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Junho 09, 2014

“O sistema penitenciário é uma de nossas sombras, que preferimos esconder em um canto escuro do cérebro”

Senhor, anota meu nome e minha matrícula? O lugar esquecido pelos juízes

Bruno Paes Manso

Foto: Gabriel Uchida Dia de jogo do Brasil e Panamá. Véspera de Copa do Mundo. São 13 horas no CDP III de Pinheiros, onde quatro raios superlotados comportam 1.850 homens. O prédio foi feito, na verdade, para 572 pessoas. É hora do banho de sol e todos estão do lado de fora. Em cada um dos pátios, retângulos menores que uma quadra de […]

Dia de jogo do Brasil e Panamá. Véspera de Copa do Mundo. São 13 horas no CDP III de Pinheiros, onde quatro raios superlotados comportam 1.850 homens. O prédio foi feito, na verdade, para 572 pessoas. É hora do banho de sol e todos estão do lado de fora. Em cada um dos pátios, retângulos menores que uma quadra de salão, os presos jogam futebol num ambiente de Maracanã lotado. Cinco jogadores para cada lado. Os demais 1.810 presos apenas observam. O público é maior do que muitos jogos da maioria dos campeonatos regionais do Brasil.

Eu e mais três colegas, André, Nikolaos e Rafael, pesquisadores do Núcleo de Estudos da Violência da USP, entramos em duas das quadras, acompanhando do padre Valdir João da Silveira, padre Eugênio e Marcelo Naves, da Pastoral Carcerária, para conhecer mais de perto a realidade do sistema penitenciário paulista. Há um misto de tensão e curiosidade na entrada. Qual o efeito que a presença de quatro extraterrestres, chegando do nada, apresentados como estudantes da USP, pode ter naquela massa abandonada?

Descobrimos logo ao entrar. Eu carrego um bloquinho de anotação e uma caneta bic. É o suficiente para seja visto como uma boia jogada ao mar no meio de um naufrágio. Eles vão nos rodeando aos poucos. Bastava demonstrar algum interesse pelas histórias para que começassem uma fila de lamentações. Trajetórias trágicas que quase sempre se repetem, apesar de serem acusados por tipos de crime diferentes. No CDP III, há casos de furto, Lei Maria da Penha, blitz da Lei Seca, crimes sexuais, crimes “famosos” ( tiveram repercussão na imprensa) e com medidas de tratamento (para os que tem problemas psiquiátricos ou cometeram crimes relacionados à dependência – de álcool e/ou outras drogas). O drama da maioria é parecido. Eles viram carne podre na máquina emperrada do judiciário paulista, ineficiente, um castelo de cartas carcomidas, formada por juízes que parecem muito eficazes em superlotar o sistema, mas que não concedem os direitos de progressão e de cumprimento de pena garantidos pelo processo de execução penal. “Apodreçam!” É a sentença.

Em duas horas, foram cerca de 40 histórias. Se ficasse mais tempo, viriam muito mais. Enquanto ouço, eu imagino os juízes de São Paulo, vestidos com suas togas pretas, satisfeitos por serem rigorosos e por criarem uma falsa sensação de segurança ao retirar essas pessoas do convívio e as enviarem para um depósito de gente.  Um jeito tão caro e burro que o Estado tem para produzir pessoas piores. Fico cansado. As togas pretas agora me lembram as imagens dos dementadores, que provocam estados de profunda depressão ao sugar a esperança daqueles com quem entram em contato.

“O senhor pode anotar o meu nome? E a minha matrícula?” Ouço repetidas vezes, antes das histórias começarem. Todos aguardam sua vez. Eu explico que não posso fazer nada. Que eles precisam falar com os defensores, acionar seus familiares, pedir ajuda para quem possa cuidar pessoalmente de cada caso. Mas não adianta. Alguém tem um bloquinho de papel e uma caneta em mãos. E lá vêm eles: se agarram no fiapo de esperança que eu represento. Ainda penso como a esperança talvez seja um dos combustíveis vitais do ser humano. Fechado entre a multidão abandonada, nem eu nem meus colegas sentimos medo. Há no ar uma certa cumplicidade e um autocontrole entre eles próprios. Podemos entrar e sair das celas lotadas e conversar com quem quisermos.

Segundo os relatos, muitos são presos provisórios, como João Carlos, esperando há três anos no CDP pelo julgamento, sonhando com o dia em que será enviado a um presídio. Nos CDPs, quase não há vagas em escolas ou trabalho. A superlotação é a maior do sistema. São 50 pessoas em celas para 12 lugares, com oito camas. Redes nas paredes são proibidas e por isso eles dormem no chão e de lado – a posição se chama facão. O Estado não fornece quase nada e por isso eles dependem dos jumbos trazidos pelas famílias. Os gastos dos familiares com presos no CDP é cerca de R$ 300 mensais. Leva-se papel higiênico, produtos de limpeza, comida, roupas, cobertor etc.

