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Agosto 22, 2017

O vínculo como estratégia de cuidado – parte dois

Por Juliana Paula*
Publicado originalmente no Portal Geledés

Leia a primeira parte do texto aqui.

Na rua, no centropop e no CAPS trabalhamos com Redução de Danos (RD), que é uma proposta de cuidado que não ignora aquela pessoa que não consegue ou não deseja parar de consumir drogas, priorizando a pessoa e não a substância que ela usa, respeitando o direito de escolha e a capacidade de reflexão e decisão daquela pessoa.

A redução de danos não impõe certezas, ela constrói possibilidades

Essa construção é feita pela pessoa e com ela: o sujeito que usa drogas, que é também o maior beneficiado com a redução de danos, o único capaz de opinar sobre si mesmo de maneira legítima.

Tal linha de cuidado não contempla os interesses imediatistas que costumam ser abarcados pela internação compulsória, por exemplo. Esta que se repete sem que seja provada sua eficácia. Ao invés disso, vemos histórias e mais histórias de pessoas que já estão na vigésima internação sem conseguir manter-se abstinentes, que após sair da internação reincide num consumo por vezes muito mais pesado do que o que fazia antes dela. Na minha trajetória já conheci adolescente de 17 anos que havia sido internado quase dez vezes. Mesmo com cada internação trazendo consigo a frustração, o trauma e a reincidência no uso, na maioria dos casos, permanecemos cegas e cegos, negando a necessidade de mudar esse jeito de fazer.

A redução de danos não pode se efetivar de outra maneira senão pelo vínculo, pois vê a pessoa e sua singularidade e parte daí: da singularidade daquela pessoa e da possibilidade de construir com ela uma relação, um encontro que permita o cuidado. A redução de danos não varre as pessoas das ruas como lixo, ela não destrói seus pertences nem joga fora seus documentos pessoais, suas identidades (e não estou falando do RG apenas).

A meu ver, dois motivos tornam a redução de danos tão importante:

1) Por ter sido uma iniciativa que surgiu de baixo para cima. As primeiras pessoas a pensar a redução de danos da maneira mais próxima da que temos hoje foram as que usavam heroína e não queriam contrair doenças graves por conta desse consumo. Não foram os acadêmicos ou o governo. A redução de danos é fantástica por ter nascido da base, da rua e da autonomia das usuárias e usuários que mostraram não serem pessoas “sem futuro”. Ao contrário da sociedade “sadia” ao seu redor, essas pessoas não consideraram que “se usavam drogas, o caso era perdido e nada poderia ser feito”, mas encontraram formas mais saudáveis e seguras de fazer seu consumo, com uma motivação também pautada na saúde coletiva, uma vez que a redução de danos se reflete tanto nos riscos pessoais e individuais quanto nos sociais e coletivos. Exigiram, reivindicaram, fizeram acontecer e uma política pública passou a existir. O Estado se dobrou diante dessa resistência.

2) Porque é uma iniciativa que respeita a escolha e o limite de cada um. Como já disse anteriormente, a redução de danos considera o direito de escolha e a capacidade de decisão de cada pessoa.

Compreender essa lógica é agir em prol da saúde coletiva, da prevenção e da promoção de saúde, é respeitar o direito de escolha da pessoa, o direito de causar dano a si mesmo e à sua saúde, se assim desejar, o direito de escolher qual subterfúgio utilizará para lidar com a dureza da vida.

Esse direito é de todas e todos e não pode ser retirado sob o pretexto de uma política de saúde pública que, na realidade, é uma política de controle e higienismo social, pautada no domínio e no encarceramento em massa de determinadas populações. Uma política de extermínio disfarçada de política de saúde.

Trabalhar através do estabelecimento de vínculo e visando a redução de danos é compreender que ações intersetoriais, que visem a garantia de direitos básicos, a dignidade humana, a redução da vulnerabilidade e do risco social são essenciais quando se busca respostas à questão das drogas e que tais inciativas podem custar menos aos cofres públicos do que o custeio de centenas de internações em comunidades terapêuticas e clínicas, onde crescem as denúncias de violência, tortura, suicídios e óbitos.

