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outubro 23, 2017

Uma guerra que estimula o que diz combater

por Gabriela Moncau, do Coletivo DAR (Grupo de Trabalho Drogas e Cárcere)

Quando se pensa na relação entre drogas e cadeia, a primeira coisa que vem à cabeça é a proibição de diversas substâncias como dispositivo para o encarceramento em massa. Mas de que forma isso acontece hoje no Brasil? E além do surreal crescimento do número de pessoas colocadas atrás das grades, de que forma a questão das drogas atravessa os muros das cadeias?

Não é novidade para ninguém que a criminalização da pobreza tem entre suas roupagens favoritas a guerra às drogas. Desde a última mudança na Lei de Drogas em 2006, a população carcerária mais que quadruplicou. Quem é pobre e/ou preto é considerado traficante e vai preso. Quem é rico e branco, usuário. De acordo com um levantamento feito pelo G1 com os tribunais de Justiça de 22 dos 27 estados brasileiros, o aumento de presos por tráfico de 2005 para 2017 chega a 480%.

Mas as questões que entrelaçam o tema das drogas e do cárcere incluem outros elementos além do revoltante aprisionamento massivo. Drogas usadas como alívio para suportar o sofrimento causado por essa mesma guerra, drogas usadas como controle sobre os corpos daqueles mesmos que se busca aprisionar ou exterminar… Com o intuito de qualificar nossas reflexões e ativismo nesse tema criamos um GT sobre Drogas e Cárcere e vamos trocando ideia com parceirxs que já têm longa caminhada na atuação e pesquisa sobre essas questões.

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Medicalização e cadeia

O sociólogo Fábio Mallart, integrante da Pastoral Carcerária e autor do livro Cadeias dominadas, conta que, em um dos raios do CDP (Centro de Detenção Provisória) I onde está realizando pesquisa, cerca de um terço dos 450 presos faz uso regular de remédios psicotrópicos distribuídos pela administração pública. Segundo o pesquisador, no artigo As pílulas e a prisão: produção e gestão do sofrimento, a principal explicação que as pessoas dão para o uso de medicamentos de tarja preta é de que é para ajudar a suportar o sofrimento.

Superlotação, dificuldade de dormir, alimentação precária, ansiedade por conta da indefinição processual, tristeza, enfim, a lista é longa e não é preciso gastar tantas linhas para pensar nas dores causadas pela tortura de estar preso. Os remédios, assim, são usados por muitos para combater os efeitos gerados pelo próprio encarceramento. Muitos dos entrevistados por Mallart começaram a fazer uso dessas substâncias dentro do cárcere.

O fato é que a guerra às drogas (sendo uma máquina de encarcerar pessoas), em contradição com o que diz combater, é também uma política que estimula o altíssimo consumo de drogas – usadas para amenizar o sofrimento causado por essa mesma guerra. Sim, a guerra às drogas faz as pessoas usarem mais drogas.

O alto índice de medicalização não está restrito ao lado de dentro dos muros das cadeias. De acordo com a Anvisa, o consumo brasileiro do princípio ativo do Rivotril (o clonazepam) era de 29 mil caixas por ano em 2007. Em 2015, segundo IMS Health, esse número atingiu 23 milhões. A cadeia, como parte da nossa sociedade racista do controle e do consumo, e como talvez o mais explícito e concreto domínio sobre corpos, entra também nesse jogo e com a sua intensidade particular.

“As condições mortíferas do cárcere, produto de sua mecânica de funcionamento, desencadeiam efeitos físicos e mentais que são geridos via substâncias psiquiátricas. Nesse ponto, tais medicamentos operam como mecanismo químico de administração de corpos e mentes, possibilitando controles ilimitados”, caracteriza Mallart. A prescrição dessas substâncias nos presídios também se configura como “técnica de gestão da população carcerária, bem como do espaço prisional superlotado”, argumenta, ao citar a frase de uma funcionária de um presídio em Franco da Rocha: “É isso [os psicofármacos] que ajuda a segurar a cadeia, se não fosse isso””.

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Assim, dá para interpretar que essas drogas distribuídas pelo Estado cumprem uma função de “segurar” as cadeias, de manter ali alguma estabilidade. Seja para as pessoas encarceradas aguentarem tanto sofrimento, seja para punir ou “pacificar” aqueles que se revoltam.

“É preciso cuidado ao falar sobre isso, para que não se caia num julgamento moral daqueles que usam remédios”, chamou a atenção uma parceira nossa, em formação sobre o tema organizada pelo Coletivo DAR. Ela tem razão. Não achamos nenhum absurdo que pessoas submetidas ao sofrimento do cárcere queiram mais é achar um alívio no uso de substâncias para lidar com os lentos ponteiros do relógio. O problema é justamente o fato delas terem de aguentar tanto sofrimento. O sofrimento delas deveria ser amenizado de forma mais humana e certeira do que com pílulas: elas não deveriam estar atrás das grades.

Imagina se fosse possível libertar pelo menos quem ainda nem foi julgado? Seriam mais de 220 mil pessoas que deixariam de viver com a corrente no pé. As e os presos provisórios são 33,8% da população carcerária brasileira. Entre eles, a acusação por tráfico é campeã.

Por um lado sobra, por outro falta

Informações e dados quantitativos sobre a população carcerária no Brasil têm sido cada vez mais difíceis de acessar, seja pela Secretaria de Administração Penitenciária (SAP) ou por qualquer instância governamental. O próprio Ministério da Justiça não divulga informações desde 2014. Por que será? Ainda assim, podemos nos basear em relatos e pesquisas qualitativas, que indicam alto nível de uso de remédios psiquiátricos como diazepam e carbamazepina dentro dos presídios, ao mesmo tempo em que faltam medicamentos para o tratamento de outros problemas de saúde.

