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setembro 30, 2011

Internações Involuntárias, Compulsórias e o Papel do Estado‏

Saúde com Dilma

por Marcelo Kimati, Médico Psiquiatra e doutor em Ciências Sociais pela UNICAMP, atualmente Supervisor Clínico Institucional e Consultor em saúde mental no estado do Rio Grande do Norte

Outro tema que vem entrado em pauta na discussão sobre atenção a usuários de álcool e outras drogas é a possibilidade da expansão da prática de internações compulsórias e/ou involuntárias. Como tem sido visto na mídia, dois precedentes importantes estão em curso no país; a sistematização da prática no Rio de Janeiro e a discussão sobre a adoção do procedimento em massa no Município de São Paulo. O Colegiado de Coordenadores de Saúde Mental emitiu uma nota de repúdio, entendendo estas ações como violação do direito de usuários e um ataque à sua cidadania.

Existem diferentes níveis em que é possível discutir estes eventos. A partir de uma perspectiva macropolítica, a internação compulsória em ampla escala é mais um evento que aponta para uma onda conservadora na abordagem de álcool e drogas no país. As consequências, desdobramentos e significados são amplos e envolvem uma redefinição da relação do Estado com os usuários de drogas, ainda que sob o discurso do cuidado médico. Os efeitos em longo prazo desse direcionamento são previsíveis, mas com uma dimensão de difícil precisão. Entretanto, os reflexos desta política no cotidiano das ações de saúde mental no Sistema Único de Saúde são mais claros e imediatos.

Durante anos fui plantonista no SAMU de Campinas e atualmente estou no apoio da implantação de um serviço de saúde mental no SAMU de Natal. As chamadas que estes serviços recebem da população são excelentes indicadores do que se espera do sistema de saúde em relação ao manejo de usuários de álcool e drogas. Ações em saúde mental no SAMU procuram frequentemente tensionar com o lugar comum destas expectativas e apontar diferentes saídas para estes usuários, o que inclui, frequentemente, apontar para abordagens em parcerias com os CAPS, atenção primária e atenção direta a usuários de álcool e drogas. Quando um familiar de usuário de álcool e drogas solicita uma ambulância, a expectativa que se tem normalmente é que “venham busca-lo para interna-lo no hospital porque está bebendo muito/usando muita droga”. A expectativa é que o serviço de saúde atue como um recolhedor em domicílio, impositor de tratamento no espaço atribuído a isso, em geral instituições fechadas, por períodos longos e de forma involuntária. Entretanto, se esta pessoa já foi internada em algum hospital psiquiátrico, a descrição começa com “ele é paciente do hospital, sempre que está assim nós o levamos para lá”.

Todos os profissionais de saúde que já tiveram a experiência de trabalhar no SAMU sabem que o volume deste tipo de solicitação é gigantesco. Existem alguns horários em que esta demanda é maior: a partir das 18 horas durante a semana, no sábado e domingo à tarde. Este aumento de demanda é explicado por características que dizem mais respeito à forma com que as pessoas fazem uso de álcool e drogas do que às características psicotrópicas destas substâncias. O grande volume de solicitações de ambulâncias para pessoas alcoolizadas no domingo à tarde, por exemplo, diz respeito às brigas que se sucedem ao almoço familiar semanal regado a álcool. Encontros como este têm, frequentemente, conflitos como desdobramento e a literatura corrobora esta dinâmica. A resposta que se espera do Estado, através da saúde, é uma ação repressora. Na medida em que o usuário é “paciente psiquiátrico”, fica ainda mais sujeito a abordagens involuntárias e a ser direcionado para instituições fechadas. A categoria paciente psiquiátrico é definida pelos procedimentos aos quais a pessoa é submetida; de forma emblemática, um usuário de drogas que é internado num hospital psiquiátrico será paciente psiquiátrico para sempre e esta prática (ser internado) sempre estará no topo das possibilidades de abordagem das mais diferentes situações: intoxicação alcoólica, uso abusivo, discussão familiar.

