Se para quem tem um dependente quÃmico na famÃlia enfrentar a batalha contra o vÃcio é um desafio, para muitas clÃnicas de tratamento ou comunidades terapêuticas clandestinas que agem em Minas e também em outros Estados o drama dessas famÃlias tem se transformado, cada vez mais, numa verdadeira “galinha dos ovos de ouro”. As denúncias que chegam ao Ministério Público Estadual (MPE) não deixam dúvidas de que o desespero de muitos pais e mães virou sinônimo de negócio rentável para donos de estabelecimentos irregulares, que se escondem atrás de um sistema de fiscalização extremamente frágil e cobram verdadeiras fortunas por um tratamento que, em certos casos, sequer existe.
A reportagem de O TEMPO apurou que há unidades que chegam a cobrar até R$ 33 mil por um tratamento de 180 dias. Em Minas, onde a internação involuntária de pacientes em comunidades terapêuticas é proibida por lei, só nos últimos quatro meses, cinco estabelecimentos foram interditados pela Promotoria Especializada de Saúde. Todos funcionavam em Uberlândia, no Triângulo Mineiro. Enquanto o Ministério Público tenta fechar o cerco por aqui, estabelecimentos de fora, principalmente do interior de São Paulo, encontram um campo fértil para agir. Para quem vive em drama, o mÃnimo a fazer antes de contratar os serviços de uma clÃnica particular é procurar se informar junto aos órgãos que normatizam o funcionamento desses estabelecimentos.
Em Uberlândia, as denúncias contra os estabelecimentos interditados neste ano impressionam pela crueldade, conta o promotor Lúcio Flávio de Faria. Pacientes que atravessaram os portões dessas pseudoclÃnicas levados pela esperança das famÃlias de que voltariam “curados” teriam sido submetidos à s mais terrÃveis sessões de crueldade.
As investigações do Ministério Público constataram desde casos de cárcere privado e tortura até acusações de violência sexual. Três pessoas, entre proprietários e funcionários dos locais investigados, estão presas. Ainda segundo o promotor, nas cinco clÃnicas interditadas, todos os pacientes, entre eles menores, estavam internados involuntariamente.
A promotoria coletou relatos de jovens que denunciaram que qualquer desobediência à regra do lugar era motivo para castigos como espancamento com porretes e torturas com choques elétricos. Conforme o promotor Lúcio de Faria, além de infringirem a Resolução nº 101/01, da Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa), e a Lei Antimanicomial, as clÃnicas irregulares violam os direitos dos pacientes.
Na capital, a promotoria de Justiça de Defesa da Saúde apura a internação involuntária de um mineiro, de 21 anos, em uma clÃnica da cidade de Piedade, no interior de São Paulo. Por telefone, o rapaz – que não terá o nome revelado – nos contou o drama que vive desde que foi mandado para o local pelos pais, há dois meses. “Esse lugar interna pessoas que não têm condições de conviver em sociedade, e esse não é o meu caso. Preciso sair daqui se não vou enlouquecer”.
O rapaz acusa a mãe de interná-lo à força porque ele é homossexual. “Não faço e nunca fiz mal a ninguém. Beber e fumar maconha não faz de ninguém um criminoso que tem que ser privado do convÃvio dos amigos e familiares. Minha mãe não aceita minha opção sexual”, explicou.
O drama relatado pelo rapaz é impressionante. Ele conta que foi apanhado de surpresa em sua casa, em Belo Horizonte, sem qualquer exame prévio. “Três homens me cercaram e me aplicaram uma injeção. Quando acordei, já estava neste lugar”. O jovem diz que foi vÃtima de maus-tratos e conta que, dos 60 dias de internação, já chegou a ficar 25 na chamada “solitária” como forma de castigo. Com a voz embargada, antes de terminar a ligação, ele revelou que no lugar há muita violência. “Temos que fazer o que eles querem, do contrário, os castigos são aplicados, sem piedade”.
A reportagem de O TEMPO também fez contato com a mãe do interno, que saiu de Belo Horizonte e está em São Paulo desde que contratou os serviços da clÃnica. Ela dá outra versão para a história. “Conheço o meu filho. Ele estava utilizando drogas pesadas e podia causar danos irreversÃveis a sua saúde”. Segundo ela, todas as medidas foram tomadas dentro da lei. “Jamais faria algo para prejudicar o meu próprio filho”.
