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Outubro 14, 2015

É só um chá, vai te fazer bem – livro de Caio Fernando Abreu narra experiência com Ayahuasca

Cambaleei até o jardim, eu precisava arrancar aqueles fios, um a um.Eram teias de aranha, teias tão emaranhadas que levei muito tempo até conseguir tirá-las todas de mim. Minhas mãos ficaram pegajosas de seus resíduos.Como sair de um casulo, parecia.

COLETIVO DAR

(+ Veja mais publicações da sessão CULTURA PRA DAR)

O escritor e jornalista gaúcho Caio Fernando Abreu, falecido em 1996, talvez seja mais conhecido por citações e memes de Internet que fazem com frases suas (que às vezes nem dele são) do que por livros importantíssimos para a literatura brasileira do fim do século XX, como Morangos Mofados ou Triângulo das águas. Apesar de alcançar o auge quando escrevia em contos, Abreu também publicou romances, como Onde andará Dulce Veiga?, segunda obra sua nesse formato, publicada em 1991.

Neste livro, o personagem principal e narrador está quase atingindo o ponto final de sua busca pela cantora Dulce Veiga quando se deparara com uma experiência com Ayahuasca. Abaixo reproduzimos o trecho total, lembrando evidentemente que se você tava com esse livro na sua lista esse trecho pode contar algo que você não queira (SPOILER). Mas o mais provável é que só te faça viajar nas belas palavras e imagens desse grande escritor.

– Esse é o Dick Farney, não se assuste se ele ficar meio carente. – Ela espiou na porta, alguma coisa nas mãos: – Gosto de dar a eles nomes de cantores. Você devia ter conhecido a Elizeth, era uma gatinha linda, parecia gente. Morreu de parto na última lua cheia, deixou quatro gatinhos. Eu chamei de Elis, Raul, Nara e Cazuza.

Me dá o Cazuza, tive vontade de pedir. Mas quase não conseguia falar, estendi mais o corpo na almofada. Dick Farney saiu correndo pela porta da frente. Lá fora, uivou para a lua. Dulce ajoelhou-se à minha frente, estendeu um caneco de ágata:

– Beba, vai te fazer bem.

Espiei um líquido amarelo, frio, denso, meio dourado. Tinha um cheiro que lembrava tangerina, amêndoas, terra molhada, e a palavra exata que me ocorreu foi: pungente. De alguma forma, doía.

– O que é isso?

– Um chá, só um chá. Toma, vai te fazer bem.

Peguei o caneco de suas mãos, provei com uma careta. Era certamente a coisa mais amarga que já provara em toda a minha vida.

– É amargo demais.

– Mas vai te fazer bem. Fecha os olhos e toma.

Por alguma razão maluca, ou absoluta falta de razão, eu não apenas sentia que tinha que fazer aquilo, mas confiava nela. Talvez por sua voz paciente, maternal. Pensei em Jandira de Xangô, um copo de leite morno na porta do apartamento, em minha mãe, pães sobre a toalha xadrez. Tinha aquele mesmo tom, aquele mesmo jeito. Talvez, afinal, eu devesse parar de bancar o durão e começasse a aprender a receber cuidados.

Eu bebi. Como se tivesse cola, visgo, o líquido escorregou com dificuldade pela garganta. Fechei os olhos, e senti os dedos de Dulce Veiga fazendo o sinal-da-cruz na minha testa. Não como se eu morresse, mas feito uma bênção, batismo. O gosto amargo permanecia na boca.

Abri os olhos. Ela tocava meus pés.

– Você está muito tenso. Estende o corpo, vou fazer uma massagem.

Ela tocou a planta dos meus pés descalços, na ponta dos dedos. Tão firmes, seus dedos, que cheguei a espiar pra ver se usava algum instrumento de madeira, de metal. Não usava nada, apenas seus dedos. Onde pressionavam, doía terrivelmente.

O pior gosto do mundo, a pior dor do mundo.

