“Me contem, me contem aonde eles se escondem?
atrás de leis que não favorecem vocês
então por que não resolvem de uma vez:
ponham as cartas na mesa e discutam essas leis” Planet Hemp
O seguinte texto inaugura a seção Cartas na mesa, composta apenas por opiniões de leitores do DAR acerca das drogas, de seus efeitos polÃtico-sociais e de sua proibição, e também de suas experiências pessoais e relatos sobre a forma com que se relacionam com elas. Vale tudo, em qualquer formato e tamanho, desde que você não esteja aqui para reforçar o proibicionismo! Caso queira ter seu desabafo desentorpecido publicado, envie seu texto para coletivodar@gmail.com e ponha as cartas na mesa para falar sobre drogas com o enfoque que quiser.
Como Erva Daninha: A resistência da cultura cannabica frente aos verdugos e seus lacaios.
Rafael M. Zanatto, especial para o DAR
É com alivio que inicio minhas explanações sobre a cultura cannabica, depois do baixista Pedro Pedrada, da banda de reggae “Ponto de EquilÃbrio†encontrar-se em liberdade. O músico, como vós sabeis, se acompanharam o trabalho informativo do movimento nacional “Marcha da Maconhaâ€, havia sido preso por tráfico de drogas. Em sua casa a policia encontrou dezoito pés de maconha que o músico cultivava para satisfazer os ritos de sua religião. Pedrada, praticante do rastafarianismo, foi encaminhado ao 75º DP de Rio do Ouro, RJ. Sendo enquadrado no artigo nº33, de lá, foi transferido para a Polinter em Neves (São Gonçalo). Os mecanismos de repressão do estado fizeram o que mais se esmeram em fazer: exercer sua autoridade ilimitada. Deceparam-lhe os dreadlocks, encarceraram-no e violaram sua dignidade. Muito se fala hoje em alteridade, mas onde esta a alteridade quando o poder homogeneizador do estado bate a porta. Onde estão as várias culturas convivendo em harmonia. Parece-me um discurso que apenas tem fundamento quando não se defronta com a velha prática estatal. Os gestores, em seu papel, fazem da alteridade social apenas mais um a névoa que se dissipa, tão fugazmente quanto à dignidade em uma cela de prisão. O Estado revela-nos a verdadeira face. A violência de seus métodos de contensão, de sua economia, de sua burocracia, faz da apologia do voto em massa o poder que o veste de legitimidade. Em defesa da “vontade geralâ€, a tecnocracia brasileira promove sua legitimidade, valendo-se de slogans como “Brasil, um paÃs de todosâ€. Um paÃs de todos que não tem o poder de decisão, não tem vontade própria, não tem respeito para com a diversidade cultural, tampouco com os movimentos sociais. Devemos então chamar a atenção para o inter-relacionamento entre cultura, polÃtica e economia. As diferenças culturais dos grupos não devem ser consideradas aparte da economia. No Brasil, ao que parece, a constituição dos grupos que se consolidam a partir da diluição parcial da homogeneidade cultural é essencialmente atravessado pela econômica, que também é cultura, sem deixar de ser economia. Atentemo-nos para a diversidade das vontades e do consumo, considerados essencialmente relacionados aos indicativos socioeconômicos. A cultura é presente, mas não é única ou autônoma, e por esse motivo, as caracterÃsticas culturais dos grupos que se afirmam se fazem de modo tão complexo, atravessado pela auto-identificação com seus grupos, que podem ser instantâneos ao passo que sua duração dependerá dos Ãndices de compatibilidade.
Apreciamos a mobilização civil em benefÃcio da legalização de uma prática cultural. O cultivo da maconha para consumo próprio, tenta ressuscitar a cultura por meio de iniciativas individuais e coletivas, que se formam tanto no cyber espaço, quanto em coletividades de apreciadores. Tentam revolver o que restou da destruição e assimilação dos aspectos estéticos de sua cultura para resgatar um passado perdido. As proibições, as classes médicas e a classe média, que tanto fizeram para combater o uso tradicional do “fumo de Angolaâ€, nome que era vendido nas feiras livres da Bahia, agora penetra em todos os segmentos sociais. Os elementos apreendidos da cultura da maconha, a partir da mutilação de sua forma original, agora se recombinam e dão face a um novo movimento cultural. A resistência à proibição é um de seus importantes elementos. As comunidades de cultivadores individuais, para seu próprio uso, são apenas um dos segmentos deste levante. Noutro plano, observamos a religião rastafári.
