Diário Liberdade – O Diário Liberdade encontrou-se no Rio de Janeiro com Renato Cinco, voz do antiproibicionismo e ativo militante pela legalização da maconha.
Todo o material gráfico deste artigo é da autoria do Diário Liberdade, de livre reprodução de preferência citando fonte.
Formado em sociologia pela UFRJ e militante nos movimentos sociais brasileiros desde os 12 anos de idade, envolveu-se a partir de 2004 na luta antiproibicionista “prioritariamente”, nas suas próprias palavras. Participa no movimento pela legalização da maconha, mas defende a regulamentação do mercado de drogas “em geral”. Envolve-se ativamente na organização da Marcha da Maconha desde 2007.
Renato derruba preconceitos fornecendo informações sobre as drogas. Para ele, “é natural que exista um movimento de massas de consumidores de maconha que não aceitam mais ser tratados como criminosos”, dado que a maconha é “a droga ilegal mais consumida do mundo”. Por isso, a luta pela legalização deste produto é “tática” para Renato: “se a maconha for legalizada, isso vai servir de exemplo para o que deve ser feito em relação a outras drogas”.
Além de antiproibicionista, Renato Cinco concorreu nas listas do PSOL, partido no qual milita, nas passadas eleições gerais no Brasil, em 2010. Comenta-nos que o seu partido “não tem uma posição oficial a respeito da questão da legalização das drogas”.
Diário Liberdade – Por que deve ser legalizada a maconha e por que se deve regulamentar o mercado das drogas?
Renato Cinco – Em primeiro lugar, porque a proibição das drogas é um completo fracasso. Ela não consegue impedir a existência do mercado de drogas, e sim provoca a existência do mercado ilegal, desregulamentado e fora de controle, que serve para enriquecer as organizações criminosas no mundo inteiro. E além de não funcionar, a proibição provoca efeitos colaterais muito mais graves do que o uso das drogas. Provoca violência: a da disputa entre as quadrilhas pelo controle do mercado de drogas e a do Estado contra essas organizações. Também provoca corrupção: em nenhum lugar do mundo é possÃvel existir o tráfico de drogas sem envolver a corrupção das autoridades responsáveis por combatê-lo.
Enquanto militante socialista, eu também percebo que a proibição das drogas cumpre um papel para a reprodução do sistema capitalista, dado que hoje talvez este seja o principal instrumento de criminalização da pobreza em todo o mundo. Mesmo na Europa ou nos EUA, com a chegada do neoliberalismo a partir dos anos de 80 e 90, há sociólogos que analisam que ao mesmo tempo que há o desmonte do estado de bem-estar social, dos sistemas previdenciários, a precarização das relações de trabalho, etc. … ocorre um fortalecimento do caráter punitivo e penal do estado: encarceramentos, aumento da repressão… E um dos principais instrumentos para legitimar o endurecimento do estado contra as populações resistentes é precisamente a guerra à s drogas. Por exemplo, ela é hoje a principal fonte de encarceramentos nos EUA (50% dos 2,5 milhões de população presa do paÃs). No Brasil autoridades declararam que, pela primeira vez, nos últimos anos as prisões por tráfico de drogas superam aquelas por danos ao patrimônio.
A guerra as drogas é um instrumento de controle social muito interessante para a burguesia. Ela oferece um discurso que legitima a violência “doméstica” do estado contra os pobres e, ao mesmo tempo, também é um instrumento de geopolÃtica, legitimando determinadas perseguições e ações violentas no campo da polÃtica internacional. Você viu, por exemplo, os EUA ameaçando incluir a BolÃvia de Evo Morales entre os paÃses que não colaboram coa perseguição ao tráfico de drogas; ou a intervenção militar dos EUA na Colômbia para combater as FARC.
E além de fornecer um discurso que legitima a violência a proibição das drogas também cria uma armadilha para boa parte juventude pobre do mundo, que vê no tráfico de drogas uma alternativa de sobrevivência e até de atingir um estrato social, e acaba fazendo o que a burguesia quer que faça: servir de instrumento de opressão dentro das comunidades, através das organizações criminosas. Elas exercem um controle polÃtico. Se você quiser fazer manifestação pelos direitos humanos, ou pela moradia… elas reprimem! O tráfico proÃbe porque não quer confusão com a polÃcia, não quer que aconteça nada que possa atrapalhar o andamento dos negócios.
