De acordo com o Ministério da Justiça, há, no Brasil, cerca de 97 mil pessoas presas por tráfico de entorpecentes. Antes da entrada em vigência da lei 11.343 – conhecida como ‘Nova Lei de Drogas’ – em 2006, já eram cerca de 41 mil os encarcerados por este crime.*
A lei 11.343 estabeleceu que nenhum processado por esse motivo poderia ter direito a penas alternativas, ainda que fosse seu primeiro ato ilÃcito e estivesse em posse de mÃnimas quantidades no momento da prisão ou agisse sem armas ou violência, entre outros atenuantes. Entretanto, com a recente decisão do Supremo Tribunal Federal, o STF, de devolver ao juiz a autonomia para individualizar a pena e, portanto, de sancionar com penas alternativas o delito de tráfico de drogas, a situação pode começar a mudar para alguns dos presos por esse crime.
No grupo de potenciais beneficiários das penas alternativas, encontram-se muitos dos presos que correspondem ao perfil traçado por uma pesquisa da Universidade do Rio de Janeiro, segundo a qual, dos 8 mil presos por drogas no Rio de Janeiro, 66% são réus primários, 60% estavam sozinhos no momento da prisão e 42% foram flagrados ou presos portando menos de 100 gramas de maconha.
Esses atenuantes podem começar a significar a diferença entre ser preso pela primeira vez – em muitos casos, o equivalente a ingressar à “universidade do crime†e assim vincular-se a organizações criminosas que usam a violência para alcançar seus fins – ou ter direito a penas alternativas, que poderiam oferecer uma melhor missão ressocializadora.
O ministro Carlos Ayres Britto, relator do caso no STF, argumentou à plenária da alta corte que “ninguém melhor do que o juiz da causa para saber qual é o tipo de reprimenda suficiente para castigar e recuperar socialmente o condenado”, ao defender a individualização da pena. A decisão se deu por ocasião de um pedido de Habeas Corpus para Alexandro Mariano da Silva, que havia sido preso em flagrante em junho de 2007 com 13,4 gramas de cocaÃna e crack na cidade de Porto Alegre, no sul do paÃs.
Ao saber da decisão, a professora Luciana Boiteux (foto), coordenadora da pesquisa sobre o perfil do condenado por drogas – citada acima e levado em consideração pelos ministros do STF em sua discussão – manifestou sua esperança de que, a partir de agora, “os juÃzes possam reavaliar as sentenças e substituir as penas de prisão por penas alternativas para os presos por drogas com importância reduzida no tráfico, o que reduzirá o contingente carcerário e dará mais condições a esses presos para ser incluÃdos na sociedade e tratados com respeito e dignidade, algo que a prisão não faz”.
A decisão judicial chega em um momento de estancamento do debate público sobre polÃtica de drogas no paÃs, devido ao processo eleitoral que culmina em 3 de outubro, com a eleição de novo presidente, governadores, senadores e deputados federais e estaduais. Os três candidatos presidenciais que encabeçam as pesquisas, Dilma Rousseff, José Serra e Marina Silva, têm evitado segurar essa “batata quente”, limitando-se a dizer que combaterão as drogas.
Pendente no Brasil
Se outras medidas dessa natureza chegarão por via judicial ou legislativa no Brasil, está em aberto. O que fica claro é que são vários os aspectos que necessitam de uma revisão urgente na polÃtica de drogas.
Por exemplo, como explica o antropólogo MaurÃcio Fiore, investigador do NEIP, Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos, é necessária uma mudança de enfoque, mas não em um curto prazo. Uma das maiores necessidades é que a lei vigente seja reformada, para que haja a distinção entre porte de drogas para consumo e para tráfico.
“Definir isso com clareza, ainda que não altere significativamente o modelo proibicionista, tem um impacto enorme na diminuição das condenações danosas de milhares de brasileiros, além de dificultar a corrupção”, explica Fiore (foto).
Entre as reformas que Fiore considera importantes e plausÃveis no médio prazo estão as reivindicações com relação à maconha, inclusive sob os aspectos de uso medicinal, as quais podem avançar devido à s peculiaridades da planta e aos seus padrões de consumo, que são maiores.
Durante a Conferência Latino-Americana sobre PolÃticas de Drogas, realizada em agosto, no Rio de Janeiro, o ex-ministro do Meio Ambiente e atual deputado Carlos Minc havia sublinhado pontualmente outra das mudanças urgentes na legislação sobre o tema: “a lei de 2006 é usada como mecanismo de discriminação social: nos bairros de classe média, não há detidos por uso de drogas, enquanto os bairros pobres têm muitos”, assegurou Minc e esclareceu que isso se deve, em parte, à lei mencionada conter um artigo ambÃguo que diz que “uma pessoa que oferece drogas a outras, ainda que não pretenda lucrar com isso, pode sim ser considerada traficante”. Minc concluiu: “essa é a desculpa que muitas vezes se utiliza para deter os garotos pobres, e tem que ser reformada com urgência”.
Tendência Latino-Americana
A decisão do STF se soma a outras decisões de caráter judicial que acabaram por alterar a polÃtica de drogas em vários paÃses, muito mais do que fizeram as reformas legislativas. Isso ocorreu em 1994, quando a Corte Constitucional Colombiana, ao defender o direito ao livre desenvolvimento da personalidade, despenalizou o porte de dose pessoal para quaisquer drogas, ainda que esta decisão tenha sido revertida por via legislativa durante o governo de Ãlvaro Uribe.
E ocorreu no ano passado, quando a Corte Suprema de Justiça da Nação Argentina declarou a inconstitucionalidade do crime de posse de entorpecentes para consumo pessoal. A decisão não somente rompeu uma norma punitiva, como também pôs uma barreira ao poder punitivo estatal, sustentando-se nos princÃpios de autonomia pessoal e dignidade da pessoa humana.
A esse respeito, a magistrada argentina Mónica Cuñarro (foto), professora de direito penal e polÃtica criminal da Universidade de Buenos Aires, reconhece nessas medidas uma clara tendência regional.
“A judicialização da polÃtica é um fenômeno regional e mundial. Isso se deve à polÃtica ter perdido a capacidade de transformação que tinha antes da globalização, e, em contextos inseguros, o lugar organizado para dissolver as angústias nas comunidades é o sistema judicial. Quando o estado garante a justiça, a sociedade não recorre à Justiça (o sistema judicial). Quando o estado está ausente, as pessoas buscam justiça”.
Segundo Cuñarro, isso tem se repetido em vários paÃses, pois não há nação na região que consiga seguir sustentando “prisões cheias de gente pobre por comércio pequeno de drogas e porque não há paÃs que resista aos problemas de saúde que o abuso no consumo de drogas provocou”.
É de se esperar, acrescenta a magistrada, que, devido à falta de propostas polÃticas que respondam à s necessidades das pessoas, “a justiça adquira um protagonismo que não deveria ter e termine por marcar a lista de temas dos quais a polÃtica deveria se ocupar, como: direitos dos grupos étnicos originais; direitos da mulher; direitos das minorias; garantias individuais; liberação de condenados; penas altas; limites ao Estado na invasão da privacidade; direitos do meio ambiente; proteção, com a falta de serviços de saúde; proteção na falta de educação; proteção na falta de moradia”.
* Segundo o Ministério da Justiça, em junho de 2006,o número de presos por tráfico doméstico de drogas era de 41.436, mais 2.578 de tráfico internacional (total: 44.014). Já em junho de 2010, o número doméstico é de 97.010, mais 5.111 presos por tráfico internacional (total: 102.121),