A questão da dependência do crack e todos os polêmicos temas que o assunto abarca, como internação compulsória, programas do governo federal, a desinformação e demonização por parte da mÃdia e diferentes estratégias de tratamento, além de análises a respeito do proibicionismo e da polÃtica de redução de danos foram os principais temas que pautaram a Mesa de Estudos e Debates “Drogas, redução de danos e saúdeâ€, realizada no dia 7 de dezembro pela manhã. Organizada pelo IBCCRIM e pelo Coletivo DAR e contando com mediação de Cristiano Maronna, a mesa contou com a presença do doutor em saúde pública pela USP e um dos precursores da polÃtica de redução de danos no Brasil, Fábio Mesquita, atualmente chefe da equipe de controle de HIV/AIDS da Organização Mundial de Saúde (OMS) no Vietnã, e do psicólogo e acompanhante terapêutico Bruno Ramos Gomes, coordenador e presidente do Centro de Convivência É de Lei, que atua com redução de danos junto aos usuários de crack no centro de São Paulo.
“A gente não vai tentar acabar com as drogas no mundo nem fazer usuários pararem de usar, vamos tentar cuidar das demandas deles”, inicia Bruno, classificando a redução de danos não só como um conjunto de estratégias, mas como uma “ética de cuidado com o usuárioâ€. Apesar de o crack estar na pauta do dia, tanto das abordagens por parte da imprensa quanto nas conversas cotidianas, Bruno chama atenção para o fato de que as ações de redução de danos para usuários não estão acompanhando medidas e debates a respeito do tema.
De fato, ao mesmo tempo em que a mesa acontecia, a presidenta Dilma estava lançando o Plano Nacional para o Enfrentamento do Crack, com orçamento estimado de R$4 bilhões. “É um retrocesso que esse programa inclua financiamento público para comunidades terapêuticas, que não têm nenhuma regulamentaçãoâ€, lembrou Bruno Gomes. Entre as medidas anunciadas, consta a instalação de câmeras em locais onde existe consumo de crack, para “fiscalização e policiamentoâ€, de acordo com o ministro da Justiça José Eduardo Cardozo. Fábio Mesquita, ao ver que no plano existe o intuito de reservar leitos para usuários de crack em hospitais psiquiátricos, recordou que desde o inÃcio da luta antimanicomial no Brasil existe a reivindicação de que “o tratamento seja ambulatorial e, no caso de emergências, as internações sejam por perÃodos curtos em hospitais gerais. É uma patologia como qualquer outra, e deve ser tratada em meio à comunidade”.
A não priorização da “ética de cuidado com o usuário†no plano fica clara, por exemplo, com o objetivo de intensificação de ações de “combate ao tráficoâ€, com a integração das áreas de inteligência da PolÃcia Federal, Rodoviária Federal e estaduais, e aumento de 2000 policiais no contingente. “Quantos nessa sala participaram da elaboração do novo plano?â€, questionou Fábio Mesquita que, diante do silêncio, lamentou que “os setores conservadores participaram ativamenteâ€. “O crack para nós hoje tem a mesma dimensão do desafio de combate a Aids. Tecnicamente estamos diante de uma epidemia de crack no paÃsâ€, afirmou o ministro da Saúde Alexandre Padilha, em matéria do Estado de S. Paulo, “esquecendo-se” de que não há dados confiáveis sobre o consumo desta substância no Brasil.
“Me choca o tratamento do crack como se fosse uma epidemia incontrolávelâ€, comentou Fábio Mesquita. “Nenhuma droga ilÃcita é problema maior que o álcool em nenhum lugar do planeta. Essa desinformação é um despropósito, uma propaganda alarmista para justificar medidas absurdas como a internação compulsóriaâ€, sintetizou. “As propostas são formuladas sempre visando transformar usuários em outras coisas, nunca buscam ouvi-los, conhecê-losâ€, apontou Bruno, para quem “a estigmatização da figura do noia gera medoâ€: “Quem deveria pensar as polÃticas públicas de São Paulo vai à crackolândia e nem fala com os usuáriosâ€.
Os dois expositores consideraram a internação compulsória para usuários de crack como uma polÃtica higienista e absolutamente ineficaz: “95% a 98% das pessoas internadas compulsoriamente têm recaÃdasâ€. “A OMS considera o tratamento compulsório absolutamente inaceitável, está claramente demon strado que não traz resultadoâ€, alertou Mesquita. “O que deveria ser compulsório é o acesso à cidadaniaâ€, comentou Maronna. Bruno terminou sua fala convocando todos a comparecerem nos atos que acontecerão simultaneamente pelo Brasil contra internação compulsória de menores na sexta-feira (9/12). Em São Paulo será à s 10h em frente à Prefeitura.
Fábio Mesquita, que participou da primeira iniciativa de redução de danos no Brasil, a distribuição de seringas como prevenção à contaminação de AIDS em 1989, em Santos, ressaltou que apesar dessa polÃtica ter ganhado maior importância com o crescimento da epidemia de AIDS nos anos 1980, ela surgiu antes. “Um médico inglês foi o primeiro a utilizar premissas de redução de danos no começo do século, em 1920, ao tratar dependência de ópio com pequenas doses do próprio ópioâ€, contou, acrescentando que a proibição do ópio foi o que gerou epidemia de heroÃna. Apontando que na maioria das vezes o consumo de droga não tem nenhuma relação com dependência e que muitas pessoas usam drogas sem desenvolver nenhum problema, Mesquita salientou que “a redução de danos pensa nisso, no usuário ocasional, no dependente, nas implicações do proibicionismoâ€, de modo a não restringir o olhar sobre a complexa questão das drogas, usadas desde os primórdios da humanidade.
“O que me chama atenção no Brasil e em outros paÃses é a esquizofrenia entre o crescimento de polÃticas de redução de danos junto com polÃticas repressivasâ€, resumiu Fábio, elencando que sente falta no Brasil tanto de “articulação maior entre as várias correntes que poderiam atuar no antiproibicionismo, em redução de danos e pautando polÃticas públicasâ€, quanto de uma polÃtica de drogas que seja mais amplaâ€. Depois de conversas com o público que participou do debate, a mesa ressaltou que a questão das drogas é multilateral, não podendo ser minimizada como um problema de saúde, muito menos policial. “A complexidade das pessoas em situação de rua, por exemplo, deve ser trabalhada a partir de ações interdisciplinaresâ€, concluÃram. “Nesses casos a droga é um pequeno fator dentro de um enorme problema de exclusão socialâ€.