DL – Fala de repressão aos setores pobres da população. Tem, então, essa repressão à s drogas um componente de classe?
RC – No Brasil tem estudos que deixam muito claro o caráter de classe da repressão à s drogas, como o trabalho de mestrado da socióloga Professora Vera Malaguiti Batista, chamado “DifÃceis ganhos fáceis: drogas e juventude no Rio de Janeiro”, que analisa 20 anos (de 1968 a 1988) de processos da justiça na área de infância e juventude por uso de drogas, e ela identifica claramente que, quando oriundo de classes pobres, o jovem era condenado a internação até um máximo de três anos. Quando o jovem era rico, ele era encaminhado a tratamento médico sob supervisão da famÃlia. A lei nem previa essa pena, somente pena de prisão quer para usuários quer para traficantes, dado que a prisão para usuários apenas deixou de ser contemplada em 2006. E isso não dependia da gravidade da situação: ela identificou quadros de pessoas de comunidades condenados a internação com apenas um baseado; enquanto houve casos com carro, arma com numeração raspada e grande quantidade de cocaÃna, que foram encaminhados para tratamento médico.
Mais recentemente, o Delegado da PolÃcia Civil no Rio de Janeiro, Doutor Orlando Zaccone, publicou sua tese de mestrado chamada “Acionistas do Nada”, que traça o perfil do traficante encarcerado e todos são perfis das classes populares. Os crimes de drogas são cometidos por todas as classes. Os ricos, pobres e a classes médias consomem e traficam com drogas, mas a o aparelho repressivo está voltado à repressão do consumo dos pobres.
No dia 27 de maio deste ano foi publicada uma portaria da Secretaria Municipal de Assistência Social da Prefeitura do Rio de Janeiro que é o Protocolo de Serviço Especializado em Abordagem Social. Na verdade eles estabeleceram, a partir desse protocolo, o recolhimento compulsório de menores usuários de drogas. Provavelmente está acontecendo por conta das OlimpÃadas e da Copa do Mundo. Essa portaria é o indÃcio de que há qualquer classe de estado de exceção no Rio de Janeiro, porque ela contraria as leis. A legislação das drogas que eu acabei de citar, acabou com a prisão do usuário, e a prefeitura faz recolhimento compulsório dos menores. A Prefeitura não atende as demandas da população e a própria Secretaria Municipal de Assistência Social, que deveria responder as demandas sociais, ela está sendo utilizada como elemento de repressão e, o que é mais grave, nos locais onde estes jovens estão sendo internados em lugares não existe tratamento. É simplesmente um encarceramento ilegal.
[Renato Cinco fornece neste momento uma cópia do “Manifesto em defesa dos direitos humanos das crianças e adolescentes no Rio de Janeiro”, que critica precisamente esta portaria da que nos fala, focada na repressão das faixas populacionais mais pobres.]
DL – Podemos concluir que os efeitos negativos derivados do próprio consumo de drogas num contexto regularizado, seriam menores do que os efeitos da “cruzada” contra elas?
RC – Com certeza. Inclusive, a guerra contra as drogas não é eficaz em proteger a saúde do usuário. Você deixa de ter qualquer tipo de controle sobre o que está consumindo. Se o mercado é proibido, o Estado não pode regular, e ele acaba acontecendo sem norma nenhuma.
[Nota: A imagem que segue foi tomada pelo Diário Liberdade nos Arcos da Lapa, no Rio de Janeiro, numa concorrida zona da cidade. Corresponde a um caminhão da PolÃcia Militar com várias crianças no interior. O veÃculo estava estacionado no meio da rua, numa das áreas com maior trânsito de pessoas, claramente visÃvel apesar da presença dos menores de idade no seu interior. Quando o repórter do Diário Liberdade perguntou por que essas crianças estavam assim, encerradas e expostas, a resposta dos policiais foi: “Você não ouviu falar na TV da nova droga? Eles estavam consumindo! E roubam para consumir!]
