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Relato de Lucas Gordon,
correspondente internacional do DAR em Buenos Aires
(vÃdeos no fim do post)
Saio da biblioteca à s 15h, está combinado com meu amigo de nos encontrarmos na estação Agüero à s 15h15 para encontrarmos a Marcha logo após ela sair da concentração. Ãamos encontrar ela perto da 9 de Julho, uma enorme avenida que cruza o eixo polÃtico da cidade de Buenos Aires: a Avenida de Mayo, que liga a Casa Rosada ao Congresso Nacional argentino. Essa avenida é o palco de todas as importantes mobilizações e comoções polÃticas da cidade e também do paÃs. Ela foi palco de golpes, de greves, de mobilizações conservadores e libertárias, do nascimento do peronismo, dos anos de neo-liberalismo menemista e das convulsões sociais do Argentinazo no fatÃdico 2001. Hoje segue tendo vida ativa e sempre volumosamente ocupada. Os argentinos tem a tradição de fazer protestos e mobilizações de rua a tal ponto presente na sua vida social que uma manifestação do tamanho da que vi hoje não impressiona ninguém por aqui.
SaÃmos do metrô no centro e nos direcionamos para a tal avenida. Chegando por uma perpendicular, de longe vÃamos apenas uma faixa de avenida completamente lotada de gente. Quando chegamos ao lado da marcha não se podia ver o fim das pessoas de um lado nem do outro da manifestação.
Foi assim, a uns 10 metros de distância da massa de pessoas, que começamos a sentir o onipresente cheiro de maconha, que só deixarÃamos de sentir ou pela força do cheiro de Palo Santo (um tipo de incenso) em dado momento na marcha ou quando fomos embora dali. Outra caracterÃstica de especial interesse para nós brasileiros é a total ausência de policiais. Isso mesmo. Mas comento que assim é em praticamente todas as manifestações nesta cidade. Aqui há um grande senso de respeito para com as manifestações cÃvicas e polÃticas (recentemente abalado, por parte do governo, com a aprovação de uma lei antiterrorista que abre brechas para a criminalização dos protestos sociais), as ruas do centro são cortadas com uma facilidade e recorrência impressionante, um grupo de 50 pessoas toma 2 faixas de uma grande avenida e a polÃcia aparece para garantir a segurança da manifestação contra possÃveis motoristas que consideram mais importante o seu direito de usar a sua máquina do que o direito dos cidadãos se manifestarem publicamente.
Entre muitos dread-locks, muitos jovens e não tão jovens, entre muitos homens e nem tantas mulheres, entre deficientes fÃsicos, crianças, plantas, punks, gays, famÃlias, entre os que estavam lá se via muito a alegria de um coletivo que encontrava o prazer em estar ali mais que nada para poder assumir algo que por muitos e muitos anos foi estigmatizado, maldito, proibido. A marcha em Buenos Aires tem sua convocação feita principalmente por organizações de cultivadores. A bandeira do auto-cultivo é de longe que mais congrega os porteños, que desde 2009 se sentem cada vez mais tranquilos para começar nessa luta, ainda ilegal, de auto-suficiência no âmbito do seu consumo de maconha: em setembro de 2009 a Corte Suprema de Justiça argentina decidiu por unanimidade que a posse para consumo de uma pequena quantidade de maconha não pode ser considerado um delito penal, uma vez que a consituição deles diz que
Las acciones privadas de los hombres, que de ningún modo ofendan
a la moral y al orden público están reservadas a Dios y exentas de los magistrados. (Art.19),
ou seja, que as atividades privadas dos cidadãos, quando não afetam terceiros, está fora da alçada do Estado. É direito do cidadão usar seu próprio corpo da maneira que melhor lhe aprouvir. Nisso Zeca Pagodinho sempre esteve atinado com o espÃrito das Constituições modernas, quem quiser beber, que beba!, que caralhos o Estado tem que ver com o que o indivÃduo bota para dentro do próprio corpo, seja um lÃquido, seja uma fumaça, seja a genital de alguém do mesmo sexo?
