A DDD de hoje fica por conta da edição de janeiro da Revista Radis, da FIOCRUZ (Fundação Osvaldo Cruz), que traz o especial “O desafio de uma polÃtica equilibrada para as drogas”. Além da capa, seis páginas são dedicadas ao tema. Primeiramente, em “Quebra-cabeça”, a questão é colocada sob o viés da saúde, incluindo menções à práticas de redução de danos. “Entre a legalização e a proibição” dá continuidade ao especial apresentando brevemente diferentes modelos de polÃticas de drogas e esclarecendo alguns termos amplamente usados -nem sempre de maneira correta- no debate. Fechando a trinca, a Radis entrevistou a especialista em polÃtica de drogas Luciana Boiteux, professora e coordenadora do grupo de pesquisas em PolÃtica de Drogas e Direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro.
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Em debate povoado de questões, escolher as peças para se montar uma polÃtica equilibrada com foco na Saúde é desafio
Bruno Dominguez
No fim de novembro de 2010, o Rio de Janeiro viveu momentos de tensão com os ataques promovidos por traficantes nas ruas da cidade e com a retomada pelo Estado de territórios até então dominados pelo poder paralelo. Dimensões mais visÃveis das drogas, a Segurança Pública e a Justiça costumam encobrir outra importante dimensão dessa questão: a da Saúde Pública.
O Relatório Mundial sobre Drogas 2009, elaborado pelo Escritório das Nações Unidas sobre Drogas e Crime (UNODC, na sigla em inglês), é taxativo ao propor como primeira medida a ser adotada por paÃses signatários das convenções internacionais da ONU lidar com o uso de drogas como sendo uma doença. “Usuários precisam de ajuda médica, não de castigo penalâ€, disse o diretor executivo do escritório, Antonio Maria Costa, durante o lançamento da pesquisa.
Uma polÃtica nacional sobre drogas equilibrada precisa reconhecer todas as dimensões da questão, em meio a uma discussão que se torna, por vezes, polarizada: abstinência ou redução de danos, liberação ou controle? Descriminalizar é liberar? Respeito à liberdade individual fere a saúde coletiva? O debate está sobre a mesa.
O lugar de referência da saúde
Para além da violência, o abuso de álcool e de drogas ilÃcitas causa uma série de agravos, como agressões, depressões, distúrbios de conduta, comportamento sexual de risco e acidentes de trânsito “Desde o pós-guerra e especialmente após os anos 1960, quando emergiram como fenômeno mundial, as drogas constituem problema de saúde públicaâ€, atesta Francisco Inácio Pinkusfeld Bastos, pesquisador da Fundação Oswaldo Cruz que se dedica ao estudo do abuso de drogas e do HIV/Aids.
Ainda assim, o debate segue concentrado nas dimensões da Segurança Pública e da Justiça — no Brasil e no resto do mundo. “O setor saúde tem um papel central, mas sua atuação concreta está bastante aquém do necessário por oraâ€, avalia. Para o pesquisador, não existe discussão válida sobre drogas fora do âmbito da saúde, uma vez que o uso dessas substâncias impacta diretamente a vida.
Francisco ressalva que não seria factÃvel afastar completamente o debate da esfera jurÃdica, mas indica a possibilidade de afastá-lo da esfera penal, apontando, no entanto, uma barreira: “As convenções internacionais da ONU sobre o tema são, antes de tudo, tratados na esfera jurÃdica e do direito penalâ€. Na visão dele, a polÃtica de controle apoiada pela organização tem reflexos nas polÃticas de saúde dos paÃses signatários. “A margem de manobra é, infelizmente, muito limitadaâ€, lamenta.
