Com a decisão da Suprema Corte argentina de descriminalizar posse de drogas para consumo pessoal perto de completar um ano, mais uma vez nossos rivais no futebol mostram-se muito à frente nos debates por direitos humanos. Desta vez o Senado argentino aprovou, depois de forte mobilização popular (foto), o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo – tornando-se o primeiro paÃs na América Latina a legislar neste sentido. Confira dois textos sobre o assunto, um do Blog do Sakamoto e outro do site de Rodrigo Viana, no qual Ricardo Ferrez relata suas impressões sobre este momento, uma vez que passava férias no paÃs; “ontem, enquanto jantávamos, meu cunhado (hétero) ligou para o meu sogro dizendo que tinha saÃdo do trabalho e se dirigia ao Congresso para a vigÃlia pela aprovação do casamento gay. Senti uma certa inveja. Isso no Brasil raramente aconteceria”. Quem sabe um dia, já passou da hora não é mesmo?
O Senado da Argentina aprovou o matrimônio entre pessoas do mesmo sexo. Quando a presidente Cristina Kirchner sancionar a mudança (e ela o fará, pois é defensora da proposta), o paÃs será o primeiro da nossa machista América do Sul a universalizar esse direito. Gays e lésbicas poderão constituir oficialmente casais, com os mesmos direitos dos pares heterossexuais, incluindo herança, direito a pensões, adoção de filhos. Houve fortes protestos contra e a favor da mudança na legislação mas, ao final, ganhou a razão – vitória que pode ser computada na conta da sociadede civil argentina e suas organizações em prol dos direitos dos homossexuais.
O que mostra, mais uma vez, de que a discussão de quem tem um futebol mais bonito e eficiente está em aberto, mas em termos de civilidade o Brasil ainda tem muito o que aprender com o irmão do Sul. Por aqui, a Advocacia Geral da União defende a união estável de casais homossexuais. Em nome da Presidência da República, a AGU argumenta que as relações homossexuais existem independentemente de amparo legal, embora paÃses já tenham mudado sua legislação para incluir essa possibilidade. O parecer tratando do tema veio para apoiar a Procuradoria Geral da República, que pediu para o Supremo declarar inconstitucional o artigo do Código Civil que considera a união possÃvel apenas entre homens e mulheres.
Na Argentina, para possibilitar o matrimônio, houve uma alteração na legislação trocando “homem e mulher†para “cônjugesâ€. Há propostas tramitando no Congresso Nacional brasileiro para permitir a união civil entre pessoas do mesmo sexo, mas distantes de serem aprovadas. E a questão do matrimônio, então, é lenda. Afinal de contas, isso é pecado…
Apesar da influência de grupos religiosos contrários à mudança, mais cedo ou mais tarde, a lei será alterada no Brasil também, garantindo dignidade e combatendo o preconceito. Já está indo aos poucos: é um homem que consegue estender o plano de saúde para o seu companheiro, é uma mulher que consegue a pensão de sua companheira. O problema é que essa marcha está sendo bem lenta quando, em verdade, deveria correr rápida para dar tempo às pessoas que hoje vivem de desfrutarem uma nova realidade.
É um absurdo que a essa altura da história nossa sociedade ainda esteja discutindo se deve ou não universalizar direitos. Que, de tempos em tempos, gays e lésbicas sejam espancados e assassinados nas ruas só porque ousaram ser diferentes da maioria. Que seguidores de uma pretensa verdade divina taxem o comportamento alheio de pecado e condenem os diferentes a uma vida de inferno aqui na Terra.
Consciência não se aprende na escola, nem é reserva moral passada de pai para filho nas famÃlias. Mas sim na vivência comum na sociedade, na tentativa do conhecimento do outro, na busca por tolerar as diferenças. O Congresso Nacional, que hoje está sentado em cima de propostas de mudança, é fruto do tecido social em que está inserido – e sim, a esbórnia que ganha as páginas policiais, digo, de polÃtica, é um reflexo de nós mesmos. Na prática, uma (não) decisão legislativa tem em seu âmago o mesmo preconceito das piadas maldosas contra gays ou dos pequenos machismos em que nós (e não me excluo disso) nos afundamos no dia-a-dia. O que difere é o tamanho do impacto, não sua natureza.
Coloquemos a culpa no processo de formação do Brasil, na herança do patriarcalismo português, nas imposições religiosas, no Jardim do Éden e por aà vai. É mais fácil atestar que somos frutos de algo, determinados pelo passado, do que tentar romper com uma inércia que mantém cidadãos de primeira classe (homens, ricos, brancos, heterossexuais) e segunda classe (mulheres, pobres, negras e Ãndias, homossexuais etc.). Tem sido uma luta inglória, mas necessária. Que inclui uma profunda reflexão sobre nossos próprios comportamentos. No final, será uma escolha entre a barbárie da intolerância e a civilização.