Seus dedos subiram por meus tornozelos, pressionaram os artelhos,pensei vagamente que não gostaria que ela visse meus pés assim, tão de perto,frágeis, feios, eu mal sabia como eram capazes de me sustentar, mas fui esquecendo disso enquanto ela subia a pressão pela barriga dolorida das pernas, tocou aquele ponto remoto atrás dos joelhos, passavam-se horas, eu estava indo embora, ela me envenenara, ninguém sabia que eu estava ali,ninguém me conhecia, eu seria jogado no rio, devia haver piranhas, tudo estava acabado, tentei rir, dinâmico repórter desaparece misteriosamente, não consegui. Para não ceder a esses pensamentos, ao mesmo tempo em que repetia para mim mesmo que se tratava apenas de um chá, uma massagem,tentei falar novamente, eu precisava saber por que, afinal, ela desaparecera, e muitas outras coisas, talvez feias, sujas, loucas, eu precisava saber, e não sei se perguntei realmente ou apenas pensei em perguntar, para interromper aqueles outros pensamentos que não iam embora, como se eu fosse ser assassinado no próximo segundo, e eu estava sendo, mas de um outro jeito, apenas de certa forma, docemente, pensei, docemente Dulce.

Antes de afundar numa espécie de sono, porque de alguma maneira eu continuava desperto, mais desperto que nunca, ouvi sua voz cada vez mais baixa, e quando seus dedos começaram a subir por minha coluna dolorida, apertando uma por uma das vértebras, eu já não sentia as pernas, sem ter certeza se seria realmente a voz dela, aquela voz meio rouca, densa como o veludo verde daquela poltrona que agora parecia remota, perdida num quarto imundo de uma cidade no sul, a voz talvez de minha mãe, ou a mistura de ruídos que chegavam da estrada lá embaixo da colina, da mata além da casa, do rio ao longe, da noite sobre todas as coisas, ou talvez minha mesmo, minha própria voz vindo de dentro e do fundo do meu cérebro exausto, renamente e segura, embora parecesse tolo,quase infantil o que dizia, essa voz que eu não sabia mais de quem era, repetiu assim:

– São tudo histórias, menino. A história que está sendo contada, cada um a transforma em outra, na história que quiser. Escolha, entre todas elas,aquela que seu coração mais gostar, e persiga-a até o fim do mundo. Mesmo que ninguém compreenda, como se fosse um combate. Um bom combate, o melhor de todos, o único que vale a pena. O resto é engano, meu filho, é perdição.

VII

DOMINGO

NADA ALÉM

61

Passava da meia-noite. Era meu aniversário, lembrei.

Quis contar para Dulce Veiga, a sala estava vazia. Meu corpo não doía mais, nem a cabeça. Levantei, fui espiar pela casa.(…)

Olhei pela janela, a lua atravessara a parte do céu que ficava sobre a casa, não se podia mais vê-la. Apenas sua luz, vaga e dourada, sobre a mata. Á lua, cantou alguém ao longe. A porta para o jardim estava aberta, eu comecei a sair mas, no meio da sala, percebi que meu corpo estava enredado em fios cinzentos, eu quase não podia andar. Toquei neles. Viscosos, nojentos,deixavam uma gosma prateada nas mãos.

Cambaleei até o jardim, eu precisava arrancar aqueles fios, um a um.Eram teias de aranha, teias tão emaranhadas que levei muito tempo até conseguir tirá-las todas de mim. Minhas mãos ficaram pegajosas de seus resíduos.

Como sair de um casulo, parecia.

62

Lavei as mãos, o rosto, os pés numa torneira no canto do jardim. Não havia onde enxugá-los, eu comecei a sacudir as mãos, a cabeça e as pernas até ficar completamente tonto.

Então veio a náusea.

Um desgosto, uma revolta amarga na boca do estômago, um rodopio.Apoiei o corpo na madeira da parede da casa, sozinho no mundo, no meio do mato, longe de tudo, fechei os olhos e vomitei. Eu quase não tinha comido nada naquele dia, no outro também. Um jato amargo nascia do fundo de alguma coisa escura, no centro de uma coisa torturada, depois rolava pela garganta transformado numa serpente de prata, num cometa, então batia na terra, espirrava longe. A terra bebia o veneno.

Lavei outra vez o rosto, enchi a boca d’água, cuspi fora.

Abri a camisa. E na luz da lua, na luz que vinha de dentro da casa, da beira da estrada, em outra luz também, vi que havia três fios de cabelos brancos no meu peito.

Em volta tudo brilhava.