DL – Então, o desregulamento pode constituir um problema de saúde pública…
RC – Claro, sim. Ao não poder regulamentar o mercado, acaba provocando, por exemplo, a comercialização de uma maconha de péssima qualidade, armazenada de maneira clandestina, apodrecendo e aparecendo uma série de microorganismos que não estariam caso esse mercado estivesse regulamentação sobre produção, embalagem, comercialização, etc. …
Ou o que é mais grave: a existência de crack, que é uma estratégia de venda de cocaÃna para os mais pobres, aproveitando o resto da produção da cocaÃna misturado com produtos mais baratos. Nos Estados Unidos na época da Lei Seca exisitia um álcool feito de gengibre, muito barato, que os contrabandistas misturavam com outros produtos para fingir que aquilo era uma especie de verniz, não uma bebida, e enganar as autoridades. Deixou mais de 100,000 americanos paralÃticos. Quando o mercado do álcool foi regulamentado desapareceu, porque não podia vender álcool com veneno.
Se o mercado da cocaÃna for regulamentado, teria dois grandes benefÃcios para a saúde da população. O primeiro, o final do crack, porque ao se regulamentar o mercado da cocaÃna não seria lucrativo. Imagine o caso de uma empresa que vende cocaÃna: ela vai correr o risco de comercializar o substrato da cocaÃna ilegalmente e perder a licença de funcionamento? Ou uma organização criminosa iria produzir cocaÃna para vender o seu substrato que é muito mais barato? Acho difÃcil! A regulamentação do mercado da cocaÃna acabaria com o mercado do crack. Uma outra vantagem seria a regulamentação do rótulo da cocaÃna. Se nele vier especificada a quantidade exata de cocaÃna que tem naquela embalagem, a gente praticamente acaba com a overdose, que fruto da ignorância sobre a quantidade de droga que está sendo utilizada. Hoje vai comprar cocaÃna lá no Morro da Mangueira e tem 20%. No dia seguinte o cara viu que a galega não está gostando e está preferindo comprar no Jacarezinho, e aà aumenta a 40% de cocaÃna. Se cheirar a mesma quantidade que cheirou na véspera, a galera está cheirando o dobro!
A guerra à s drogas prejudica a saúde, e isso sem falar evidentemente nos prejuÃzos à saúde por conta da violência. Milhares e milhares de pessoas são mortas por essa razão, mas ninguém morre por usar maconha, que não provoca overdose.
DL – E o que diz sobre os efeitos negativos que costumam ser atribuÃdos à maconha?
RC – A proibição não se justifica pelos efeitos da maconha, há uma questão polÃtica de repressão a grupos sociais. Hoje, os estudos mais recentes que eu conheço e que falam especificamente dos efeitos da maconha, como o livro escrito dois anos atrás “Maconha, cérebro e saúde” dos neurocientistas Renato Malcher-Lopes e Sidarta Ribeiro, identificam os principais efeitos negativos do seu consumo: sobre o aparelho respiratório, por causa da fumaça; sobre a memória de curto prazo,embora uns dias depois que passa o efeito da maconha ela volta à normalidade; e o risco de causar acidentes, de forma que não se pode usar maconha se você estiver usando equipamentos sensÃveis, cuidando de crianças…
E existe um outro dato muito interessante do que eles falam: há um sistema endocannabinoide. Tem no youtube um vÃdeo de um outro professor de neurociência da UFRJ chamado “O cérebro fabrica maconha”. Foi descoberto que o nosso cérebro tem as terminações de proteÃna aguardando os cannabinóides, princÃpios ativos da maconha. Uma das maiores mentiras é que a maconha destrói neurônio. Ela não destrói! Os neurôrios estão adaptados a receber os cannabinóides. Então ficou uma questão quando se descubriu isso: Deus preparou a humanidade para um dia fumar maconha?! Na verdade foi descoberto a partir dos anos 90 que o organismo de todos os vertebrados, e dos invertebrados, produz naturalmente os cannabinóides; chamados no caso de endocannabinóides, por serem produzidos internamente. Isso foi uma revolução no entendimento do funcionamento da maconha, deixando de ser uma coisa totalmente estranha ao nosso organismo e passando a ser um estimulo a uma determinada função que já existe.
A partir do entendimento do sistema endocannabinoide, é que é possÃvel entender o funcionamento da maconha. Por exemplo: se a maconha afeta a nossa memoria de curto prazo é porque uma das funções do nosso sistema endocannabinoide é nos dar a capacidade de descartar as informações de curto prazo, que é algo necessário para você não ficar maluco. Quando a gente fuma maconha amplifica esse efeito.