Apesar de não dominar o conhecimento para explanar sobre a cultura Rastafari, detenho de algumas leituras que me possibilitam afirmar que em suas raÃzes e em seu presente, constata-se a presença do teor combativo à s formas de repressão. A violação das liberdades por parte do “sistema que constrói as arapucas que você está prestes a cairâ€, ignora em sua prática, a existência de Marcus Garvey e seu movimento de retorno dos negros para a Mãe Ãfrica. As profecias previam a chegada do messias, que traria a liberdade para o povo negro. Ele seria o primeiro rei a libertar seu povo do julgo branco. As invasões da Etiópia pelas forças fascistas de Mussolini desencadearam a emergência do prÃncipe (Rás) Tafari Makonnen e seus seguidores, estabelecendo a resistência. Após combate desigual que se desenrolou por oito meses, o exercito italiano, munido de 200 mil homens, 6 mil metralhadoras, 700 canhões e 150 carros de combate, e gás venenoso, conquistou seu objetivo. Os protestos de Makonnen, agora sob o tÃtulo de imperador Hailé Sélassie, foram ignorados em Genebra, sede da Liga das Nações. Ignorado como posteriormente foram os poloneses1, com a invasão alemã e soviética, o “Rei dos Reis†e seu povo resistiram nas montanhas de seu paÃs. Os etÃopes ainda conservavam em suas lembranças a honrosa vitória sobre os Italianos na batalha de Ãdua, em 1886. O rei Menelik III e seu batalhão mal armado de armas cortantes derrotaram as ambições dos colonialistas italianos. A “vendetta†estava em curso. Ao final do conflito, em 1936, com suas forças reduzidas a 10% do inimigo, Hailé Sélassie se exila em Londres. Apenas após a deflagração da II Guerra Mundial, os italianos, pressionados pelas forças britânicas, retiram suas tropas da Etiópia e Sélassie retorna ao seu reino. Dente esses acontecimentos, aliados à s pregações de Garvey e os elementos da cultura jamaicana, floresce o rastafarianismo dentro dos limites da Ilha. E Makonnen é Deus, é Jah, o leão de Judá! “Todavia, um dos anciãos me disse: Não chores; eis que o leão da tribo de Judá, a Raiz de Davi, venceu para abrir o livro e os seus sete selosâ€2. Eis a sabedoria, a detenção da chama da liberdade, os segredos que Prometeu, descendente orgulhoso da antiga ordem, contrariou Zeus e ofereceu ao homem. Em carta, Pedrada defende o consumo da maconha, que é feito dentro de rituais religiosos onde se lê a BÃblia e outros textos sagrados. “Lá tocamos tambor no ritmo Nyahbinghi e entoamos hinos de louvor a Deus (Jah) e aos elementos da naturezaâ€
Na Jamaica, a fumaça se disseminou graças aos espanhóis, que inseriram a cultura do cânhamo simultaneamente ao massacre dos nativos. As velas de cânhamo da “InvencÃvel Armada†ganhavam novo uso dentre os habitantes da ilha. Os escravos negros traziam consigo os hábitos do consumo. Provinham de uma cultura milenar, assim como os antigos cavaleiros Assassins3, fumadores de haxixe, que eram os mais valentes opositores das ambições cristãs nas cruzadas, como Hakin Bey, vulgo de Peter Lamborn Wilson, afirmou em TAZ, Zona Autônoma Temporária.
“De que vale os dreads, se as palavras são em vão! O que lhe faz um Rasta é amor no coraçãoâ€4. E os Dreads de Pedrada deviam valer alguma coisa em uma sociedade que se sustenta fazendo apologia à democracia. Não há como negar essa violência, não apenas contra um, mas contra uma cultura que prossegue a margem e se levantará, como Séllassie pressagiou em seu discurso na Liga das Nações, quando a Etiópia, invadida pelos fascistas, resistia ao colonialismo italiano: “Hoje somos nós! Amanha serão vocês!†Três anos depois a Europa estava em guerra, e não tardaria os ataques a Pear Harbor, momento em que o conflito atinge dimensões globais. Os Dreads de Pedrada, assim como de outros praticantes da religião, não foram criados por seu culto, mas adotados em respeito à tradição que perdurava em resistir. A Ãndia traz consigo as primeiras ocorrências de Dreads. Os povos que lá habitavam, adotavam o corte apenas por praticidade. A dificuldade de cortar os estimulava, através de movimentos circulares de vai e volta com a palma das mãos, enrolarem seus cabelos em forma de tufo com o próprio óleo natural do couro cabeludo. Não houve apenas uma violação religiosa, neste caso, mas também cultural. Nestas horas me pergunto onde está o multiculturalismo, que os mais ortodoxos acadêmicos do momento defendem com unhas e dentes. O conflito ainda perdura. Os fluxos ainda se chocam nas oscilações dos espaços que percorrem. A cultura do plantio e do consumo da maconha ainda perdura. Pedrada está livre, e segue fiel aos seus princÃpios. O Estado não conseguiu dobrá-lo. Os preconceitos e a força empregada contra ele não minaram sua crença5.
