Antonio Lancetti*
Esse processo de construção de nosso SUS da Saúde Mental chama-se reforma psiquiátrica pelo fato de que nas últimas décadas foram fechados vários locais de horror (em torno de 60 mil leitos), onde a simples permanência de alguns dias deixaria qualquer leitor pelo menos mais deprimido do que entrou.
O resgate de cada um desses seres humanos exigiu um enorme esforço por parte dos terapeutas. A suspensão dos procedimentos iatrogênicos, como sequestro, maus tratos, tempos e espaços fixos e repetitivos e outras formas de desrespeito aos direitos, não foi suficiente.
Houve necessidade de criar, utilizando todos os saberes existentes (psiquiatria, psicanálise, psicologia social, socioanálise, esquizoanálise, arte, economia solidária, etc.), instituições velozes, criativas que operam onde as pessoas habitam.
Os chamados CAPS – Centros de Atenção Psicossocial vão se constituindo em serviços de 24 horas de funcionamento, com internações, integrados a serviços de emergência e moradias terapêuticas onde moram oito pessoas que saÃram de internações de 10 ou 20 anos, mostram que o hospital psiquiátrico é cada vez mais prescindÃvel.
Além desses serviços, hoje se faz saúde mental nos mais recônditos locais por meio da parceria de equipes especializadas com médicos de famÃlia, enfermeiros e agentes comunitários de saúde, atendendo inclusive casos graves, ajudando na diminuição da internação psiquiátrica, da violência e do consumo de drogas legais e ilegais.
Mas o chamado Movimento da Luta Antimanicomial (que conta com usuários e familiares de usuários) está em uma encruzilhada. Aprendeu a cuidar de casos graves desconstruindo manicômios e atendendo as crises nos bairros, melhorando a reabilitação das pessoas com grave sofrimento psÃquico e agora, com o advento dos dependentes de crack, expostos na paisagem urbana e na mÃdia, devem enfrentar um clamor pelas internações em clÃnicas fechadas, primas-irmãs dos hospÃcios.
As cracolândias onde qualquer um é aceito são ao mesmo tempo manicômios a céu aberto, no dizer de Franco Rotelli, um dos principais lÃderes da Psiquiatria Democrática Italiana**.
Mas transformaremos esses manicômios criando outros manicômios?
As cracolândias são os manicômios pós-modernos, e os craqueiros os loucos do século XXI. E estão aÃ, nas regiões degradadas das cidades para mostrar nosso fracasso, nossa miséria existencial consumista. O modo como vamos enfrentar a questão expressará nossa sabedoria e ética.
O artigo de Drauzio Varella, da Folha de S.Paulo de 16 de julho, convoca a internação compulsória dos craqueiros e craqueiras e termina perguntando: “Se fosse seu filho, você o deixaria de cobertorzinho nas costas dormindo na sarjeta?”.
Essa pergunta sugere imediatamente a diferenciação de crianças e adultos. Mesmo com famÃlias que não se importem com o cobertorzinho nas costas, interná-los à força implica a existência de um vÃnculo que se aproxime ao de pai e mãe. Gerará ódio, ressentimento e futuras rebeliões se forem brutalmente recolhidos e amontoados em grande número ou com metodologias negativas e baseadas exclusivamente na abstinência.
Em segundo lugar, o que o doutor Drauzio talvez não saiba (e acredito que gostaria de saber) é que muitos desses homens, mulheres e crianças estão com graves problemas de saúde e já estão sendo internados em São Paulo (embora o sistema precise ser aperfeiçoado), em hospitais gerais e atendidos em Unidades Básicas de Saúde por equipes de Saúde da FamÃlia, pois eles não pedem para ser tratados da dependência, mas demandam atendimentos clÃnicos e, como consequência do vÃnculo com seus cuidadores, muitos pedem ajuda para abandonar o uso.
Internar ou prender todos os craqueiros é tão ideológico como pensar que eles vão sair daà pela própria vontade. Ou dito de outra forma, o problema não é internar – que na prática funciona como uma redução de danos -, mas sim como internar e, principalmente, onde e com que perspectivas.
E o que faremos com instituições fechadas que já estão sendo criadas pelo Brasil afora, especialmente as denominadas comunidades terapêuticas? Como se sabe, as instituições de contenção fundamentadas na abstinência possuem uma tendência à cronificação e algumas usam recursos violentos ou não se adequam às regras sanitárias vigentes.
As instituições que cuidam de crianças e adolescentes usuários de drogas não podem ser de contenção, mas de aceleração e criatividade. Em São Bernardo, por exemplo, há Centros de Atenção 24 horas para adolescentes dependentes de drogas, moradias fundamentadas em propostas pedagógicas de ação: meninos e meninas têm atividades o dia inteiro e à noite sessões de cinema. Em Vitória, EspÃrito Santo, o atendimento é feito a partir das equipes de Saúde da FamÃlia associadas ao CAPS Ãlcool e Drogas ou pelo consultório de rua… E há muitos trabalhos interessantes sendo realizados no Brasil.
Nessa hora de desespero, devemos tomar cuidado com os fenômenos que costumo chamar contrafissura ou tentação de cair no erro da guerra à s drogas infiltrado na clÃnica e no alarmismo infundido na população.
A intervenção nas cracolândias exige ação e calma. Por enquanto no Brasil, a única pesquisa que demonstrou ter êxito significativo, em torno de 70%, foi a realizada pela UNIFESP – “O uso de cannabis por dependentes de crack – um exemplo de redução de danos”, Eliseu Labigaline Jr. in Consumo de Drogas Desafios de Perspectivas, de Fábio Mesquita e Sergio Seibel, Ed. Hucitec, 2000 -, livro que leva apresentação de Drauzio Varella. A pesquisa constata mudança de comportamento, como parar de roubar a famÃlia, voltar a estudar, trabalhar e, inclusive, parar de usar maconha.
Mas nenhuma estratégia parece ser aplicável como receita única. Calma não significa paralisia, mas enfrentar o problema em sua complexidade de modo a não interromper o processo vitorioso e eficaz da reforma
psiquiátrica, mas aprofundá-lo.
Os riscos são muitos e, por isso, é sempre bom lembrar de que o problema das drogas está longe de depender exclusivamente da saúde. O termômetro que avaliará o valor e a ética do processo será a observância ou não dos diretos das pessoas assistidas e, consequentemente, a sua eficácia.
*Psicanalista, autor de ClÃnica Peripatética, Editora Hucitec.
**Acompanhei os doutores Franco Rotelli e Angelo Righetti em uma visita à cracolândia de São Paulo e a expressão me foi transmitida por Roberto Tykanori, coordenador nacional de saúde mental.