DL – Tendo em conta a existência de estudos que demonstram que os efeitos da maconha são menos nocivos do que aqueles derivados do consumo de álcool ou tabaco, por que se concentra a proibição sobre a maconha enquanto se permitem aqueles produtos?
RC – Pelo que eu estudei até o hoje, o Brasil teve um papel importante para que a maconha fosse proibida no mundo. Parece que a primeira lei proibindo o uso da maconha foi de Napoleão, porque as tropas francesas ficaram malucas fumando em massa com o haxixe do Egito, e ele fez uma norma proibindo o seu uso.
Em termos nacionais, a primeira lei proibindo maconha que a gente conhece é da cidade do Rio de Janeiro em 1830, e dá uma pista muito grande sobre as razões da proibição da maconha: ela era proibida aos escravos, à s que era proibida o “pito de pongo” (“pito” de fumar e “pongo” como a maconha era chamada na época). Depois no inÃcio do século XX, a gente identifica que a proibição está relacionada a uma estratégia de criminalização da cultura negra no Brasil (o samba, a capoeira, o condomblé, o umbanda… foram proibidos), e no caso dos Estados Unidos, dos mexicanos. O Brasil foi importante para incluir, internacionalmente, a maconha na lista das drogas proibidas. Os argumentos de alguns médicos brasileiros eram coisas muito “cientÃficas” como, por exemplo, que a prova de que a maconha faz mal para a saúde é que os negros são retardados por fumar maconha. “A maconha é a vingança dos negros contra a escravidão” – falavam eles também. Se toda vingança fosse assim!
DL – O café estava proibido no século XIX no Estado espanhol, o qual gerou tráfico entre Portugal (onde era legal) e a Galiza. O álcool é proibido em muitos paÃses árabes. Vemos que a proibição tem também caráter cultural, não é?
RC – Existe um conflito milenar entre a tradição judaica-cristã e tradição xamânica. Tem um professor de História da USP, chamado Henrique Carneiro, que escreveu, entre outros, um livro chamado “Amores e sonhos da flora” que analisa a relação entre as drogas e a sociedade do ponto de vista cultural há milênios. O que vou falar aqui não é responsabildade dele, mas sim minha: o que eu entendo da obra de Henrique Carneiro é que estaremos vivendo um terceiro momento desse conflito.
O primeiro momento seria no nascimento do judaÃsmo. Antes da “diáspora africana”, ou seja quando a humanidade ainda não tinha saÃdo do continente africano, se desenvolveram as primeiras formas de religiosidade. Elas estavam relacionadas à utilização de drogas alucinógenas (cogumelo ammanita, etc. …) para conseguir a experiência da transcendência. E tem, até, antropólogos que consideram que a religião surge do uso de alucinógenos, que é “inventada” para explicar os seus efeitos. O xamanismo seria, então, uma forma religiosa que com a diáspora africana se espalhou para todos os continentes, e hoje tem xamanismo em todos os lugares do planeta.
Quando surge o judaÃsmo ele nega o xamanismo e recusa a ideia do uso de drogas alucinógenas. Ele vai pelo caminho da oração e a meditação, estabelece normas morais… Esse conflito entre xamanismo e judaÃsmo já estaria representado no mito do fruto proibido. O “fruto proibido” seria o cogumelo ammanita, na opinião de alguns antropólogos.
O segundo momento desse embate entre xamanismo e judaÃsmo-cristianismo é na expansão do cristianismo do perÃodo dos descobrimentos, enquanto o Império Russo se expande na Ãsia Central. O Império Russo enfrentando o xamanismo na Ãsia Central (onde, precisamente, tem origem a palavra “xamã”) e Portugal e a Espanha enfrentando o xamanismo nas Américas. Henrique Carneiro chega a defender que uma das principais razões da Santa Inquisição seria impedir que a cultura indigena, e especialmente o xamanismo, “invadisse” a Europa.
Os ervários de antes do perÃodo dos descobrimentos na Europa eram traduções dos gregos. Depois houve uma atualização, com a comparação do que aparecia nos gregos e o que havia na Europa naquele perÃodo. Com a expansão do Império Russo e os descobrimentos na América, os ervários entram numa nova fase que é a incorporação dos conhecimentos da América e da Ãsia. Aà acontecem coisas absurdas: os ervarios europeus tratavam de 300 plantas, um Ãndio conhecia de cabeça 2,000. Isso foi uma revolução da Europa com as drogas, e nessa passagem a Igreja acaba interferindo na produção dos ervários e não colocando no Ãndex as drogas que eram consideradas afrodisÃacas, enquanto são estimuladas as drogas consideradas anafrodisÃacas. O café, o tabaco parece que eram consideradas drogas anafrodisÃacas.
