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Março 01, 2010

A Guerra Química – A pouco contada história de como o governo dos EUA envenenou o álcool durante os anos de Proibição com consequências mortais

Por Deborah Blum

Traduzido pelo Coletivo DAR de Slate

Era véspera de natal de 1926, as ruas cintilavam de neve e luzes, quando o homem com medo de Papai Noel cambaleou para dentro do pronto socorro do Hospital Bellevue em Nova Iorque. Ele estava soluçando de medo: Papai Noel, ele continuava a dizer às enfermeiras, estava atrás dele com um bastão de beisebol.

Antes que a equipe do hospital desse conta do quão doente ele estava – a alucinação induzida pelo álcool era só um sintoma – ele morreu. O mesmo aconteceu com outro festejador natalino. E outro. Conforme a noite de natal chegava, a equipe do hospital contou mais de 60 pessoas passando muito mal e oito pessoas mortas devido a ingestão de álcool. Nos próximos dois dias, mais 23 pessoas morreram na cidade por estarem comemorando a data.

Os médicos estavam acostumados ao envenenamento por álcool naquela época, uma rotina na era da Proibição. Os whiskies e supostos gins contrabandeados muitas vezes faziam as pessoas passarem mal. As bebidas produzidas em destilarias escondidas frequentemente vinham contaminadas com metais e outras impurezas. Mas esse caso repentino era diferente. Os investigadores logo se deram conta de que as mortes eram cortesia do governo dos EUA.

Frustrados pelo fato das pessoas continuarem a consumir muito álcool mesmo depois de sua proibição, oficiais federais decidiram tentar um forma diferente de fazer cumprir a lei. Eles ordenaram o envenenamento do álcool industrial produzido nos Estados Unidos, produto que era regularmente roubado por contrabandistas e revendido como bebidas destiladas. A idéia era assustar as pessoas de forma a fazer com que elas desistissem das bebidas ilegais. Ao invés disso, até 1933 quando a Proibição teve um fim, o programa de envenenamento federal tinha matado pelo menos 10,000 pessoas segundo estimativas.

Embora muito esquecida nos dias de hoje, a “guerra química da Proibição” permanece sendo uma das mais estranhas e mortais decisões na história estadunidense da implementação de leis. Como um de seus mais francos opositores, Charles Norris, legista-chefe da cidade de Nova Iorque durante a década de 1920, costumava dizer, foi “nosso experimento nacional de extermínio”. Álcool envenenado ainda mata – 16 pessoas morreram esse mês após beber líquidos letais na Indonésia, aonde contrabandistas fazem seus próprios destilados para evitar impostos altos – mas isso é devido a empresários inescrupulosos mais do que a ordens governamentais.

Eu tomei conhecimento do programa de envenenamento federal enquanto pesquisava para meu novo livro, O Manual dos Envenenadores, que se passa na época do jazz em Nova Iorque. Minha primeira reação foi de que eu devia ter entendido errado. “Eu nunca ouvi dizer que o governo envenenou pessoas durante a Proibição, você já?” eu dizia a meus amigos, familiares e colegas.

No entanto, eu lembrei da decisão controversa do governo dos EUA na década de 1970 de pulverizar campos mexicanos de marijuana com Paraquat, um herbicida. Seu uso era primariamente voltado para a destruição de plantações, mas oficiais do governo insistiam que ao tomarem conhecimento da toxina os usuários de marijuana iriam se sentir desencorajados a fumar. Eles ecoaram a posição oficial da década de 1920 – se algumas pessoas acabassem sendo envenenadas, bem, eles fizeram isso a si mesmos. Embora o Paraquat não fosse tão tóxico, os protestos forçaram o governo a desistir do plano. Ainda assim, o incidente gerou uma nada surpreendente falta de confiança nos motivos governamentais que se revela nos ocasionais boatos que circulam nos dias de hoje sobre agências federais, tais como a CIA, misturarem veneno nos carregamentos de drogas ilegais.

Durante a Proibição, porém, um senso de estar a serviço de um propósito maior manteve o programa de envenenamento funcionando. Como o jornal Chicago Tribune escreveu num editorial em 1927: “Normalmente, nenhum governo americano tomaria uma atitude dessas. … É somente no fanatismo curioso da Proibição que quaisquer meios, por mais bárbaros que sejam, são justificados.” Entretanto, outros jornais acusaram os legisladores que se opunham ao programa de envenenamento de estarem mancomunados com criminosos e argumentavam que os contrabandistas e seus consumidores- infratores não mereciam qualquer simpatia. “Será que o Tio Sam deve garantir em primeiro lugar a segurança de bêbados?” perguntou o Omaha Bee de Nebraska.

A saga começou com a ratificação da 18ª Emenda, que bania a produção, venda ou transporte de bebidas alcoólicas nos Estados Unidos. Cruzados com intenções nobres e organizações anti-álcool ajudaram a passar a emenda no ano de 1919 apostando nos medos de falência moral num país que acabava de sair de uma guerra. O Ato de Volstead, ditando as regras de fiscalização, passou pouco tempo depois e a Proibição se tornou efetiva em 1 de janeiro de 1920.