Em anos recentes, opina o pesquisador, houve avanços nas polÃticas de atenção do Brasil. O paÃs teve grande progresso ao substituir uma ação quase exclusivamente centrada na repressão, forte no perÃodo ditatorial, por outra mais equilibrada, que leva em conta as necessidades de prevenção e tratamento. “Estamos longe do ideal, mas não debito as fragilidades na conta do Ministério da Saúde ou da Secretaria Nacional Antidrogas, e sim na incrivelmente complexa legislação mundial nesse campoâ€.
Coordenador de Saúde Mental do ministério, Pedro Gabriel Delgado deu declaração semelhante na 2ª Conferência Latino-Americana e 1ª Conferência Brasileira sobre PolÃticas de Drogas, realizada em agosto de 2010 no Rio de Janeiro: “Há poucos anos o Brasil tenta responder efetiva e democraticamente essa questão por meio da saúdeâ€. Tal qual Francisco, Pedro Gabriel disse não acreditar na capacidade das polÃticas penais de lidar com as drogas, a não ser que se transformem. “A saúde pública tem sido identificada como lugar de referência por ser compatÃvel com os direitos humanos e com a superação dos problemas reais associados a essas substânciasâ€, ressaltou.
PolÃtica mudou há seis anos
A atual polÃtica brasileira para a saúde integral a usuários de álcool e outras drogas, a cargo da Coordenação Geral de Saúde Mental, data de 2004. No documento, o ministério faz uma espécie de mea culpa, reconhecendo que o fato de não ter priorizado uma polÃtica de saúde integral ao consumidor de álcool e outras drogas gerou impacto econômico e social sobre o Sistema Único de Saúde — seja por seus custos diretos, seja pela impossibilidade de resposta de outras pastas para um efeito positivo sobre a redução do consumo.
O texto diz que o problema das drogas não era compreendido globalmente, em suas implicações sociais, psicológicas, econômicas e polÃticas; era abordado por uma ótica predominantemente psiquiátrica ou médica. As estratégias de comunicação da área, avalia o documento, reforçavam o senso comum de que todo consumidor é marginal e perigoso para a sociedade.
“Estamos saindo de uma fase simplista e mesmo contraproducente, com campanhas mal formuladasâ€, endossa Francisco. O pesquisador cita como exemplo negativo o slogan Basta dizer não, que em sua opinião tentava atemorizar os jovens. “Já foi demonstrado que essa tática não funciona e que não basta informar as pessoas, mas sim mobilizá-las em relação a algo que lhes diga respeito de fatoâ€.
Para o ministério, foi no vácuo de estabelecimento de uma clara polÃtica de saúde que se constituÃram alternativas de atenção de caráter total, fechado e tendo a abstinência como principal objetivo a ser alcançado. A novidade das diretrizes publicadas em 2004 era, justamente, a superação da perspectiva curativa — “inerte por natureza, por vezes reforçadora da própria situação de uso abusivo e/ou dependênciaâ€.
O MS estabeleceu então que “o planejamento de programas deve contemplar grandes parcelas da população, de uma forma que a abstinência não seja a única meta viável e possÃvelâ€. A decisão se baseava no direito de escolha do usuário: “Quando se trata de cuidar de vidas humanas, temos de, necessariamente, lidar com as singularidades, com as diferentes possibilidades e escolhas que são feitasâ€.
Francisco explica que a abstinência é uma meta desejável, pois quando não se usa droga não se sofrem danos associados a elas, mas dificilmente alcançável em curto prazo na maioria dos casos. Daà a importância da introdução do conceito de redução de danos, que emergiu nos anos 1930 no Reino Unido, propondo a minimização dos efeitos (ver entrevista).
Na prática, seriam ações como distribuição de seringas a usuários de drogas injetáveis, para que evitem seu compartilhamento e o potencial contágio do HIV/Aids. Apesar de ser considerada um avanço pelo setor saúde, uma vez que respeita a liberdade de escolha do indivÃduo, essa abordagem ainda enfrenta resistência na sociedade: a redução de danos é associada a incentivo ao uso de drogas.
