sobre a necessidade da integração entre as lutas e as formulações dos diversos movimentos de combate à s opressões. No caso especÃfico entre a relação entre feminismo e anti-proibicionismo, ressaltamos a necessidade tanto da preocupação feminista dentro de nossa militância anti-proibicionista quanto a também impostergável necessidade de reflexão anti-proibicionista dentro da atuação feminista. Esperamos contribuir para a construção deste processo.