Pedrada manteve a dignidade, assim como o estudante Vitor A. TÃbola, Preso com 23 pés de maconha no final do mês de maio6, na cidade de Assis/SP. Em entrevista ao canal da Record, enquanto persistia algemado no tornozelo e no pulso esquerdo, o estudante de história continuou firme com seus princÃpios. “Fumo para consumo próprio e planto com carinhoâ€. Questionado sobre se estava arrependido, é franco e fugazmente honesto: “Do que? De plantar maconha?†Responde Vitor, indignado com a pergunta: “A meu ver, isso é apenas mais um preconceito da sociedadeâ€. Vitor encontra-se em liberdade, por cultivar 23 mudinhas de maconha, em um cultivo delicado de inverno. Está livre provisoriamente, por ser primário. Aguarda julgamento e análise do caso.
O movimento social afirmativo que cresce hoje no Brasil, se coloca também enquanto resistência cultural. Aglomera praticantes religiosos, consumidores em seu uso ocidental, degustadores esporádicos, enfim, está hoje em todas as classes, permeia todos os seguimentos, articula-se paulatinamente e promete vigorar no futuro. Nossos vizinhos argentinhos já nos mostraram o caminho. O discurso conservador ainda persiste embebido de dúvida, e aos poucos se apercebe que o combate e a criminalização ao tradicional uso da erva não pode ser morto, e agora se levanta. Presenciamos uma guerra cultural, como a que a Capoeira de Angola enfrenta até hoje, para preservar suas tradições. Tradições como a dos Shaivas, devotos de Shiva, que fumam continuamente a planta feminina da maconha com o “charas†para meditarem e se elevarem espiritualmente. O chilum, cachimbo em que a planta é consumida, é considerado o corpo de Shiva, e sua fumaça, a misericórdia.
O que poderemos fazer no futuro próximo senão articular o movimento em âmbito nacional. O que mais pode ser dito sobre esse levante cultural que busca reverter anos de proibição.
Devemos revolver o passado como Elisabeta Remini, historiadora italiana, observou quando criança a revolta de seu avô, produtor de cânhamo na cidade italiana de Masserá7. Seu “nonoâ€consideava que a proibição após a II Guerra Mundial, era conseqüência da derrota militar e das exigências da indústria têxtil e do petróleo. “Agora querem me convencer que passei minha vida toda, como meu pai, a cultivar um veneno, uma coisa de árabes. Esses dos chicletes (estadunidenses), mancomunados com os comunistas, pensam que ganharam a guerra e querem até nosso passado como espólio†8. A polÃtica tecida no pós-guerra, quanto o combate ao cultivo de cânhamo persiste, e sua cultura persiste. Percebamos a tempo que o espaço para a alteridade desmancha-se no ar, ao menor contato com o estado e sua tecnocracia. Assim como Vitor e Pedrada contemplaram as garras do estado, o primeiro ficando preso no tornozelo e no pulso. O segundo, mantido encarcerado por três semanas e tendo seu penteado, componente importante de sua religião, sendo profanado pela frieza da estrutura prisional. A diversidade cultural que observamos hoje realmente configurará o futuro da sociedade ou sua aparência apenas nos engana em benefÃcio do ocultamento de suas redes opressivas. Apenas poderemos compreender a diferença, quando tomarmos em nossas mãos o poder de escolher nossa existência. E a existência do estado em seu todo, do mercado, e de sua diversidade dinâmica, apenas nos fornece a falsa impressão de que tudo é possÃvel, que realmente o é nos desvios e nos espaços que o estado não consegue penetrar. Basta à s perseguições aos movimentos pró-legalização. Basta de estética. É chegada a vez da ética, do debate aberto. Nenhuma idéia é sagrada. Tudo nos é permitido, à medida que nos orientamos pelo pensamento. Enquanto houver o cárcere, a chama da liberdade iluminará os caminhos que nos guiam para a glória. Pela liberdade da Maconha!
1 O levante de 44. A batalha por Varsóvia, de Norman Davies.
2 Apocalipse, CapÃtulo 05, versÃculo 5.
3 Os Assassins medievais fundaram um estado que consistia de uma rede de remotos castelos em vales montanhosos, separados entre si por milhares de quilômetros, estrategicamente invulneráveis a qualquer invasão, conectados por um fluxo de informações conduzidas por agentes secretos, em guerra contra todos os governos, e dedicados apenas ao saber. Assassins deriva da palavra árabe “hashshashin†[usuários de haxixe].
4 Ponto de EquilÃbrio.
5Carta de Pedrada na prisão: http://blog.marchadamaconha.org/carta-de-pedro-pedrada-na-prisao_2001#more-2001
6 http://blog.marchadamaconha.org/a-cultura-vista-a-partir-da-prisao-do-estudante-vitor-arrais-tibola-dono-de-23-pes-de-maconha_1960
7 Corruptela de amassar, macerar. Método empregado para extrair as fibras do cânhamo.
8 O Barato da História. Elisabeta Remini. P. 12-3.