A resistência atrasa a expansão de medidas que minimizem os problemas de saúde associados. “As leis que inibem ações de redução de danos são prejudiciais à resposta à aidsâ€, posicionou-se o coordenador do Programa Conjunto das Nações Unidas sobre HIV/Aids (Unaids, na sigla em inglês) no Brasil, Pedro Chequer, em palestra na Conferência sobre PolÃticas de Drogas.
Acesso e adesão ao tratamento
Juntamente com a redução de danos, o acesso e a adesão dos usuários aos serviços de saúde foram tema de destaque no evento. Segundo estimativas divulgadas no Relatório Mundial sobre Drogas 2010, somente cerca de um quinto dos dependentes de drogas no mundo recebeu tratamento em 2008. “É fundamental universalizar o acesso ao tratamentoâ€, conclamou o representante do UNODC no Brasil, Bo Mathiasen, para completar que só oferecer tratamento não basta. “As ações de saúde precisam ser ofertadas a partir das necessidades do usuário, não do sistema de saúdeâ€, explicou, defendendo tratamento voluntário, atendimento especializado, interação com escola, famÃlia e religião, atenção integral e respeito aos direitos humanos.
Um desafio premente é aumentar a procura e a adesão ao tratamento por parte dos usuários ou à s práticas de prevenção e promoção. “A não adesão é um mito. Partir desse princÃpio é violar, de uma forma sofisticada, os direitos humanosâ€, opinou o representante regional para América-Latina e Caribe da Aliança Internacional contra o HIV/Aids, Javier Hourcade Bellocq. Ele citou especialmente os usuários dos sistemas penitenciário e carcerário, que considera excluÃdos dos serviços de saúde.
Um dos motivos pelos quais usuários de drogas não procuram ou não dão seguimento ao tratamento é a discriminação, muitas vezes sofrida dentro do próprio ambiente da saúde. Ao chegar à unidade, encontram uma barreira que nem sempre estão dispostos a enfrentar. “Alguns profissionais de saúde tendem a reproduzir as concepções mais convencionais referentes ao uso de drogas, que implicam uma leitura simplista do fenômeno e, consequentemente, a depreciação do usuárioâ€, reconhece Pedro Gabriel, do Ministério da Saúde.
Para Francisco, os profissionais de saúde não estão capacitados a lidar com os usuários de drogas “sob qualquer aspectoâ€. O pesquisador faz referência à própria formação, no curso de Medicina, em que o tema do abuso de drogas sequer foi mencionado. “Os futuros profissionais ficam desmotivados para trabalhar com uma população sabidamente complexa, o que acirra os ânimos de usuários contra o sistema de saúde e de profissionais de saúde contra usuáriosâ€.
A polÃtica brasileira recomenda que as práticas de saúde nessa área devem acolher sem julgamento e oferecer “o que em cada situação, com cada usuário, é possÃvel de ser ofertado, necessário e demandado, sempre estimulando a sua participação e o seu engajamentoâ€. Segundo o ministério, 70% das 30 mil equipes da Estratégia Saúde da FamÃlia (ESF) já receberam algum treinamento para lidar com o tema.
Na conferência, Pedro Gabriel listou ações do Ministério da Saúde para superar tantos desafios de ordem prática ou ideológica e atingir uma oferta de serviços adequados a essa população. Da ordem prática, citou o subfinanciamento do setor e os problemas com a força de trabalho. Mas deu destaque a uma questão de ordem ideológica: modelos em conflito. “Como as drogas envolvem saúde, justiça e polÃcia, as perspectivas de cada uma se chocamâ€.