A história de Rafael Braga, já amplamente conhecida e marcada por prisões e condenações ilegais desde junho de 2013, é um exemplo disso. Entrou saudável na Penitenciária de Alfredo Tranjan, no Rio de Janeiro. Lá, contraiu tuberculose. Depois de idas e vindas na justiça, dos seus advogados alegarem que a doença não estava sendo tratada dentro do presídio e da pressão dos movimentos em torno da campanha por sua liberdade, Rafael conseguiu provisoriamente cumprir pena em prisão domiciliar.

Como Rafael Braga, uma a cada três pessoas que estão presas no Brasil respondem por tráfico de drogas. Também como ele, tantas outras sofrem de tuberculose ou outras doenças contagiosas, como HIV e hanseníase. A falta de tratamento adequado para essas enfermidades é o que a Pastoral Carcerária chamou de “massacre silencioso”. De acordo com ela e com base em dados do Ministério da Saúde, “pessoas privadas de liberdade têm, em média, chance 28 vezes maior do que a população em geral de contrair tuberculose”.

Relatos de integrantes da Pastoral Carcerária, em roda de conversa organizada pelo DAR, atestam que uma reclamação recorrente de presos em São Paulo é de que, ao invés de terem acesso a médicos em caso de queixa de saúde, o que recebem basicamente é dipirona e paracetamol. Em São Paulo, 443 presos morreram em decorrência de doenças nas unidades penitenciárias do Estado nos anos de 2015 e 2016.

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O cruzamento entre o controle psiquiátrico e o penal

Imagine aqueles hospitais psiquiátricos contra os quais tanto lutou e luta o movimento antimanicomial. Imagine a situação das cadeias brasileiras. Agora imagine um filho dessas duas instituições. Tcharam: assim são os chamados hospitais de custódia.

Se o promotor, o advogado ou o juiz entenderem que a pessoa detida tem distúrbios mentais que a tornem “descapacitada”, podem – a partir de laudo psiquiátrico – converter a pena de prisão em medida de segurança num hospital de custódia, que está sob comando da Administração Penitenciária. Diferentemente da pena de prisão, a internação nesses hospitais não tem prazo definido. O prazo mínimo de internação é de 1 a 3 anos. E o máximo é… não, não existe máximo. As pessoas são soltas no dia em que o psiquiatra considerar que não há mais “periculosidade”. Em São Paulo existem três hospitais desse tipo: dois em Franco da Rocha e um em Taubaté.

Em 2016 aconteceu uma rebelião seguida de fuga de 55 pessoas de um dos hospitais de Franco da Rocha (depois foram recapturados). A respeito desse mesmo hospital-presídio o Mecanismo Nacional de Prevenção e Combate à Tortura (MNPCT) fez um documento afirmando ter constatado “indícios de tortura, bem como de tratamentos ou penas cruéis, desumanas ou degradantes“.

Desde a Lei da Reforma Psiquiátrica (n° 10.216) em 2001 e com muita luta do movimento antimanicomial, os manicômios brasileiros foram progressivamente desativados e substituídos por CAPs (Centros de Atenção Psicossocial). Esse processo, no entanto, não atingiu os hospitais de custódia.

Essa estranha mistura do âmbito penal com o da saúde traz à internação um caráter punitivo que vai no sentido oposto dos preceitos de tratamento humanitário e de redução de danos, que regem os paradigmas (conquistados) de tratamento de saúde mental. Como é possível juntar, no mesmo saco, o cuidado da saúde dos sujeitos e a cadeia? Como pode uma coisa ser terapêutica e punitiva ao mesmo tempo?

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Se a gente pensar na internação forçada ou na prisão como uma ferramenta usada pelo Estado para “limpar” da rua pessoas indesejáveis que fazem uso de drogas, o caldo engrossa. Um relatório feito pela ONU em hospitais de custódia em quatro estados brasileiros cita o Centro de Tratamento em Dependência Química Roberto Medeiros, no Rio de Janeiro, como um lugar de tortura. Segundo o documento, “boa parte dos detentos é dependente de drogas”.

“O encaminhamento de usuários de drogas para hospitais não é novidade. Até Lima Barreto foi internado por ser alcoólatra. Mas é verdade que nos últimos dez anos tem havido um aumento da população que entra nos hospitais de custódia por usarem drogas, principalmente o crack”, conta um integrante do GT Saúde e Liberdade da Pastoral Carcerária.

A política proibicionista das drogas, a forma como as drogas são consumidas na nossa sociedade e o encarceramento em massa nos trazem pistas sobre as estratégias políticas de eliminação e gestão daqueles considerados indesejáveis e perigosos.

Mallart ainda afirma que, nesse cenário, a prisão não opera sozinha. A partir da observação das trajetórias de vidas das pessoas que passam pela prisão, o pesquisador chama atenção para o fato de a prisão ser mais uma instituição que marca o cíclico percorrer dessas pessoas por tantas outras – CAPs, albergues, comunidades terapêuticas “, estabelecimentos que “fingimos crer que se destinavam a evitar a prisão”.

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Na visão de Mallart, portanto, a vida daqueles considerados delinquentes não é resultado da falta de políticas governamentais. Pelo contrário: “são o produto de constantes inserções institucionais, de vigilâncias rigorosas e de olhares minuciosos, que conjugam, em suas múltiplas faces: repressão, punição e controle; saúde, assistência e cuidado”.

Assim, a política de drogas – por meio de uma complexa trama de instituições estatais – opera tanto na proibição de certas substâncias como pretexto para ocupações militares, matanças e prisões cujos alvos são pobres e negros, como no estímulo e uso de tantas outras para, de uma outra forma, igualmente gerir e controlar as mesmas pessoas.

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