Nesta extremidade do fenômeno- a ponta da assistência- a internação involuntária aplicada de forma sistemática insere uma importante variável nesta descrição. Inicialmente, este lugar-comum que coloca a internação psiquiátrica como resposta prioritária a diferentes fenômenos relacionados a álcool e drogas- desde conflito familiar até abstinência ao álcool- fica legitimado pelo Estado. No exemplo dado, o SAMU de fato se torna um coletor de usuários de drogas desagradáveis ao convívio, mal comportados e incômodos à família. O critério que define a capacidade de decidir por si é totalmente arbitrária no caso de uso de álcool e drogas. Qual o período que dura um quadro paranóico de um usuário de drogas durante o período de intoxicação? Duas horas, dois dias? E após este “período de insanidade”, o que justifica a permanência de um usuário de drogas numa internação involuntária?

Práticas sociais normativas e de exclusão uma vez instauradas ganham lógica em si mesmas. Desta forma, uma vez internado um usuário de álcool e drogas de forma involuntária, ele fica sujeito a novas internações da mesma natureza. Porque o procedimento perde o significado de cuidado e proteção e passa a ser uma resposta estereotipada ao comportamento desviante do usuário de drogas.

Na outra extremidade, numa compreensão macropolítica, a instalação de forma sistemática de uma política higienista que associa internação compulsória à limpeza das áreas públicas de usuários de drogas, trará repercussões que ultrapassam muito o âmbito da saúde. Desde 2003 a política em construção para usuários de álcool e drogas é referenciada na Reforma Psiquiátrica e as ações têm como pressuposto a garantia de protagonismo dos usuários da rede frente ao próprio tratamento. Isto implica em voluntariedade, compreensão da complexidade do fenômeno de uso de drogas, garantia dos direitos civis dos usuários e, principalmente, fortalecimento de uma face protetora do Estado. A adoção de uma política pautada na internação involuntária é uma declaração explícita de que, aos olhos do Estado, usuários de drogas estão sujeitos a perderem o protagonismo da própria vida a partir de um limite dificílimo de ser definido. Esta dificuldade (a partir de quando o usuário de drogas deixa de ser responsável pelos próprios atos?) tende a definir critérios próprios que não obedecem uma lógica técnica, mas remetem à lógica de exclusão social.

O risco de reinternação em hospitais psiquiátricos é muito maior de uma primeira internação. A literatura discute há mais de 15 anos um fenômeno chamado de porta giratória, no qual poucos usuários ocupam leitos recorrentemente, na medida em que após uma primeira internação psiquiátrica, familiares passam a ter menos continência e tolerância com os sintomas do paciente. O isolamento tem esta característica, não promove o contato que permite a adaptação diante da diferença.

O esvaziamento das cracolândias na lógica de “limpar” o espaço público resgata um Estado autoritário e excludente digno da República Velha, analogia que é reforçada pelo discurso médico que teoricamente legitima o processo. Da mesma forma do que ocorre com a família de um paciente psiquiátrico internado num hospital, se a sociedade brasileira assumir este caminho, estará iniciando uma escalada de intolerância. Uma vez esvaziadas as ruas, a tolerância com a diferença tende a diminuir cada vez mais. É importante entendermos que a figura do usuário de drogas está sujeito a um estigma de outra natureza que o louco. Os anos de ideologia de guerra contra as drogas colocaram usuários de droga numa posição supostamente ameaçadora, envolvidos com violência, tráfico, transgressão. Diante deste cenário, a reação tende a ser proporcional ao incômodo.

Assim, por trás da adoção de uma política de internação involuntária em massa para usuários de drogas não está apenas a diretriz de uma política de atenção. A dimensão das implicações do fenômeno aponta para uma decisão não apenas de qual a política de saúde devemos adotar, mas qual a sociedade que queremos construir.

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