A batalha contra a hipocrisia
por Ricardo Ferraz
Vejo na televisão a aglomeração em frente ao Congresso Nacional argentino. Faz frio em Buenos Aires, cerca de 3 graus. Mesmo assim, milhares de pessoas saÃram à s ruas para apoiar o projeto de lei que permite a igualdade civil entre pessoas do mesmo sexo. É uma resposta aos setores mais conservadores da sociedade argentina que, no dia anterior à aprovação do projeto, ganharam as ruas da capital convocados pela Igreja. Eram soldados em uma batalha que os bispos convencionaram chamar de uma “guerra contra Deusâ€.
Felizmente, para a Argentina, e mais ainda para a América Latina, eles perderam. Saem derrotados não só porque gays passam a ter os mesmos direitos civis que os heterosssexuais (podem casar-se, tem direito à herança e a adotar crianças), mas sim porque essa espécie de “guerra santa†deixou exposta a verdadeira cara dos setores mais conservadores da sociedade argentina – que não diferem muito da direita do resto do continente americano ao sul do equador.
Durante toda a semana, a sociedade esteve totalmente tomada pelo debate do projeto de lei. Na televisão, em todos os programas, dos mais populares aos mais elitistas, viam-se pessoas discutindo o casamento igualitário, o termo politicamente correto adotado por aqui da união civil entre homossexuais. A direita destilou todo tipo de preconceito. Um deputado ultra conservador da provÃncia de Salta (ao norte) declarou: “não deixo meu filho ir à casa de um casal gay porque na hora de dormir um deles pode aparecer de pijama com um pompom rosa na cabeçaâ€. Em outro programa, um dos mais tradicionais da Argentina, em que uma espécie de Hebe Camargo local recebe os convidados para um almoço, a apresentadora pergunta a um artista assumidamente homossexual: “Você não tem medo que um casal gay que adota uma criança, no futuro, possa estuprá-lo?â€. A representante da Opus Dei, uma advogada que defende representantes do governo militar, faz o discurso do “isso não é normal, Deus uniu os homens e as mulheres, não os de mesmo sexoâ€.
Por outro lado, na TV Pública, criada e mantida pelo governo Kirchner, um programa de debates, chamado “6, 7 e 8â€, edita tudo e resolve dar nome aos bois, colocando os que são contra a medida como inimigos da pátria. “Saiba quem é quem†gritam os letreiros no rodapé da tela de televisão. “Esse deputado que roubou terra dos Ãndios para plantar soja é contra o casamento gayâ€. Em outra nota: “esse representante dos ruralistas que apoiou a ditadura é contra os direitos igualitáriosâ€. O repórter de um programa do tipo CQC ouve de uma mulher contra a medida que, se ela fosse aprovada, daqui a pouco se uniriam pessoas e cachorros. O bem humorado repórter resolveu ouvir a opinião do cachorro, que sequer latiu.
Preconceito, piadas e radicalismos à parte, o que as pessoas dizem pelas ruas (na maioria das vezes, conversei com pessoas que eram favoráveis ao projeto) é que a Igreja aprova tudo o que acontece à s escondidas, inclusive os casos de pedofilia nas barbas do Vaticano, mas se revolta quando a moral cristã é questionada à s claras. Tremenda hipocrisia. Ganhou vulto no paÃs o depoimento de um padre a favor do casamento gay, cuja irmã é lésbica e vive com outra mulher, e que foi proibido pela Santa Sé de realizar missas. O representante dos Putos Peronistas (sim eles existem) foi à TV dizer que a decisão era absurda, uma vez que outro padre, acusado de ser um torturador durante a ditadura militar, continuava a pregar.
Em outras palavras, a aprovação desse projeto ilustra bem a polarização polÃtica que tomou conta da Argentina. Ainda que os temas se confundam, e que tortura e casamento gay sejam coisas absolutamente distintas, o paÃs avança rumo a um caminho que até pouco tempo seria impensável na America Latina.
Tal polarização tem outras conseqüências, inclusive econômicas, e é freqüentemente contestada por jornalistas brasileiros que a colocam como sendo prejudicial, ao longo prazo, para o paÃs. Confesso que desembarquei na Argentina para férias com a famÃlia (cometi o pecado aos olhos brasileiros de me apaixonar por uma argentina com quem tenho dois filhos) tendo o mesmo pensamento. Mas me pergunto, cada vez mais, se prefiro um paÃs onde as coisas são claras, ou um paÃs onde há uma aparente conciliação entre interesses conflitantes e que mudou muito pouco nos últimos 500 anos.
Não tenho a respostas imediata, mas ontem, enquanto jantávamos, meu cunhado (hétero) ligou para o meu sogro dizendo que tinha saÃdo do trabalho e se dirigia ao Congresso para a vigÃlia pela aprovação do casamento gay. Senti uma certa inveja. Isso no Brasil raramente aconteceria. Preferimos os lobbys escusos em BrasÃlia e a sensação, obviamente falsa, de que em nosso paÃs todos convivemos bem com as diferenças.