De volta ao tema das drogas, é pelo menos irônico que enquanto os Estados Unidos discutem a revisão da sua legislação sobre crack no sentido da redução das penas associadas ao seu tráfico e consumo, o Brasil o faça na direção da ampliação delas.
Por lá, a legislação em vigor foi adotada na década de 80, em resposta à expansão do consumo de crack nas grandes cidades do paÃs e à disseminação de informações de que ele seria muito mais aditivo do que outras drogas, provocaria comportamentos violentos, causaria danos sem paralelo à saúde dos seus usuários e aos filhos de gestantes que o consomem, levando ao abandono de crianças e ao risco de criação de uma geração de “crack babies†espalhados pelo paÃs. Os medos coletivos despertados e o tratamento dado pela mÃdia ao assunto levaram à percepção do crack como principal responsável pelo crescimento da criminalidade urbana também em curso, e à aprovação em 1986 e 1988 de uma distinção severa entre os tratamentos legais ao crack e à cocaÃna em pó: a venda ou a mera posse de 5g de crack impõem hoje nos EUA uma pena mÃnima de 5 anos de prisão, enquanto são necessárias 500g vendidas para provocar a mesma pena no caso da cocaÃna em pó e a posse desta ou de qualquer outra droga implica uma pena máxima de 1 ano. Por aqui, a vivência, 25 anos depois, do mesmo fenômeno experimentado pelos EUA naquele perÃodo nos conduz ao mesmo caminho, com a tramitação no Congresso de projetos do deputado Paulo Pimenta (PT-RS) e do senador Sérgio Zambiasi (PTB-RS) propondo a adoção de penas por tráfico de crack de 2/3 a 2 vezes maiores em relação a outras drogas.
Estamos sempre aprendendo quando se trata de quebrar tabus e explorar assuntos até então interditados. Fiz o teste: indagando casualmente alguns conhecidos, muitos não souberam dizer que crack e cocaÃna em pó são formas diferentes da mesma substância, e todos acreditavam que o crack é em si bastante mais perigoso e letal do que a forma em pó. Vale portanto o esclarecimento prévio: quando falamos em crack, estamos falando rigorosamente da mesma substância ativa contida na cocaÃna em pó. Daà usar-se em inglês, com mais precisão, os termos “crack cocaine†e “powder cocaineâ€. A sensação e os danos provocados à saúde pelas 2 variantes são assim os mesmos. As diferenças estão no tempo de absorção, na duração da sensação e no preço. Tragada, a cocaÃna presente no crack atinge a corrente sanguÃnea e o cérebro mais rápido do que quando inalada, o que torna seus efeitos praticamente instantâneos, enquanto a versão em pó leva até 30 minutos para produzi-los. Por outro lado, a permanência desses efeitos é bastante menor no caso do crack. E por conter menos cocaÃna na sua composição, o crack é também bem mais barato.
Tudo isso se aprende verificando as informações disponÃveis nos sites de instituições de pesquisa dedicadas ao assunto: aqui os exemplos da Escola Paulista de Medicina, da UNIAD e da Drug Policy Alliance, nos EUA. Daà para frente é lidar com as hipóteses de que o crack seja necessariamente mais aditivo, mais devastador ou mais associado à prática de violência, a ponto de justificar a distinção no tratamento legal. Nova pesquisa e descobre-se que todas elas são, para ser prudente, pelo menos controversas.
É justamente isso que está em questão hoje nos EUA. Duas décadas depois da aprovação da legislação em vigor, muitas das evidências cientÃficas acumuladas refutam essas suposições, e indicam que o tratamento penal mais severo ao crack serviu apenas para reforçar a atuação seletiva do sistema de justiça sobre negros pobres, por serem estes os varejistas preferenciais do crack e seus consumidores mais visÃveis (embora não, ao menos por lá, a maioria deles). A diferença essencial não seria assim farmacológica, mas econômica. O menor preço e a venda fragmentada ampliam as oportunidades de acesso à droga e expõem a ela um universo de pessoas mais vulnerável e com menos meios de proteção e recuperação – em termos sociais, médicos e legais. E colocam em movimento a reiteração de engrenagens discriminatórias bem conhecidas por todos.
Ainda em 2006, a American Civil Liberties Union cumpriu o papel de fazer o balanço e reunir essas evidências, além de ecoar o seu acolhimento por sucessivas instâncias judiciais e polÃticas do paÃs. Este relatório faz o ponto de forma notável, elencando dados e fontes, enquanto esta carta de apoio à revisão da legislação sintetiza seu conteúdo. Valem a leitura. Bem além deles, a avaliação é respaldada hoje por um número crescente de vozes respeitáveis (valendo entre elas o exemplo emblemático deste editorial recente do New York Times, referindo-se à associação do crack a maior adição ou violência como “mitos†e definindo a distinção como “cientÃfica e moralmente indefensávelâ€), e foi isso que levou o Senado norte-americano a aprovar por unanimidade no último dia 17 a redução de 100:1 para 18:1 da disparidade no tratamento entre as 2 formas da droga. As organizações dedicadas ao tema mantém a defesa da eliminação plena da diferenciação, mas saúdam o avanço.