DL – Você assegurou que a repressão ao consumo de drogas tem uma componente de classe. Então, faz diferença na repressão no âmbito social ao consumo de umas drogas (maconha, crack…) frente a outros produtos tipicamente mais caraterÃsticos das classes privilegiadas (cocaÃna, etc. …)?
RC – A nÃvel legislativo, aqui no Brasil não faz diferença. A repressão é à s drogas, não a uma ou a outra especificamente. É estabelecido o que são drogas através de uma portaria do Ministério de Saúde, que faz a lista das que estão submetidas e essa legislação de 2006. No âmbito social é bastante diferente.
DL – A respeito da maconha, chamam a atenção as posições de pessoas como Fernando Henrique Cardoso, favoráveis à legalização da maconha. Quais os interesses que pode haver por trás?
RC – Nos últimos anos ficou claro que não existe mais consenso entre as classes dominantes da América Latina sobre a manutenção da polÃtica de drogas. Isso foi demonstrado quando em 2008 o Fernando Henrique Cardoso, o ex-presidente do México Ernesto Zedillo e o ex-presidente da Colômbia César Gaviria criaram a Comissão Latino-americana Drogas e Democracia, com o objetivo de organizar atores das altas elites da América Latina para propor mudanças na polÃtica de drogas da ONU. Esse grupo apresentou um documento formal na última conferência das Nações Unidas que discutiu a polÃtica de drogas, em 2010, no que defendiam a legalização da maconha, a descriminalização do uso de todas as drogas e aumento da repressão ao tráfico de drogas. Então, existe uma dúvida sobre qual é a estratégia de FHC e desse setor dominante quanto à polÃtica de drogas.
Por um lado essa proposta que eles apresentaram não acaba com a guerra à s drogas, e talvez acabe salvando a guerra as drogas, porque legalizando a maconha e descriminalizando o uso de todas as drogas, podem conseguir o efeito de retirar da luta pela legalização amplos setores das classes médias que estão envolvidas na luta antiproibicionista, porque os problemas das classes médias ficam resolvidos. Mas o caráter de repressão social, de controle dos pobres, etc. … fica preservado, porque vai continuar existindo o mercado ilegal de cocaÃna, de heroÃna, de crack… e vai continuar exisitindo a repressão.
Agora, já houve indÃcios também de que algumas pessoas que defendem essa posição, incluindo o próprio Fernando Henrique, estariam numa posição tática para depois avançar mais, no sentido de regulamentar as outras drogas.
Eu não sei exatamente quais são os interesses desses setores das classes dominantes em manter esse discurso. Se realmente é uma tática para aos poucos a guerra às drogas ou se será para apenas limitar até onde vão os negócios e estabelecer a manutenção da guerra às drogas noutro patamar.
DL – Uma eventual regulamentação do comercio de drogas, como deveria ser feita para evitarmos o controle do mercado ficar nas mãos das oligarquias empresariais, os efeitos nocivos ao meio ambiente e as tÃpicas consequências da produção de uma mercadoria conforme os esquemas capitalistas?
RC – Eu acho muito difÃcil a gente ter uma legalização efetiva que não abra um espaço para a apropriação pelo capital. Vivemos num capitalismo. Eu sou militante socialista, e acredito no socialismo para todas as mercadorias, não só para as drogas. No caso concreto, a regulamentação deveria seguir dois princÃpios: um, o direito de todo indivÃduo de ter autonomia sobre o seu corpo. O segundo, que as empresas capitalistas não podem ter autonomia para autorregulamentar o mercado de drogas. Ele deve ser regulado politicamente pela sociedade através do estado.
No caso da maconha especificamente, ela tem uma vantagem sobre outros produtos que é a possibilidade do autocultivo. Ele precisa ser regulamentado, igual do que a produção das cooperativas de plantadores, que eu acho ser o grande instrumento para impedir que a indústria faça o que fez com o tabaco, que é vendido misturado com outras substâncias, muitas algumas mais nocivas que o tabaco e que provocam mais dependência.