63

Sentada numa pedra lá embaixo, quase na estrada, Dulce Veiga tocava violão e cantava. Era estranho, mas ela colocara nos cabelos uma espécie de tiara, diadema, uma pequena coroa de pedrinhas brilhantes. Trocara de roupa e, por cima do vestido branco de saia comprida, usava um avental verde plissado.

Sentei junto dela. A lua, dali era possível ver, estava do outro lado da casa, descendo atrás da mata. E de repente, como nunca mais conseguira ver, desde criança, embora me esforçasse, mas tinha perdido aqueles olhos,inesperadamente consegui enxergar outra vez São Jorge de lança em punho, matando o dragão na superfície da lua.

Fiquei ali sentado, ouvindo. Dulce cantava novamente aquelas canções desconhecidas. Além da lua, das estrelas e coisas assim, do espaço sobre nossas cabeças, percebi que falavam também de seres da terra, escondidos entre as árvores, na fundura das grutas, nas curvas dos caminhos.

Ela disse:

– Força e fé, repete comigo: dai-me força e dai-me fé, dai-me luz.

Eu pedi:

– Força e fé. Dai-me força, dai-me fé e dai-me luz.

Dulce perguntou se eu queria cantar junto com ela. Disse que não, eu preferia ficar ouvindo. Eu não sabia cantar, expliquei. No mesmo momento, sem ouvir o que ela dizia, e talvez não dissesse nada, apenas cantasse, uma estrela cadente riscou o céu. Pensei em fazer um pedido, era meu aniversário.Mas não tinha nada para pedir.

As coisas vivas, pensei, as coisas vivas não precisam pedir.

64

Pareciam diamantes, as pedras que cercavam o caminho da porta de entrada até o portão e a estrada lá embaixo. Eu me ajoelhei ao lado delas.Cristais miúdos, topázios, ametistas, rubis.

Embaixo delas, a terra arfava feito um gato feliz. Curvei-me para ouvir a terra, mas levantei assustado com uma forma viva enorme na minha frente.Um homem, um animal, pensei – era uma árvore.

Encostei o corpo nela. Primeiro de costas, depois de frente.Circundei-a com os braços. Ela tremia, eu também. Eu abri minhas pernas,encostei meu sexo duro na sua casca áspera, depois a barriga, o peito, os ombros em arco, para melhor amoldá-la a mim. Eu encostei também o meu rosto, o topo da minha cabeça onde os cabelos começavam a fugir.

O corpo da árvore recebia meu corpo como o corpo de uma pessoa recebe o corpo de outra, quando fazem amor. Além de sua casca áspera, havia um centro macio que eu penetrava.

Tremi com mais força de encontro a ela, e fiquei todo molhado.

65

Como sempre ouvira dizer que acontece com os afogados, eu tinha medo do mar, em segundos minha vida inteira passou na frente dos meus olhos. Vou morrer, pensei, em algum próximo segundo depois destes segundos e mais alguns, não sei quantos.

Encadeadas, cronológicas, como slides ou fotogramas, alguns coloridos, outros preto-e-branco, quadros vivos – assim a minha vida passava em frente dos meus olhos, dia após dia, uma por uma de todas as cenas daquela última semana. Tudo lógico, natural, uma cena gerava outra e outra e unidas me conduziam até exatamente aquele lugar onde eu estava.

Eu estava ali, onde eu devia estar. Inteiro. Como uma gota de mercúrio.

66

Lá em cima, o céu não era uma tampa fechada sobre a terra, como quase sempre eu via, sepultado vivo. Ele era aberto e sem fim e cheio de mundos e indizível de qualquer outra forma que não fosse esta banal, porque não haveria palavras para ele, o Muito Maior que Tudo.

Galáxias, buracos negros, supernovas, anãs brancas, pulsares, quasares, constelações, asteróides, cometas, planetas, satélites, anéis, pontos de sombra e de luz. Minha cabeça girava, acompanhando o movimento determinante das estrelas sobre meus ombros que suportavam o mundo.

Tive medo de, por um segundo que fosse, continuar girando o corpo, olhando para cima, e de repente alguma coisa em mim, ou eu inteiro, saísse direto sem rumo nem volta em direção ao céu tão habitado que, qualquer ponto escuro que eu fixasse mais tempo, imediatamente se enchia também de estrelas.

Para não me perder, abri a boca e os olhos, me enchi de estrelas feito ele.

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