De acordo com um levantamento do Ministério Público Estadual de São Paulo, dos 691 incidentes de resistência à voz de prisão com mortos ou feridos registrados este ano na capital paulista, ao menos 109 envolveram policiais que estavam de folga.
Nos boletins de ocorrência o fato vem sendo classificado como “auto de resistência”, o que para especialistas é uma prática ilegal. Já as polÃcias Civil e Militar consideram o procedimento legal.
O levantamento obtido pelo UOL foi feito pelo Gecep (Grupo de Atuação Especial de Controle Externo da Atividade Policial do Ministério Público Estadual).
“O auto de resistência é uma criação da própria policia para designar homicÃdios ou lesões corporais provocados por eles contra criminosos que resistem à prisão. Mas é um dispositivo que não existe na lei, nem quando se trata de policiais em serviço, muito menos para policiais de folga”, afirma Martim de Almeida Sampaio, coordenador da comissão de Direitos Humanos da OAB-SP (Ordem dos Advogados do Brasil – Seção de São Paulo).
O artigo 292 do Código Processual Penal brasileiro diz que “se houver resistência à prisão em flagrante ou à determinada por autoridade competente, o executor e as pessoas que o auxiliarem poderão usar dos meios necessários para defender-se ou para vencer a resistência”.
Para Sampaio, porém, o policial de folga não se enquadra como a “autoridade competente†descrita no artigo.
“O Código Processual Penal trabalha com denominações claras. Se um agente do Estado não está trabalhando e se envolve em uma ocorrência, ela precisa ser registrada como está previsto na lei: homicÃdio ou lesão corporal. Mesmo que após a apuração se verifique que ele agiu em legÃtima defesa”.
Segundo Sampaio, entidades como a Human Rights Watch e a Corte Interamericana de Direitos Humanos já pediram a abolição do registro de mortes e lesões como autos de resistência, por considerar que o artifÃcio pode ser utilizado para encobrir abusos e violações cometidos pelas forças de segurança.
“O auto de resistência aplicado para o policial fora de serviço é uma carta branca para qualquer arbitrariedade”, diz.
O presidente da Ajufe (Associação dos JuÃzes Federais do Brasil), Nino Toldo, considera o registro de ocorrências envolvendo policiais fora de serviço como resistência uma medida equivocada.
“Imagine um policial que faz bico como segurança de supermercado nas folgas e acaba baleando um assaltante. Isso nunca pode ser classificado como auto de resistência, já que ele não estava a serviço do Estado no momento”, afirma.
“Quando ele resolve agir fora de seu horário de trabalho, o faz como cidadão, não como policial”, diz Toldo.
“E o grande número de registros também me chamou a atenção. É preciso que se apure o que leva tantos policiais de folga a se envolver em conflitos”.
O promotor de Justiça Antonio Benedito Ribeiro Pinto Júnior, do Gecep, diz que “sem dúvida se trata de uma imprecisão técnica, mas por um lado o registro destas ocorrências como resistência faz com que um promotor do júri prontamente receba uma cópia dos autos, o que garante uma agilidade maior no processo”, afirma.
“Se não fosse registrado assim, a informação de que havia um policial envolvido não seria evidente”.
Para o advogado criminalista e diretor do grupo Tortura Nunca Mais, Lúcio França, trata-se de uma prática ilegal que abre “um precedente perigoso”.
Para ele, apenas ocorrências envolvendo policiais no exercÃcio da função podem ser classificado como auto de resistência, e mesmo assim com ressalvas.
“Após os ataques de 2006 [quando o PCC realizou atentados contra policiais] muitos jovens foram mortos nas periferias de São Paulo, acusados de resistir à prisão. Laudos posteriores feitos por peritos forenses determinaram que vários haviam sido executados”.
Segundo a assessoria de imprensa da PM, “as ocorrências com a designação resistência seguida de morte ou lesão corporal são aquelas onde o disparo de arma de fogo pelo policial ocorre logo após sua ação funcional, ou seja, quando ele se identifica como policial para atuar na ocorrência, estando de serviço ou não”.
Procurada para comentar o assunto em nome da PolÃcia Civil, a assessoria de imprensa da Secretaria de Segurança Pública do Estado disse que manteria a mesma resposta dada pela PM.
A PolÃcia Civil não quis detalhar a situação em que os registros com policiais fora de serviço foram feitos, afirmando que “são documentos para uso interno”.
A PM informa ainda que em todas as ocorrências onde existe o disparo de arma de fogo pelo policial, “além da abertura de procedimento administrativo, o envolvido passa por uma avaliação psicológica”.