O promotor Bruno Alexander, que recebeu a denúncia, não quis dar detalhes do caso. Segundo ele, a investigação é sigilosa. “Recebemos dezenas de denúncias sobre o translado de pessoas para clÃnicas em outro Estado. Fazemos os primeiros levantamentos e depois encaminhamos tudo ao promotor da comarca responsável. Ainda estamos aguardando o resultado da maioria”, explicou. A Lei Federal nº 10.216/01 determina que todas as internações involuntárias devem ser comunicadas ao Ministério Público, num prazo de 72 horas, assim como os casos de alta.
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A diretora terapêutica da clÃnica em Piedade, a psicóloga Cláudia de Oliveira Soares, informou que todos os procedimentos realizados são padronizados e normatizados pelos órgãos competentes. “Sabemos que existe uma lei que permite a internação involuntária, desde que o Ministério Público Estadual (MPE) seja comunicado em até 72 horas. É o que fazemos”, explicou. Ela ressaltou que o paciente mineiro foi internado a pedido da mãe, e o procedimento, comunicado ao MPE.
Outros casos. São inúmeros os casos de pais ou responsáveis, desesperados com o fato de o filho ser usuário de drogas, que acabam recorrendo a tratamentos psiquiátricos e, em situações mais radicais, a internações involuntárias. Mas, conforme o psiquiatra Valdir Ribeiro Campos, especialista em dependência quÃmica, nem sempre a internação é indicada. Isso, segundo ele, porque nem todo usuário de drogas é um dependente.
De acordo com Campos, os casos que precisam de internação valem para pacientes graves que oferecem riscos para eles próprios e para outras pessoas e quando os recursos extra-hospitalares não se mostram suficientes. “Há circunstâncias sérias como aquelas em que os dependentes passam a ameaçar e agredir seus familiares, e também os que apresentam quadros psicóticos, sofrendo alucinações e delÃrios, o que pode resultar em homicÃdio”.
Porém, para que haja a internação, os familiares dos pacientes devem observar alguns cuidados. O procedimento deve ser autorizado por um médico registrado no Conselho Regional de Medicina (CRM), onde a unidade hospitalar ou clÃnica de tratamento esteja localizada.
Em Sete Lagoas, na região Central, encontramos um outro caso de uma famÃlia, que, desesperada, acabou acreditando nas promessas de uma clÃnica particular. A internação involuntária de M.P, 64, dependente do álcool, providenciada por familiares em uma comunidade terapêutica da cidade, surgiu como “a luz no fim do túnel” para o problema.
Mas a bem-sucedida recuperação, com base em disciplinas religiosas, ficou apenas nas promessas. Três meses depois de ser levado para a instituição, o homem, que deveria ficar pelo menos um ano no lugar, retornou para casa. Além de não apresentar qualquer evolução, M. logo voltou a beber.
Para G., 37, um dos filhos de M.P., o erro começou justamente porque os parentes não conheceram o lugar antes da internação. “Fomos iludidos pelas promessas dos responsáveis. O lugar não tinha sequer uma estrutura. A verdade é que não havia um tratamento real para os dependentes quÃmicos. Não existiam terapias de ressocialização nem enfermeiros de plantão”, contou. Por mês, a famÃlia pagou quase R$ 500. “Meu pai ficava nos perguntando como é que tivemos coragem de mandá-lo para um lugar daquele. Nessa hora, a sensação de culpa nos derruba”.
efeitos. Para Ana Machado, referência técnica em atenção ao uso de álcool e drogas, da Coordenação Estadual de Saúde Mental, os efeitos nos paciente deixados em lugares irregulares são devastadores. “Além de contribuÃrem para o agravamento dos aspectos relacionados à dependência quÃmica, os procedimentos inadequados também agridem a saúde fÃsica e mental”, diz.
Na tentativa de combater as irregularidades nas comunidades terapêuticas de Minas, foi criado no Estado um grupo de cooperação técnica, composto por representantes da Subsecretaria Antidrogas, da Secretaria de Estado de Saúde. A finalidade é coordenar o desenvolvimento das ações voltadas às 150 comunidades terapêuticas e monitorar esses lugares. Já as fiscalizações são de responsabilidade das vigilâncias sanitárias municipais.
A base do tratamento dos dependentes quÃmicos do Sistema Único de Saúde (SUS) são os Centros de Atenção Psicossocial Ãlcool e Drogas (CAPs ad), espalhados pelo paÃs. Ao todo, em Minas, são 18 unidades. Duas delas funcionam em Belo Horizonte – o Centro de Referência à Saúde Mental (Cersam-BH) e o Centro Mineiro de Toxicomania (CMT). Esses espaços trabalham com estágios motivacionais e prevenção à recaÃda.
Publicado em: 16/11/2009