por Mónica Cuñarro*
 No dia 25 de agosto passado, em uma sentença duplamente exemplar, a Suprema Corte de Justiça da Nação Argentina se pronunciou sobre a causa “Arriola†relativa ao delito de porte de entorpecentes para consumo pessoal, declarando sua inconstitucionalidade.
 Em uma primeira análise da decisão do Máximo Tribunal, pareceria que, longe de ser uma peça jurÃdica inovadora, não faz mais do que retomar os conceitos e fundamentos do precedente “Bazterricaâ€, proferido em 19861, quando os Tratados Internacionais de Direitos Humanos ainda não faziam parte do bloco constitucional. Todavia, ambos os pronunciamentos têm lugar no transcurso de conjunturas geopolÃticas extremamente diferentes, razão pela qual, no dia de hoje, celebramos como um avanço esse retorno jurisprudencial.
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Em 1986, o retorno à democracia após mais de 7 anos de sangrenta ditadura forjou na sociedade argentina um necessidade de respeito pelas garantias pessoais, particularmente, pelo direito constitucional à autonomia pessoal. Porém, no final da mesma década, por influência da Organização das Nações Unidas2 os Estados foram “exortados†a adequar suas legislações locais para assimilá-las à prática dos Estados Unidos da América do Norte, levando como conseqüência direta à modificação legislativa em, pelo menos, toda a região da América Central e do Sul3, com a introdução de uma normativa claramente repressiva e que viola seus princÃpios constitucionais: a sanção da lei 20.771 (e posteriormente da lei 23.737) na Argentina se enquadra em um processo global de repressão e “luta contra a drogaâ€, no marco de uma expansão punitiva e de polÃticas pretensamente de segurança, caracterizadas pela mão dura e a tolerância zero.
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Nesse contexto, deve ser reavaliada a sentença mencionada acima, que impõe claramente uma barreira ao poder punitivo estatal (função própria dos juÃzes, especialmente daqueles que atuam no âmbito penal) e rompe com a citada lógica punitiva.
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Portanto, entrando já na decisão em questão, por que faço menção à sua dupla função?
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Em primeiro plano, a sentença contrapõe-se à legislação impugnada em todos e cada um dos princÃpios consagrados na Constituição Nacional e nos Tratados Internacionais de Direitos Humanos, para concluir indefectivelmente sua inconstitucionalidade. Desse modo, a Corte fundamentou sua decisão no princÃpio da autonomia pessoal (cons. 10º e 36º), no princÃpio da dignidade do homem (cons. 18º), dando ênfase especial ao “arcabouço institucional imposto pela Convenção Constituinte de 1994â€, o qual “tratou de incorporar os tratados internacionais sobre direitos humanos com uma importância equiparada à própria Constituição Nacional†(cons. 16º); e no princÃpio pro homine, segundo o qual “se deverá sempre preferir a interpretação que seja menos restritiva aos direitos†(cons. 23º).
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In that sense, the herein commented sentence is a clear example of an exegetic analysis of the legislation, by opposing the applicable rules to the rights consecrated in the apex of the Argentinean legal order, and by evidencing both their lack of juridical foundation and their blatant violation of the highest constitutional principles of law.
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Nesse sentido, a sentença comentada é um claro exemplo de análise exegética da legislação, confrontando a normativa vigente com direitos consagrados na cúspide do ordenamento jurÃdico argentino, e deixando em evidência tanto sua falta de fundamentação jurÃdica assim como sua gritante violação dos mais altos princÃpios constitucionais de direito.
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Por outro lado, o pronunciamento do Tribunal estabeleceu uma direção inconfundÃvel e ineludÃvel no que se refere à polÃtica criminal relativa à s drogas4. Nesse sentido, o Máximo Tribunal fez alusão a todos os organismos estatais ao recordar “o compromisso ineludÃvel que devem assumir todas as instituições para combater o narcotráfico†(cons. 28º) para finalmente, na sua resolução, “exortar todos os poderes públicos a assegurar um polÃtica criminal de Estado contra o narcotráfico e a adotar medidas preventivas de saúde (…) focadas sobretudo nos grupos mais vulneráveis†(cons. 36º)5.