Mas as pessoas continuaram a beber – e em grandes quantidades. Os índices de alcoolismo subiram durante a década de 1920; companhias de seguro avaliaram o aumento em mais de 300%. Bares clandestinos foram prontamente abertos para os negócios. No final da década, por volta de 30.000 existiam somente na cidade de Nova Iorque. Gangues de rua se tornaram impérios de contrabando alicerçados no tráfico, roubo e fabricação de álcool ilegal. A resposta desafiadora do país às novas leis chocou aqueles que sinceramente (e inocentemente) acreditavam que a emenda levaria a uma nova era de comportamento exemplar.

A aplicação rigorosa da lei conseguiu diminuir o contrabando de álcool vindo do Canadá e outros países. Mas os sindicatos do crime responderam roubando quantidades massivas de álcool industrial – utilizado em tintas e solventes, combustíveis e suprimentos médicos – e redestilando- o para torná-lo potável.

Bem, mais ou menos. Álcool industrial é basicamente álcool de cereais com alguns produtos químicos desagradáveis misturados para o tornar impróprio para consumo. O governo dos EUA começou a requerer esse processo de “desnaturação” em 1906 para os fabricantes que queriam evitar os impostos cobrados sobre bebidas alcoólicas. O Departamento do Tesouro dos EUA, encarregado de supervisionar a aplicação da Proibição, estimou que pelo meio da década de 1920 cerca de 60 milhões de galões (mais de 230 milhões de litros) de álcool industrial eram roubados anualmente para suprir os consumidores de bebidas do país. Em resposta, em 1926, o governo do presidente Calvin Coolidge decidiu se voltar para a química como uma ferramenta de aplicação da lei. Por volta de 70 fórmulas de desnaturação existiam na década de 1920. A maioria simplesmente adicionava álcool metílico venenoso à mistura. Outras usavam compostos de gosto amargo que eram menos letais, desenvolvidos para fazer o gosto do álcool ficar tão ruim que ele se tornaria impossível de tomar.

Para vender o álcool industrial roubado, os sindicatos de bebidas empregavam químicos para “renaturar” os produtos, devolvendo-os a um estado potável. Os contrabandistas pagavam a seus químicos muito mais do que o governo pagava e eles se destacavam em seu trabalho. Álcool roubado e redestilado se tornou a principal fonte de bebidas alcoólicas no país. Então oficiais do governo federal ordenaram aos fabricantes que tornassem seus produtos muito mais mortíferos.

Em 1927, as novas fórmulas de desnaturação incluíam alguns venenos famosos – querosene e brucina (uma planta alcalóide da família da estriquinina), gasolina, benzeno, cádmio, iodo, zinco, sais de mercúrio, nicotina, éter, formol, clorofórmio, cânfora, ácido fênico, quinino e acetona. O Departamento do Tesouro também fez com que mais álcool metílico fosse adicionado – até 10% do produto total. Foi esse último que se mostrou mais mortífero.

Os resultados foram imediatos, começando com a horrível contagem de corpos nos últimos dias de 1926. Oficiais de saúde pública responderam em choque. “O governo sabe que não está acabando com o consumo de bebidas alcoólicas ao botar veneno no álcool,” o legista de Nova Iorque Charles Norris disse em uma conferência de imprensa organizada as pressas. “Ainda assim ele continua com seu processo de envenenamento, negligente ao fato de que as pessoas determinadas a beber estão absorvendo diariamente esse veneno. Sabendo que isso é verdade, o governo dos Estados Unidos deve ser cobrado por ter responsabilidade moral nas mortes causadas pelas bebidas alcoólicas envenenadas embora ele não possa ser considerado legalmente responsável.”

Seu departamento enviou avisos aos cidadãos, detalhando os perigos do whisky que circulava na cidade: “Praticamente toda a bebida alcoólica que é vendida hoje em Nova Iorque é tóxica,” dizia um alerta de 1928. Ele tornava pública todas as mortes causadas por envenenamento por álcool. Ele encarregou seu toxicologista, Alexander Gettler, com a tarefa de analisar whisky confiscado em busca de venenos – a longa lista de materiais tóxicos que eu citei veio em parte dos estudos feitos pelo escritório do legista de Nova Iorque.

Norris também condenou o programa federal por seu efeito desproporcional nos residentes mais pobres do país. As pessoas ricas, ele apontava, podiam pagar pelo melhor whisky disponível. A maioria daqueles que estavam doentes e morrendo eram aqueles “que não podem pagar caro por segurança e fazem negócios com material de baixa qualidade.”

E os números não eram triviais. Em 1926, na cidade de Nova Iorque, 1.200 foram adoentados por álcool venenoso; 400 morreram. No ano seguinte, as mortes subiram para 700. Esse números se repetiram em cidades ao redor do país conforme oficiais de saúde pública em toda a nação se uniam em um clamor raivoso. Legisladores furiosos contra a Proibição pressionaram por um fim no uso das químicas letais. “Somente alguém que possua os instintos de uma besta selvagem desejaria matar ou cegar o homem que toma um copo de bebida, mesmo que ele a tenha comprado de alguém violando o estatuto da Proibição,” proclamou o senador James Reed do Missouri.

Oficialmente, o programa especial de desnaturação acabou somente quando a 18ª Emenda foi revogada em dezembro de 1933. Mas a guerra química em si sumiu antes disso. Aos poucos, oficiais do governo pararam de falar sobre ela. E quando a Proibição acabou e o whisky de boa qualidade reapareceu, foi quase como se a loucura da Proibição – e as medidas venenosas tomadas para aplicá-la – nunca tivessem acontecido.

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