Numa ocasião, visitei uma comunidade terapêutica onde uma mulher havia se suicidado, “coincidentemente” após passar por uma sessão em que ela ficava sentada numa cadeira no meio de uma roda. Em volta dela, diversas pessoas que dividiam com ela aquele espaço, seja como internas ou como colaboradoras (ex-internas, que na maioria das vezes trabalham sem salário ou quaisquer direitos trabalhistas). Essas pessoas a submeteram a uma sessão de tortura psicológica, onde, devido a uma quebra de regras que ela cometeu, teve de ficar naquela cadeira ouvindo todas em volta apontarem seus erros e defeitos publicamente. Tal situação era parte da política interna da instituição para administrar situações de quebra das normas. Nessa mesma noite, suicidou-se. Creio que algumas associações são inevitáveis aqui.

A internação, segundo a Lei 10.216/01, é o ultimo recurso, após todas as alternativas extra-hospitalares estarem esgotadas. Ela pode ocorrer de maneira voluntária (quando é aceita pela pessoa), involuntária (quando a pessoa não aceita, e um terceiro se responsabiliza pela internação) ou compulsória (quando é determinada judicialmente), sendo que nenhuma dessas modalidades de internação pode ocorrer sem a avaliação de uma equipe de saúde, ou pelo menos um médico.

Aqui cabe um esclarecimento a respeito da internação voluntária, que é aquela em que a pessoa aceita a indicação de internação da equipe.

Aceitar não é pedir, nem desejar. No contexto do consumo de drogas temos essa realidade bizarra em que a pessoa, ao declarar que deseja internação, já se torna automaticamente elegível para ser internada de fato.

Não! A internação é o último recurso e deve ser prescrita, ninguém pode mandar uma pessoa para um sítio ou clínica ou hospital, que seja, sem que tenha sido tentado tudo o que era possível antes, sem que a pessoa tenha indicação e necessidade real dessa internação.

Imagine a cena: uma senhora diabética chega ao consultório e diz “não consigo parar de comer açúcar, me internem!”. Imediatamente o médico assina o pedido de internação e a senhorinha vai para uma fazenda em Itapipoca da Serra e fica lá até sua vontade de comer açúcar diminuir, sem que ninguém tenha avaliado outras possibilidades de auxilia-la, como grupos de orientação e terapia, por exemplo. Para cura-la da compulsão por açúcar, utilizam-se de medicação (nem sempre), trabalho forçado sem remuneração e oração. Parece estranho, né? Imagine ainda que um juiz determine que essa mulher idosa precisa ficar internada por tempo indeterminado até ele considerar que ela está livre da compulsão por açúcar. Justo ele, que não é profissional da saúde, mas da “justiça”.

Não parece fazer sentido, porque não faz. Mas é o que tem ocorrido com relação ao consumo de drogas, principalmente o crack. Uma pessoa que se apresenta hoje num serviço público em São Paulo dizendo querer internação é quase automaticamente internada, sem que se verifique o que pode ser feito antes de pensar em internar. Tem um carro de som convidando as pessoas à internação, como se privação de liberdade fosse a coisa mais normal e menos traumática do mundo.

E a internação compulsória? Oras, se estamos falando de saúde pública, me pergunto e te pergunto, porque o juiz pode determinar o dia da alta se a questão é de saúde e não de justiça? Respondo: porque as pessoas que consomem drogas, que moram nas ruas, que “perturbam a paz”, são réus. A dependência de drogas ainda é uma questão moral e de justiça e isso impede que se trabalhe com redução de danos, isso quebra vínculos e inviabiliza o cuidado.

Cabe esclarecer aqui que não estamos tentando minimizar a questão da dependência de drogas quando estabelecemos um paralelo com a compulsão por doces. O que pretendemos é aproximar a dependência de uma questão de saúde e afastá-la das questões jurídicas.

Quando se fala em tratamento para usuárias e usuários de drogas, o pensamento se volta automaticamente para medidas judiciais e argumentações moralistas. Precisamos enxergar a dependência de drogas como o que ela de fato é: uma questão ampla, que é atravessada por fatores sociais, habitacionais, de saúde, de segurança e muitos outros. Não é caso de polícia, não se resolve com prisão, muito menos com violência.