Assim, a saúde ainda se vê instada a convencer os demais setores de que a atenção integral aos usuários de drogas não requer privação de liberdade ou interrupção do uso dessas substâncias. Ele apontou uma desvalorização da perspectiva humanista da questão, que inclui redução de danos e consultórios de rua. “Enfrentamos resistência sistemática da Justiça, que impõe um tipo único de tratamentoâ€, criticou Pedro Gabriel
Em sua avaliação, essa divisão ideológica impede uma abordagem integral, com a oferta de um conjunto de polÃticas setoriais que visem reconstruir a possibilidade biográfica do indivÃduo. “Alguns usuários vivem numa situação de fragilidade que requer respostas para além da saúde pública, que toca no ponto da desigualdade socialâ€, disse. “A saúde pública precisa construir uma resposta para o problema das drogas, mas não sozinha, porque é uma questão que não pode ser resolvida somente com tratamentoâ€.
O debate sobre a polÃtica de drogas ideal tende à polarização e à simplificação: proibir ou legalizar. Mas o que vem desafiando verdadeiramente governos e pesquisadores é encontrar o equilÃbrio entre exercer certo controle para a proteção da saúde pública, por um lado, e evitar as consequências negativas de um controle excessivamente repressivo, por outro, como ressalta a pesquisa O estado atual do debate sobre polÃticas de drogas, realizada em 2008, por Martin Jelsma, coordenador do Programa de Drogas e Democracia do Transnational Institute, organização internacional com sede na Holanda, voltada à análise de problemas mundiais.
O inÃcio do processo de proibição dessas substâncias remonta aos anos 1960, década em que a comunidade internacional assinou os primeiros acordos voltados ao fim de sua produção, distribuição e consumo. O documento inaugural da Organização das Nações Unidas, a Single Convention, data de 1961.
A intenção de eliminar as drogas, no entanto, fracassou e esse mercado cresceu exponencialmente, até os anos 1990, quando então se estabilizou. “A proibição das drogas pôs o mercado deste lucrativo comércio nas mãos de organizações criminosas e criou enormes fundos ilegais que estimulam a corrupção e os conflitos armados em todo o mundoâ€, avalia Martin Jelsma.
Modelos de controle
Em sua pesquisa, Martin separa os diferentes modelos e formas de controle das drogas em quatro grandes categorias. A primeira é a da guerra antidroga, caracterizada pela repressão extrema via militarização. De grande escala, esse modelo tem entre suas práticas operações militares contra pequenos agricultores de cultivos ilÃcitos, fumigação quÃmica de lavouras ligadas à s drogas, encarceramentos massivos de usuários e pequenos distribuidores e até pena de morte para os transgressores da lei das drogas.
“A guerra antidroga é um desperdÃcio de recursos financeiros, pois investe mais para reprimir e matar do que para tratarâ€, criticou na 2ª Conferência Latino-Americana e 1ª Conferência Brasileira sobre PolÃticas de Drogas o representante regional para América-Latina e Caribe da Aliança Internacional contra o HIV/Aids, Javier Hourcade Bellocq.
Os tratados da ONU para proibição das drogas, segundo modelo citado por Martin Jelsma, estabeleceram normas mundiais de conduta, induzindo os paÃses signatários a proibirem essas substâncias a partir de uma polÃtica de tolerância zero. Os usuários são tratados sob uma visão médica prescritiva e ficam suscetÃveis a sanções penais por posse e tráfico.
Nas palavras do pesquisador, esses tratados formam a coluna vertebral do regime proibicionista, mas não são inteiramente responsáveis por exageros cometidos por alguns paÃses — não recomendam a prisão de usuários, por exemplo, o que ainda acontece. “Grande parte da verdadeira guerra antidroga se realiza à margem das normas estabelecidasâ€, constata.
O modelo de regularização de substâncias, com grande diferença entre paÃses, lida com as drogas sob dimensão administrativa, dando licenças de produção e venda. Uma quarta categoria, de livre comércio, prega o uso e a distribuição sem controle internacional.
Em 2006, o Brasil aprovou a Lei n.º 11.343, que estabelece normas para a repressão à produção não-autorizada e ao tráfico ilÃcito de drogas. Seu avanço foi proibir a prisão de usuários. Porém, esses não estão livres de pena, já que o porte, a compra ou a guarda de drogas seguem criminalizados — os usuários podem receber advertência, prestar serviços à comunidade ou ser obrigados a frequentar cursos educativos.