A marcha Ãa num passo até que rápido, quebrando o estigma de preguiçosos dos maconheiro, apesar do inúmeros olhos trincados que já se podia ver por todos os lados. A polÃcia fechava o trânsito da 9 de Julho, permitindo a passagem pacÃfica e tranquila da marcha, e seguÃamos para a praça do Congresso. Diferente das enormes manifestações polÃticas no mesmo local, esta marcha não contava com um número absurdo de bandeiras e faixas, mas elas marcavam presença. Os partidos polÃticos e agrupações polÃticas também marcavam sua presença com faixas e bandeiras, mas a verdade é que a imensa maioria de pessoas não vinculadas a nenhum grupo fazia com que estes se parecessem apenas detalhes frente ao enorme mar de orgulhosos maconheiros. Alguns apenas fazendo a cabeça tranquilamente para curtir esse dia tão especial, outros pareciam mesmo é querer exagerar para marcar a importância que dão para o evento, tostavam uns dedos de gorila, levavam consigo bongs inusitados, trouxeram até a protagonista do dia para um passeio.
Chegamos à praça do Congresso em menos de 1 hora de caminhada. Os vendedores de larica não paravam de aparecer por todos os lados, vendedores de cerveja com claros traços de gente humilde e também jovens fazendo sua caixinha de maneira criativa e divertida vendendo doces e salgados caseiros. A marcha então parou em frente à grande avenida que há em frente ao Congresso. O clima, ao menos na experiência pessoal de quem nunca tinha participado do evento nesta cidade, era meio estranho: todos pararam por lá e não havia o menor sinal de que algo ia acontecer. De fato nada aconteceu até o momento em que saÃmos de lá, 1 hora mais tarde, mas havia indÃcios de que um pequeno palanque estava sendo montado, sem muita pressa. O interessante é que as pessoas estavam todas muito tranquilas, e aos poucos alguns foram sentando no chão, não por impaciência pois não pareciam de fato estarem esperando algo ocorrer, estavam apenas ficando mais confortáveis. Aos poucos foram se juntando rodinhas (de conversa), alguns batuques, malabarismos, laricas por todo o lado e os baseados queimando sem parar.
Por se tratar de uma praça bem gostosa, o clima de legalização total, comida boa, saudável e barata à disposição, a verdade é que não havia muitos motivos para se sair daquele lugar apenas porque a marcha teria acabado. Certamente que a dispersão já havia começado nem bem as falas tinham se iniciado, no entanto o clima era agora muito mais de encontro do que de manifestação. As pessoas apresentavam suas artes, encontravam seus amigos, curtiam na boa, cidadãos livres, pacÃficos e felizes. Mesmo durante a marcha não se gritavam palavras de ordem nem se cantavam músicas engajadas. O fundo era sempre um batuque contÃnuo e as vezes, quando alguém saÃa à janela fumando um faso, assovios ou aplausos gerais, gritos bradando o nome da erva. De resto era uma procissão feliz e tranquila.
Entre uma festa comemorativa de uma cultura e uma manifestação polÃtica de crÃtica social, fica difÃcil apontar se a marcha tem mesmo que ser uma coisa ou a outra. É certo que os contextos de cada paÃs dizem muito a respeito dos moldes que a Marcha acaba tomando aqui e ali. A capacidade de cada paÃs lidar com as questões da democracia e de direitos humanos acaba sendo bem visÃvel num exemplo de certa expressão menor no contexto polÃtico geral como são as Marchas da Maconha: ao meu ver não há coinscidência no fato de que a sociedade que julgou e puniu seus ditadores militares seja a mesma que aceita e tolera a opinião polÃtica, a mobilização crÃtica de seus cidadãos organizados. Diametralmente oposta à isso está a sociedade brasileira, que segue assistindo à demonstrações do poder descontrolado das instituições militares, num contÃnuo afronte à s instituições civis e ao Estado de Direito brasileiro.
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