Com a morte de Glauco e Raoni, a razão entorpecida aflora através de sua principal divulgadora: a grande mÃdia. Comprando sem discussão a versão da defesa de Carlos Eduardo, que optou por culpar o daime pelo crime (ignorando convenientemente os graves problemas mentais que este sofria), levanta-se no momento um debate que inclusive questiona a recente regulamentação da ayahuasca para fins religiosos (vide capa da Veja deste fim de semana).
Por conta deste clima, o DDD desta semana tenta trazer elementos mais qualificados para o debate, através da indicação de dois textos disponÃveis no site do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP). O primeiro é A construção de fronteiras religiosas através do consumo de um psicoativo: as religiões da ayahuasca e o tema das drogas , de Sandra Goulart, no qual a autora aponta as origens da utilização da ayahuasca e traça uma diferenciação entre os principais grupos que a utilizam de maneira ritualÃstica no Brasil hoje. Uma reflexão duplamente importante, tanto para entendermos as raÃzes deste uso quanto para não cairmos no discurso preconceito e generalizante, como se “o daime” ou a ayahuasca fossem um fenômeno homogêneo, algo parecido com o que se faz com a utilização do termo “drogas”, como se heroÃna, cocaÃna e café pudessem ter o mesmo tratamento conceitual.
A segunda indicação é Considerações sobre o tratamento da dependência por meio da ayahuasca , escrito por Beatriz Labate em conjunto com Rafael Guimarães dos Santos, Brian Anderson, Marcelo Mercante e Paulo César Ribeiro Barbosa. Uma interessante contribuição apontando uma potencialidade pouco conhecida e explorada da ayahuasca, a sua possÃvel utilização para o tratamento da dependência de substâncias psicoativas, ou seja, suas propriedades terapêuticas, para além das religiosas.Â
Sandra Goulart explica que “Ayahuasca é um nome quÃchua cuja tradução implica em vários significados de uma bebida preparada a partir de um cipó, que é o Banisteriposis caapi, e das folhas de outra espécie vegetal, a qual
contém o principio ativo DMT (N-Dimetiltriptamina), responsável pelo conteúdo propriamente alucinógeno dos efeitos da bebida. Destas últimas, as mais freqüentemente utilizadas são a Psichotria viridis e a Diploterys cabrerana.Trata-se de um dos psicoativos conhecidos mais potentes no que se refere à capacidade de altera a consciência e a percepção humanas, consumido por várias populações do leste dos Andes e da Amazônia Ocidental. Embora a utilização da ayahuasca conte uma longa tradição indÃgena no Brasil e em outros paÃses da América do Sul, é somente aqui que irão surgir religiões não indÃgenas e urbanas que fazem uso desta substância. Estas religiões surgem na periferia de cidades da região Amazônica, como Rio Branco, no Acre, e Porto Velho, em Rondônia”.
“A partir dos final dos anos setenta estes grupos religiosos começam a sofrer um processo de expansão” prossegue Goulart, “passando a contar com centros e igrejas em grandes metrópoles, como São Paulo, Rio de Janeiro etc.No momento em que a ayahuasca deixa de ser uma bebida exótica consumida apenas na “distante†e também “exótica†Amazônia, sua utilização se insere, cada vez mais, numa discussão sobre o tema das “drogas†em nossa sociedade. Um primeiro aspecto que se evidencia, é que o aparecimento de religiões que fazem do uso de uma substância psicoativa o ponto central de seus conjuntos rituais traz à tona novos modos de pensar e de tratar a questão do consumo de substâncias alteradoras da percepção no mundo moderno, e sobretudo daquelas classificadas como drogas ilÃcitas”.
Bia Labate e seus parceiros apontam que seu texto “apresenta uma reflexão sobre o potencial terapêutico do uso ritual da ayahuasca no tratamento ao abuso de substâncias psicoativas em centros terapêuticos que combinam elementos da medicina e da psicologia ao uso da ayahuasca (no Brasil e no Peru), e nas religiões ayahuasqueiras e grupos neo-ayahuasqueiros no Brasil”. São também discutidas perspectivas para uma futura agenda de pesquisas cientÃficas interdisciplinares sobre este tema, refletindo sobre as possibilidades de diálogo entre biomedicina, antropologia e psicologia, além dos dilemas éticos e metodológicos envolvidos neste tipo de investigação, define o resumo do trabalho.
Destacamos também a seguinte passagem:
“Analisamos os desafios de uma agenda de pesquisas sobre os potenciais terapêuticos da ayahuasca. Se é importante estimular o desenvolvimento de pesquisas cientÃficas nesta direção, estas não devem ser, contudo, o único meio de abordar o fenômeno, e nem tampouco monopolizar a “comprovação†acerca da “eficácia†destes rituais xamânicos, terapêuticos ou religiosos. Vale lembrar que a maioria das práticas diárias da biomedicina contemporânea não é validada pelos critérios mais estritos da ciência médica, isto é, aplicamos etnocentricamente determinadas exigências à “medicina dos outrosâ€, mas não à nossa própria (Winkelman & Roberts, 2007b). Obter uma chancela cientÃfica que deixaria de classificar o uso terapêutico de psicodélicos como eventual “curandeirismo†ou “charlatanismo†e, portanto, impedir a sua perseguição, não exclui o direito destes grupos de terem a sua legitimidade reconhecida a partir de seus próprios termos.É preciso promover um diálogo com os saberes nativos, e expandir as possibilidades do conhecimento cientÃfico sobre sistemas terapêuticos de orientações metafÃsicas diferentes das nossas”.
Boa leitura para todos, sigamos na disputa dentro de mais uma trincheira aberta contra a razão entorpecida.