Por Ana Clara Telles e Andrea DomÃnguez
Quatro anos depois de aprovada a lei que proibia a aplicação de penas alternativas a condenados por tráfico de drogas – ainda que se tratassem de réus primários em posse de pequenas quantidades e não estivessem envolvidos em atos violentos -, o Supremo Tribunal Federal do Brasil (STF) devolveu aos juÃzes o poder de decidir sobre a questão. A decisão deve ser feita por meio da defesa do princÃpio de individualização da pena, que, segundo a Constituição do paÃs, cabe a todo juiz.
Nesta entrevista, o diretor-executivo do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM), Cristiano Maronna, explica o alcance da histórica decisão, que se originou em um pedido de habeas corpus para Alexandro Mariano da Silva, preso em flagrante em junho de 2007 na cidade de Porto Alegre (RS), por tráfico de drogas. Com 13,4 gramas de cocaÃna e crack, Alexandre havia sido condenado a um ano e oito meses de reclusão.
Para Maronna, a decisão do STF recupera não apenas o direito de todo condenado a ter sua pena individualizada – ou seja, analisada e adequada segundo as caracterÃsticas especÃficas do crime e do transgressor –, como também devolve ao juiz sua autonomia para decidir sobre as sanções a serem aplicadas, capacidade que lhe havia sido tirada pela Lei de Drogas 11.343/06.
Maronna deixa claro que restaurar o poder de decisão do juiz sobre a pena do acusado abre espaço para que haja interpretações mais subjetivas sobre cada caso, mas que isso não é necessariamente um fator negativo, e ressalta o importante papel que o Judiciário exerce ao garantir os direitos fundamentais e as liberdades públicas de cada cidadão.
Por que demorou tanto a chegar ao STF um pedido dessa natureza quando parecia tão obvio?
Uma decisão judicial como essa exige tempo para amadurecimento e reflexão. No caso da vedação da progressão de regime prevista na Lei 8072/90 (sobre crimes hediondos), o STF demorou 15 anos para reconhecer a inconstitucionalidade.
No caso da proibição de penas alternativas à prisão para condenados por tráfico de drogas, a discussão deu-se no seguinte contexto: a Constituição assegura a todo e qualquer condenado que sua pena seja individualizada, ou seja, que a pena seja adequada ao caso concreto, ao fato criminoso e à pessoa do condenado.
Daà porque não pode a lei – como fez a lei 11343/06 (Nova lei de Drogas)- proibir, a priori, a conversão de pena privativa de liberdade em restritiva de direitos, porque haveria nessa hipótese uma invasão indevida do legislador na individualização judicial da pena.
Em resumo, o STF entendeu que a lei 11343/06, ao vedar a aplicação de penas alternativas à prisão aos condenados por tráfico, usurpou matéria reservada exclusivamente ao juiz. Assim, tendo em vista que a lei 11.343 é de 2006, e que a decisão reconhecendo a inconstitucionalidade do dispositivo citado é de 2010, a demora foi bem menor do que no caso da lei dos crimes hediondos.
Como a decisão do STF dev ser colocada em prática de uma forma contundente?
Em tese, os juÃzes e tribunais podem conceder habeas corpus de ofÃcio nos casos em que é possÃvel substituir penas privativas de liberdade por restritivas de direito a condenados por tráfico de drogas. Acredito, no entanto, que o condenado por tráfico terá que, por intermédio de advogado constituÃdo ou defensor público, buscar no Judiciário o reconhecimento do seu direito à substituição da pena privativa de liberdade por restritiva de direitos, uma vez que, além dos requisitos objetivos (pena não superior a quatro anos, crime praticado sem violência ou grave ameaça à pessoa), a conversão exige requisitos subjetivos, isto é, não ser o condenado reincidente em crime doloso e a culpabilidade, os antecedentes, a conduta social e a personalidade do condenado, bem como os motivos e circunstâncias do crime indicarem que a substituição seja suficiente.
É de se esperar que agora comece uma enchurrada de solicitações para conversões da pena privativa de liberdade em pena alternativa para casos similares?
Por mais clara que seja uma norma jurÃdica, a interpretação sempre abre espaço para subjetivismos e isso não é necessariamente ruim. O juiz não é nem pode ser um autômato. A lei deve ser interpretada de acordo com seus fins sociais e visando sempre o bem comum. É certo, contudo, que a qualidade da defesa do acusado influi diretamente no resultado do processo e especialmente na questão da obtenção de benefÃcios como é o caso das penas alternativas.
De todo modo, a decisão do STF terá um enorme impacto no cotidiano forense, já que os juÃzes não mais poderão fundamentar a negativa de conversão na vedação legal. Isso certamente exigirá dos magistrados a explicitação de argumentos outros capazes de justificar a negativa da conversão, o que desencadeará certamente uma enxurrada de impugnações à s instãncias superiores.
Apesar de não ser lÃquido e certo que o Judiciário passará a conceder em maior número penas alternativas para condenados por tráfico, certamente haverá uma melhora no cenário do ponto de vista de quem postula o benefÃcio.
O senhor acha que essa decisão beneficiará mais réus com maior poder aquisistivo?
A grande maioria dos “clientes” da justiça criminal é pobre e não possui condições financeiras de contratar um advogado constituÃdo. As defensorias públicas fazem um trabalho excelente, mas sofrem com o grande volume de casos e a ausência de infraestrutura e de pessoal, de modo que na prática, infelizmente, os réus pobres acabam não obtendo os mesmos resultados que réus capazes de contratar advogados constituÃdos.
A decisão do STF parece confirmar uma tendência na América Latina: são as decisões do Judiciário em defesa de liberdades fundamentais, e não as iniciativas legislativas, o que marca a pauta da mudança. Qual é a forma mais eficiente de mudar a polÃtica de drogas no Brasil daqui para frente?
O Judiciário tem como fundamento de sua legitimidade a defesa dos direitos fundamentais, ainda quando a maioria polÃtica, cuja legitimidade se fundamenta na vontade popular, deseja a sua violação. O papel do juiz é o de garantir as liberdades públicas. Infelizmente esse papel do juiz ainda é pouco compreendido dentro do próprio Judiciário, mas sem dúvida estamos vivendo um perÃodo de avanços na América Latina.
No legislativo, especialmente no Brasil, a confederação de interesses se organiza no sentido da manutenção do status quo e, nesse quadro, com bancadas temáticas (evangélicos, policiais, etc.), fica quase impossÃvel imaginar mudanças concretas no rumo da polÃtica de drogas pela via legislativa. Creio que a mudança no Brasil daqui por diante se dará pelo ativismo dos movimentos sociais.
Quais são as mudanças mais urgentes no Brasil?
A principal mudança passa pela compreensão de que a questão das drogas pertence com exclusividade ao campo da saúde pública, não à área da justiça criminal. A partir dessa compreensão, é necessário construir as bases que permitam o abandono do proibicionismo. A chave é a regulação. Demanda e oferta devem ser administradas, o que não ocorre – nem pode ocorrer – sob a égide do proibicionismo.