Anoto o telefone da família de Alexandre, preso faz uma semana. Ele veio de Jacareí e seus pais não sabem que ele está preso. “Pede para que eles venham me visitar urgentemente esse domingo. Não tenho cobertor, não tenho nada. Tô passando frio. Na primeira visita é só eles trazerem o RG”, explica. Eu anoto o telefone e me comprometo em dar o recado.

Outro me conta a história de sua prisão em um baile funk na periferia da zona norte. Estuda logística na Fatec e tem cara de nerd, com óculos de armação moderna. No meio do pancadão, foi pego em flagrante pela PM em situação obscena com uma garota de 13 anos. O que é crime, de acordo com a lei. “Veja só minha situação. Uma das letras de um funk famoso diz “novinha vem, novinha vai”. Elas enchem o baile. Fiquei com uma menina e fui condenado. Imagina quantos vão ser preso por isso”, diz. Ele tem razão. É muita hipocrisia. O “sexo ostentação” é popular e aceito socialmente. É tema recorrente das letras de funk, estilo de maior sucesso musical atualmente no Brasil. Mesmo assim, quando o PM o vê com a menina, ele deixa de ser o nerd da Fatec para se tornar mais um “criminoso a lotar do CDP”. Os juízes, claro que condenam. São uma peça na engrenagem nessa linha de produção do encarceramento em massa.

Há presos condenados que deveriam já estar cumprindo pena nos presídios, mas que ficam anos seguidos no CDP. Um grupo de homens pede para que eu faça uma denúncia: eles são 140, condenados em medida de tratamento, que deveriam estar internados no Hospital de Franco da Rocha, mas que seguem no CDP. Quase não há psiquiatras para fazer o exame. Por isso, eles ficam onde não deveriam estar. O funcionário confirma que há 280 presos em medida de tratamento espalhados pelos raios.

Há casos de injustiça que me parecem mais grotescos. Por isso digo ao preso que vou tentar averiguar. Elielton de Santana, matrícula 112.473, me conta que havia cumprido pena até 2004, quando foi colocado em liberdade. Estava fora há dez anos e atualmente trabalhava na Prefeitura de São Paulo, como gari na empresa Provac, que limpa a Feira da Madrugada. Quando foi tirar título de eleitor para votar, faz 15 dias, soube que se nome ainda não havia sido retirado da captura. O que o tornava um foragido. Não sei se é verdade. Os outros presos o apoiam e pedem que eu interceda. Buscarei ajuda da Defensoria Pública. Será que alguém mais pode ajudar? ONGs?

Os gays, transexuais e os travestis na cela 10 falam que não querem ficar separados dos demais presos. Em maio, uma nova resolução feita a pedido da comunidade LGBT determinou que o grupo seja separado nas prisões masculinas. Só que no CDP III, o grupo LGBT discorda. A cela tem cerca de 20 gays, travestis e transexuais. Eles acham que seria descriminação e se dizem respeitados pelos detentos. Querem só dormir em cela separada, o que já ocorre. “Mas o convívio é importante. Não queremos ser segregadas. Vivemos juntos do lado de fora. Não há porque ser diferente aqui dentro. Quem fez o pedido ao Governo, nunca ficou preso”, uma delas, com o corpo e espírito de mulher, me explica.

Tantas histórias que ficarão de fora. Novamente saio com a sensação de que minha entrada de nada vai adiantar e sigo cético com o jornalismo. Será que serve para alguma coisa? Para quase nada. O sistema penitenciário é uma de nossas sombras, que preferimos esconder em um canto escuro do cérebro. Os leitores vão falar que eu defendo direitos de bandidos. Minha sensação é de que estamos seguindo rumo à barbárie. Parece haver muito ódio e pouca reflexão.

Padre Valdir ainda me pede uma ajuda. No Centro Hospitalar do Sistema Prisional, no contrato feito entre o Estado e a Santa Casa para tratar os presos, não foi previsto roupas íntimas. É lá que as grávidas condenadas vão ter seus filhos. Mas não há calcinhas. A Pastoral fez campanhas para arrecadar peças íntimas para elas.  Padre Valdir pede que eu ajude na cobrança dessa demanda junto ao Estado. Meu Deus do Céu! Governador, Secretário, por favor, vocês podem fornecer roupas íntimas para as mulheres grávidas no hospital penitenciário? Quem fez esse convênio? Saio do CDP III com meus colegas. Padre Valdir sugere uma foto do grupo em frente ao local. Tenho a sensação de ter sido sugado horas e horas por um dementador.

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