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A polÃtica criminal no âmbito das drogas, com a exceção de alguns casos excepcionais, tem sido historicamente repressiva, caracterizando-se pelo excesso das penas ali previstas. Mas sua nota caracterÃstica tem sido o aprofundamento da seletividade do poder punitivo, que tem perseguido os consumidores de entorpecentes e os pequenos traficantes, postergando historicamente as investigações mais complexas sobre as denominadas “organizações criminosasâ€.
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A sentença aqui comentada vem saldar uma dÃvida: em primeiro lugar, descrimina o porte de entorpecentes para consumo pessoal, por considerá-lo uma violação dos princÃpios mencionados; consequentemente, aborda a problemática dos que sofrem através de polÃticas sanitárias, o que representa uma mudança paradigmática na temática. E por sua parte, exorta todos os órgãos e instituições do Estado a orientar seus recursos para perseguir e reprimir os delitos de tráfico ilÃcito de entorpecentes, substâncias psicotrópicas e estimulantes quÃmicos, administrando os recursos escassos da administração policial e judicial em prol da perseguição daqueles delitos que causem danos sociais maiores, representando um contra-seletividade do poder punitivo, em concordância com as novas tendências regionais, que procuram articular a repressão ao tráfico de forma conjunta.
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É por isso que, nessa instância, quando se encontra em estudo uma reforma integral da Lei de Entorpecentes (Lei Nº 23.737) por parte do Governo Nacional, e no marco de uma conjuntura regional que tende à descriminação do porte de entorpecentes para consumo pessoal, a sentença aqui analisada erige-se como pedra angular do paradigma repressivo relativo à matéria, assim como de uma necessária mudança profunda na polÃtica criminal.
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Por último não é ocioso recordar que todos os paÃses da região subscreveram os instrumentos de direitos humanos que contêm princÃpios como “ pro homineâ€, “ lesividadeâ€, “ proporcionalidade “, “ legalidade “ , “humanidadeâ€, que por outro lado fazem parte de todas as constituições da região, seja através do sistema de emendas ou conforme o sistema continental europeu, devido ao que não existiria nenhum impedimento para que sentenças como esta, conforme o estabelecido pela corte da Colômbia, possam ser modelos a serem seguidos na região de modo a tornar efetivos os direitos humanos de todos os cidadãos perante os avanços punitivos dos diversos Estados.
* Mónica Cuñarro é coordenadora do Comitê cientÃfico de consultoria para o controle do tráfico ilÃcito de entorpecentes, substâncias psicotrópicas e criminalidade complexa com relação aos usuários de drogas e à s polÃticas para sua abordagem. Além disso, é professora da Universidade de Buenos Aires e conferencista internacional. Especializa-se na revisão e estudo normativo das normas vigentes na América Latina na área penal, de modo a sugerir reformas que possam ou permitam harmonizar as legislações relativas à s drogas.
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 1De fato, o voto do Dr. Petracchi somente remete-se ao voto então motivado.
 2Fazemos aqui especial alusão à Convenção Única sobre Entorpecentes das Nações Unidas (1961), emendada por seu Protocolo de Modificação (1972); à Convenção sobre Substâncias Psicotrópicas das Nações Unidas (1971); à Convenção das Nações Unidas contra o Tráfico IlÃcito de Entorpecentes e Substâncias Psicotrópicas (1988) e à Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional (2000).
 3Assim, é possÃvel fazer menção à s seguintes reformas normativas: Peru em 1982 (última reforma ano 2007), Venezuela em 1984 (reformada em 2005), Chile em 1985 (reformada em 2005), Colômbia em 1986, República Dominicana em 1988, Paraguai em 1988 (Reformada em 2002), BolÃvia em 1988 (não possui reformas), Argentina 1989 (reformada pela última vez em 2005), Costa Rica em 1989, Brasil em 1976 (reformada em 2006), Uruguai em 1974 (reformada em 1998), e Equador em 1990 (reformada em 2004). Observa-se que a grande exceção a esta legislação de emergência foi a República Oriental do Uruguai.
 4Em seu voto, o Dr. Zaffaroni recordou que o controle da polÃtica criminal não é função do Poder Judicial, acrescentando que deveria sê-lo quando resultar em uma violação da racionalidade republicana.
 5Nesse sentido, o Dr. Fayt, que em oportunidades anteriores havia se pronunciado a favor da penalização do porte de entorpecentes para consumo pessoal, considerou em seu voto como “indubitavelmente desumano criminalizar o consumo†(cons. 20º), com relação à abordagem para com os consumidores de drogas.
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