Se a gente regulamenta o mercado de maconha e proÃbe o autocultivo e o cooperativismo, está entregando para a indústria a possibilidade fazer o que quiser com essa indústria. Agora, se a gente regulamenta só o autocultivo ou só o cooperativismo, a gente cria as condições para o tráfico continuar: aqui no Brasil a maior parte das pessoas não têm condição para autocultivo, e portanto você deixa de fora o número suficiente de pessoas para manter a lógica da proibição.
Também sou totalmente contra a criação de estatais para elas terem o monopólio da produção, porque não teria como regulamentar isso e ia manter o tráfico. Criar o monopólio estatal sobre, por exemplo, o petróleo é fácil, porque este produto precisa de grandes infraestruturas. Se você estabelece um monopólio estatal sobre a maconha, não tem forma de controlar isso, e essa seria uma situação muito semelhante à que temos hoje.
DL – Para terminar, a Marcha da Maconha, em cuja organização você esteve envolvido, decorreu em maio em várias cidades brasileiras. Qual a resposta da população e como afetou a repressão sofrida?
RC – A Marcha da Maconha chegou no Brasil em 2002, trazida por uma militante portuguesa, a Susana. Ela identificou um posto da praia de Ipanema, no Rio, como ponto da galera usuária de maconha, conseguiu fazer a primeira Marcha da Maconha aqui no Brasil e deixou a semente plantada.
Em 2003 acho que não teve marcha, em 2004 e 2005voltou ter, em 2006 não teve e de 2007 para aqui teve todos os anos. Em 2007 foi a primeira vez que o movimento aconteceu além do Rio, em Porto Alegre e Salvador. Em 2008 a gente passou de três cidades para doze, e aà começou a repressão. Em 21 de abril de 2008 eu e mais quatro militantes fomos detidos no Rio de Janeiro, libertados depois e a justiça mandou arquivar o processo. Uma semana antes das marchas começaram as proibições pelas justiças estaduais, e dos doze ministérios públicos, onze entraram com o pedido de proibição do movimento na justiça, e das doze passeatas marcadas, apenas duas puderam acontecer (Recife e Porto Alegre).
A partir de 2009 nos começamos com uma estratégia dupla. Por um lado, nós entramos com uma ação no Ministério Público Federal (MPF) protestando contra a violação da constituição, pedindo que tomasse providências para proteger a nossa liberdade de expressão. O MPF acatou, fez um processo no Supremo Tribunal Federal (STF) e agora, recentemente, o STF acaba de aprovar essa resolução do MPF. Portanto, a partir de junho de 2011 passou a ser considerado pela Corte Suprema que a repressão contra a Marcha é ilegal.
Só que entre 2009 e 2011 em cada cidade que a gente ia fazer a passeata, entravamos com um habeas corpus preventivo para garantir a manifestação. Em 2009 tivemos êxito em um terço das cidades, nas que conseguimos marchar. Em 2010 foi mais ou menos a metade. Em 2011, a gente conseguiu marchar em mais cidades do que não conseguiu.
Agora, a gente nunca conseguiu vencer na justiça de São Paulo. Como na maior cidade do paÃs tem repressão ao movimento, acabou por repercutir muito. Dia 21 de maio deste ano começou a grande repressão: a polÃcia perseguiu a Marcha por três quilômetros nas duas principais avenidas da cidade, e isso foi um fato polÃtico de grande proporção.
Eu acredito que tanto por conta do medo à repressão policial como por conta do medo à repercussão nas famÃlias e nos empregos, as pessoas têm muito medo de participar na Marcha da Maconha. Em 2002 tinha 200 pessoas conforme a PolÃcia Militar, e em 2011 foram 5,000 pessoas, segundo a PM. Pelas as estatÃsticas mais conservadoras tem 7% da população brasileira consumidora de maconha (algumas pessoas falam de 15%). O potencial de mobilização, levando em consideração apenas usuários, leva-nos a pensar que o nosso movimento é ainda muito menor do que será.
Fotos do Diário Liberdade: 1, 2, 4 e 5: Momentos da entrevista. 3 – Caminhão policial estacionado nos arcos da Lapa, com crianças expostas ao público por serem, alegadamente, consumidoras “de uma nova droga”.