Acompanhar a história ajuda a não repeti-la, e abordagens comparativas permitem aproveitar acertos e descartar equÃvocos. Quando se lê os relatos, a semelhança entre a história norte-americana dos anos 80 e a nossa de agora é realmente impressionante. Tanto, talvez, quanto os 180 graus de diferença nas rotas atuais das sociedades e parlamentos dos 2 paÃses. Será que não há como escapar de cumprir os mesmos 20 anos de desmandos punitivos para chegar à s mesmas conclusões a que chegam eles agora?
A história é antiga, mas vale também a visita a essa passagem de John Merriman em “Uma História da Europa Modernaâ€, sobre os dramas sociais do continente na segunda metade do séc. XIX:
“O alcoolismo estava devastando muitos paÃses na Europa. Na Inglaterra, a “bebedeira habitual†de trabalhadores com cerveja preocupava reformistas. Um pesquisador da época invocou que não era incomum para muitos trabalhadores gastar um quarto dos seus salários em bebida. O crescimento dramático da produção de vinho na França, Itália, Espanha e Portugal inundou os mercados, reduzindo significativamente seu preço. Em partes da França, o consumo médio de vinho por pessoa (e portanto a taxa para adultos deveria ser ainda maior) era de mais de 227 litros por ano, sem falar em cerveja, brandies e absinto, uma bebida com gosto de alcaçuz e feita de anis ou outras ervas, que é altamente aditiva. […] Movimentos franceses em favor do abstencionismo foram varridos do mapa como diques frágeis pela torrente de bebidas. Nacionalistas, preocupados com as quedas na taxa de natalidade, somaram-se a alguns médicos e reformistas no alerta de que a França corria o risco de “degeneração racial†uma vez que a sua população parasse de reproduzir-se em função da devastação pelo alcoolismo. Somente mobilizando-se em torno de valores nacionalistas o paÃs poderia, argumentavam eles, evitar o colapso total. Na Inglaterra, os movimentos abstencionistas começaram mais cedo e foram bastante mais fortes do que na França, e muito mais ligados à s igrejas, do mesmo modo que na Suécia, onde em 1909 sociedades de abstinência tinham quase meio milhão de integrantes, que assumiam compromissos de parar completamente de beber.â€
A Inglaterra daquela época criou, além de serviços religiosos, “casas de trabalho†para o abrigo compulsório de pobres espalhados por suas cidades, com condições deliberadamente rÃgidas e precárias. Os Estados Unidos do final do século XX criaram um sistema prisional de largo alcance e sofisticadamente seletivo, que mantém hoje atrás das grades 1% de sua população total, 1 em cada 36 hispânicos e 1 em cada 15 negros, a grande maioria por delitos de drogas. O Brasil de hoje já segue este segundo caminho, conforme demonstram os estudos disponÃveis sobre a aplicação da legislação de drogas em vigor no paÃs, e flerta perigosamente com o primeiro, como sugerem relatos recentes vindos de São Paulo e de outras “cracolândias†pelo paÃs.
Nós vivemos hoje, sim, uma epidemia de crack no Brasil e isso é um problema sério. Mas uma observação do assunto para além das informações mais apressadas indica que tudo que não precisamos diante dele é de mais paranóia. Além de atentar para as armadilhas discriminatórias contidas na hipervisibilidade social do fenômeno, a opção pela sobriedade sugere que também aqui o melhor caminho pode não se distanciar tanto daquele recomendável para outras drogas. Aumentar a dose de ciência envolvida nos diagnósticos e soluções. Reconhecer caracterÃsticas e males com sobriedade e comunicá-los sem mistificações. Livrar-se da tentação de respostas punitivas rápidas, atraentes e ineficazes, cujos únicos efeitos visÃveis são o reforço de marginalizações e o aumento dos incentivos econômicos ao mercado ilegal, com seus subprodutos em violência e corrupção. Criar alternativas lÃcitas e publicamente controladas de acesso à s drogas por parte ao menos dos dependentes crônicos, como forma de minar o poder deste mesmo mercado ilegal. Expandir polÃticas de prevenção baseadas na difusão de informações com transparência e honestidade, livres das sombras e da desconfiança causadas pela interdição do assunto. Multiplicar os meios de acolhimento e tratamento à s vÃtimas de dependência, sobretudo enquanto não formos capazes de produzir uma sociedade apta a gerá-las em menor quantidade.