Faz parte da redução de danos considerar a pessoa inteira e não só o que diz respeito ao consumo de drogas. Reduzir a vulnerabilidade, possibilitando trabalho, alimentação, banho e abrigo, é essencial. Mas compreender as nuances de cada pessoa na sua relação com tudo isso, com as equipes de trabalho e com seus pares, é ainda mais essencial. A questão não é apenas oferecer trabalho, mas pensar os tipos de trabalho, as condições de trabalho, o significado do trabalho naquele momento para aquela pessoa.

Oferecer um trabalho que não tem nenhum sentido ou ainda oferecer um emprego formal para alguém que está há muitos anos sem uma rotina “padrão” é o mesmo que pedir para fracassar, é submeter a pessoa à mais uma rejeição e mais uma frustração desnecessariamente.

O mesmo se aplica ao abrigo. Você dirá “a prefeitura inaugurou os CTAs”, eu digo que a pesquisa nacional da população de rua aponta que a maioria dessas pessoas prefere a rua que os albergues.

Quando pergunto por que muitas pessoas preferem a rua, as respostas são diversas: muitas regras, as pessoas nos tratam mal, ocorre muita violência, roubam nossas coisas etc. As regras geralmente são impostas e não construídas com quem utiliza o local, o vínculo muitas vezes é prescindido, são locais enormes, passam centenas de pessoas todos os dias, a violência e os furtos são constantes, a impessoalidade é um fato.

Aqui gostaria de sugerir o curta Hotel Laíde, que mostra de maneira muito clara o que tentei dizer acima: um abrigo não é um abrigo sem o vínculo, nada surte efeito sem o vínculo, o vínculo por si já faz muito, mas associado à ações sérias que visem a integridade e que deem suporte social para a pessoa, ele faz muito mais.

“Ah, mas você quer que tenha algo específico pra cada crackeiro? Você acha mesmo que deve gastar tanta energia com esses noias?”

Bem, em nenhum momento eu disse que era fácil. É mais efetivo, é até mais barato e é muito mais humano. Mas fácil, nunca foi e nem será. Porque as pessoas não são fáceis, você e eu não somos fáceis, ser humana é ser complexa, ser humano é ser único. Não podemos mais insistir no erro de tentar afastar dos nossos olhos um problema real, trancafiando pessoas em celas, manicômios, comunidades terapêuticas e caixões.

Encerro transcrevendo um trecho do texto “Redução de Danos e a introdução da complexidade”, da companheira de luta e da Craco Resiste Laura Sahm Shdaior, para deixar claro que a redução de danos não exclui a abstinência, ela apenas reconhece as demais possibilidades de intervenção:

“Ao contrário, a Redução de Riscos e Danos diz respeito a um conjunto de estratégias de cuidado que consideram que entre o consumo problemático de drogas e a abstinência existem diversas possibilidades e que estas são singulares: não há algo que funcione para todos. Não se trata de se opor à abstinência, mas de aceitar também a melhora que não corresponde a ela: valorizar cada intervenção que reduz o risco ou o dano relacionado ao uso de substâncias psicoativas permite que o usuário se aproprie de suas dificuldades e de seu cuidado sem se envergonhar de seu suposto fracasso. A melhora não se restringe ao afastamento da droga, mas sim à melhora na qualidade de vida do sujeito. Sendo assim, vale diminuir a freqüência do uso e/ou a quantidade consumida; vale substituir uma droga por outra que gere menos prejuízos; vale substituir o uso por uma aula de dança, ou por uma partida de futebol, ou por uma conversa boa, depende do gosto dele; vale manter todas as características do consumo, mas se lembrar de comer e de não faltar na consulta médica.”

Muito ainda há para ser dito sobre as estratégias e os modelos de redução de danos, mas esse texto não pretendia ser tão informativo. O que esperamos conseguir com ele é apenas sua atenção e sua reflexão. Rever conceitos pode mudar histórias e salvar vidas.

Cada pessoa é um mundo inteiro de possibilidades a serem exploradas, sempre com ela e respeitando seus limites, essa é nossa proposta. Qual a sua?

*Juliana Paula é psicóloga, integrante da Craco Resiste e do Coletivo DAR.

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