Júlio – Coletivo DAR
São Paulo é uma cidade estranha. Metade do tempo se está no trânsito, na outra reclamando dele. Eu estava na primeira, no busão de três reais do Kassab. Sexta feira, meio dia. Do meu lado, um molequinho de uns dez anos, doze no máximo. Magrelo, cabelo desarrumado, pulseirinha. Pés no encosto de cabeça do banco da frente, uniforme branco e azul de colégio de classe média com nome de santa (mas não dos famosos). Quando sento ele já está no celular, e fica um bom tempo. Eu só vejo ele falando mas não ouço, porque estou de fone. No intervalo de duas músicas escuto ele falando: “Não, véi, não vai dar pra eu ir, depois como volto pra casa? Não posso voltar brisado pra casaâ€.
Opa, opa, Laranjeira! Sinal Laranja!
“Não posso voltar pra casa brisadoâ€, disse o pivete de dez anos. COMO uma criança de dez anos está combinando um rolê de sexta à noite com presença de “entorpecentesâ€? COMO se ele é um menino “educadoâ€, de classe média, com celular dado pela mamãe, e não um favelado como poderiam já acusar os bolsonários reacionaros da vida? COMO? Depois de trilhões de dólares gastos na repressão made in USA? Depois de milhões de pessoas detidas, tantas leis, palestras, campanhas, surras, missas e cultos? Depois de cem anos dessa estratégia obscurantista ainda é fácil assim pra um menino de dez anos conseguir “fumar drogasâ€?
Hmmm. Tem alguma coisa errada aà então.
Sim, um DEMóstenes qualquer, e infelizmente há muitos por aà só esperando para sacar seus dedos em riste, poderia fingir que acredita que a culpa é dos usuários, mas quem acredita nisso além do secre-otário Beltrame? E quem ainda acredita no Beltrame, a propósito?
Bom, em primeiro lugar a proibição falhou no seu objetivo principal: a extinção das drogas ilÃcitas, consequentemente de seus usários. Sim, o objetivo declarado sempre foi extinguir as substâncias, não importando quantas pessoas queiram que elas existam – e exatamente por isso, por elas seguirem querendo isso, é que elas seguem usando drogas tanto quanto lhes dá na cabeça, inclusive as que ainda não tem a idade ideal para isso. Isso qualquer pesquisa séria comprova – a do CEBRID de 2005 por exemplo diz que quase 25% dos brasileiros adultos já as experimentou alguma substância ilÃcita, mesmo com a proibição.
Além disso, é o usuário que optou pela proibição? Ele que faz questão de não pagar impostos assim como um motorista faz aceitando que o risco de dirigir implica num imposto para seu seguro? É o usuário que opta por uma substância desregulamentada, de baixa qualidade e de alto preço? É ele que escolhe dar seu dinheiro para organizações violentas, que penetram profundamente todo o aparelho estatal? É o usuário que ordena à polÃcia uma repressão seletiva de traficantes e usuários? É ele que prefere não falar sobre o assunto com crianças e jovens ou falar de forma mentirosa e desinformante?
Eu acho difÃcil que alguém ainda compre esse discursinho Tropa de Elite osso duro de roer. Se compra, nunca parou pra pensar nele quando compra sua cerveja ou seu cigarro – eles geram violência? Tráfico? Corrupção massiva? A regulamentação destas substâncias não é apontada como a melhor saÃda para reduzir os possÃveis danos de seus usos?
E pergunto mais: alguém acha que a estratégia está dando certo? Tantas milhares (quem sabe milhões) de vidas perdidas na violência do crime e do Estado, tantas famÃlias destruÃdas por essas mortes e pela violência das prisões, tantas mortes por overdoses involuntárias, corrupção e tudo mais certamente mostram que não está. Ok, existem os que estão ganhando com isso, mas certamente são poucos. E os outros, por que seguem referendando essa opção pela repressão, pela não educação, pela ingerência do Estado na vida privada, pelo não diálogo, pelo fechar os olhos e fingir que está tudo bem? Não tem alguma cosia errada numa sociedade em que é proibido escolher o que colocar em seu corpo e permitido (e muitas vezes louvado) o acesso à s armas?
Não é muito difÃcil imaginar a educação que esse menino do meu busão teve, seja na escola, na famÃlia ou na mÃdia. Ela só previa uma alternativa, o NÃO. Não experimente, não experimente, não experimente, é tudo que as campanhas dizem. Você vai morrer, não experimente. Ok, ele experimenta, e aÃ? Ele vê que não é bem assim, seus educadores perdem o crédito (felizmente!) e a sociedade não lhe apresenta outras fontes de informação e diálogo consistentes e consequentes. A possibilidade de um mau uso dessas substâncias aumenta consideravelmente, sem falar na baixa qualidade já mencionada.
Ah, mas se legalizar vai ser pior, o acesso vai ser facilitado, o consumo vai aumentar.
Ah é? Perguntem pro baixinho do meu busão se foi difÃcil o acesso à “brisaâ€, se ele liga se é proibido ou não. Do alto de seus dez anos, ele prova a fragilidade do proibicionismo, prova o quão distante dos jovens e da prevenção do mau uso este discurso está. E aqueles que deveriam oferecer pro menino a educação necessária, infelizmente nem sequer aprendem nada com isso.