Merval Pereira, O Globo
Além de definir o alcance do papel do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) e julgar o mensalão, o Supremo Tribunal Federal terá pelo menos mais um tema polêmico pela frente este ano. Uma decisão tomada no fim do ano passado, no dia 9 de dezembro, não teve a devida atenção da opinião pública: o STF decidiu deliberar, ainda neste ano de 2012,sobre a descriminalização do consumo de maconha, e tudo indica que a maioria do plenário tenda a favor.
Afinal, o Supremo tem se colocado na vanguarda da sociedade brasileira no campo dos costumes ao aprovar, nos últimos tempos, questões polêmicas como a união estável entre homossexuais e a permissão da defesa pública da legalização da maconha, retirando desse movimento o caráter de apologia de crime.
Antes dessas decisões, porém, houve um julgamento sobre a admissibilidade, exatamente como nesse caso do consumo individual da maconha, o que leva os interessados no caso a acreditarem que o resultado do julgamento no plenário será favorável à  descriminalização.
Quem provocou o pronunciamento do STF foi a Defensoria Pública de São Paulo, a partir do caso de um jovem do ABC que ficou dois meses preso por conta de 1 grama da erva.
A ONG Viva Rio vai atuar como amicus curiae e já tem como advogados o ex-ministro da Justiça de Lula Marcio Thomaz Bastos e Pier Paolo Cruz Bottini.
O “amicus curiae†(amigo da corte), mesmo não fazendo parte do processo, atua como interessado pela causa reconhecido pela sociedade.
A ONG Viva Rio está empenhada na descriminalização do consumo para uso próprio da maconha, apoiando o trabalho do ex-presidente Fernando Henrique Cardoso pela regulamentação do uso da maconha.
A Comissão Latino-Americana, que, além do ex-presidente brasileiro, tem na sua coordenação os ex-presidentes César Gaviria, da Colômbia, e Ernesto Zedillo, do México, defende a descriminalização da maconha, por ser a droga de uso amplamente majoritário no mundo (90% do consumo mundial de drogas) e, ao mesmo tempo, cujos malefÃcios podem ser comparados aos do álcool e do tabaco.
Já a Comissão Global sobre Drogas, que Fernando Henrique também coordena, vai mais adiante e tem uma tendência de trabalhar pela legalização e regulamentação do uso da maconha como a melhor maneira de combater o tráfico de drogas e suas consequências.
Esse, porém, é um passo adiante que não está na cogitação nem do Viva Rio nem de Fernando Henrique.
No próximo dia 7 de fevereiro a Viva Rio fará reunião com os advogados e o grupo de conselheiros que ajuda na campanha a favor da descriminalização do uso da maconha para acertar as estratégias. Ao mesmo tempo, o secretário de Meio Ambiente do governo do Rio, Carlos Minc, está em outra ponta mobilizando os defensores da descriminalização do uso da maconha para aproveitarem o momento favorável com manifestações por todo o paÃs.
A representação ao Supremo Tribunal Federal se fundamenta no artigo 5 da Constituição Federal e nos seus incisos sobre os direitos individuais, as liberdades e inviolabilidades.
A base da decisão seria a de que ninguém pode ser preso por só fazer mal a si mesmo. Seis paÃses — Espanha, Itália, Portugal, Argentina, República Tcheca e México — já não criminalizam a posse de drogas para consumo pessoal.
No Brasil, o porte de drogas, mesmo que para consumo próprio, é crime, mas o usuário é punido com penas restritivas de direitos, e não da liberdade.
Porém, a lei não define a quantidade de droga que diferencia usuário ou traficante, cabendo ao policial ou ao juiz a decisão, o que gera uma série de problemas, inclusive dá margem à extorsão policial, ou mesmo à condenação de pessoas que portem droga para uso próprio, como no caso que provocou a consulta ao Supremo.
Outra discussão, que causou a demissão do primeiro secretário nacional Antidrogas do governo Dilma, Pedro Abramovay — que está auxiliando o Viva Rio na cruzada pela descriminalização do consumo de maconha —, é o chamado “pequeno traficanteâ€, aquele que vende drogas para garantir seu consumo, que na opinião desses especialistas não deveria ser preso, mas ressocializado. Mas essa questão não estará em julgamento no Supremo.
Na Argentina, a questão da droga para consumo próprio foi definida pela Suprema Corte em 2009, com base na preservação da liberdade individual, desde que não cause danos a outras pessoas.
Os ministros entenderam, com base em tratados internacionais, que o direito à privacidade impede que as pessoas sejam “objetos de ingerência arbitrária ou abusivaâ€.
O Supremo argentino decidiu que o artigo 19 da Constituição Nacional protege a liberdade pessoal de qualquer intervenção alheia, inclusive a estatal.
O presidente da Corte, ministro Ricardo Lorenzetti, chegou a dizer em seu voto que “não se trata apenas de respeito à s ações realizadas na esfera privada, senão a de reconhecimento de um âmbito em que cada indivÃduo adulto é soberano para tomar decisões livres sobre o estilo de vida que desejaâ€.
Outro ponto salientado pelos juÃzes argentinos foi a chamada “revitimizaçãoâ€, ou seja, que as primeiras vÃtimas em casos de viciados em drogas são os próprios consumidores e suas famÃlias, e não tem sentido uma resposta punitiva do Estado ao consumidor, que se traduziria em uma “revitimizaçãoâ€.
Os ministros tiveram a preocupação, em seus votos, de deixar claro que a decisão não implicava a legalização da droga — assim como aqui no Brasil, ao descriminalizar a realização da Marcha da Maconha, o Supremo teve o cuidado de reafirmar que fumar maconha continuava sendo crime, e que as marchas não poderiam permitir o seu consumo.