Na avaliação da professora da Faculdade de Direito da UFRJ Luciana Boiteux, coordenadora da pesquisa Tráfico e Constituição, um estudo sobre a atuação da Justiça Criminal do Rio de Janeiro e do Distrito Federal no crime de drogas, a lei representa um proibicionismo moderado. Enquanto despenalizou a posse para uso pessoal, aumentou a pena para os casos de tráfico. Mas o texto, disse ela durante a conferência, falha ao não apresentar critérios objetivos de distinção entre usuário e traficante e entre pequenos, médios e grandes traficantes.
Luciana coletou 750 sentenças e acórdãos que aplicavam a nova lei, no Rio de Janeiro e no Distrito Federal, de outubro de 2006 a maio de 2008. No Rio, 66,4% dos condenados por tráfico eram réus primários, 91,9% foram presos em flagrante, 60,8% estavam sozinhos no momento da prisão e 65,4% tiveram condenação somente por traficarem — não foram enquadrados por associação ou quadrilha. “Esses presos saem estigmatizados e sem perspectiva de futuroâ€, falou.
Flexibilização na Europa
Alguns paÃses, dos quais o exemplo mais citado é a Holanda, aplicam polÃticas flexÃveis para as drogas desde os anos 1980. A maior tolerância é dada à maconha, substância ilÃcita de maior consumo massivo do mundo, com usuários estimados pela UNODC em aproximadamente 200 milhões — as pessoas que usaram drogas ilÃcitas pelo menos uma vez num ano somam, segundo o escritório, até 250 milhões, o equivalente a até 5,7% da população entre 15 e 64 anos.
Quando se procura uma nova forma de lidar com as drogas, os olhos do mundo se voltam para Portugal. Na década de 1990, o paÃs apresentava altas taxas de abuso de drogas, que caracterizavam uma epidemia. Somente os viciados em heroÃna somavam 150 mil — ou 1,5% da população. O ano 2000 marcou o inÃcio da mudança dessa realidade. O parlamento português aprovou lei que descriminalizou o consumo, a aquisição e a posse de todas as drogas.
Para cada substância, determinou-se um limite equivalente à quantidade necessária para consumo médio individual durante o perÃodo de dez dias, que leva em conta sua natureza e potencialidade de provocar danos à saúde. O que se questiona é o fato de o paÃs ainda manter o comércio das drogas na ilegalidade. No artigo Aumenta o consumo. O proibicionismo falhou (leia na seção Exclusivo para a Web do site do RADIS), a professora Luciana Boiteux comenta esse ponto fraco da polÃtica, por “criar um sistema liberal para o usuário e punitivo para o tráfico, que passará a fornecer uma mercadoria cujo consumo é autorizado, mas não a vendaâ€. Ainda assim, a lei levou Portugal a ser considerado referência na questão.
Entre 2001 e 2007, a prevalência de consumo ao longo da vida subiu de 8% para 12%, mas a prevalência de consumo nos últimos 30 dias se manteve em 2,5% e a taxa de continuidade de consumo caiu de 44% para 31%, de acordo com o relatório A situação do paÃs em matéria de drogas e toxicodependências de 2008, elaborado pelo Instituto da Droga e da Toxicodependência (IDT), ligado ao governo. Pesquisa com jovens estudantes citada no documento mostra que o uso de drogas, que vinha aumentando nesta faixa desde os anos 1990, diminuiu pela primeira vez em 2006.
Integrante do conselho diretor do IDT, Manuel Cardoso informou na conferência que a polÃtica de descriminalização foi acompanhada de mudanças na polÃtica de saúde. O Programa de Respostas Integradas prevê que cada território construa uma rede global, no âmbito da prevenção, da dissuasão, da redução de riscos e minimização de danos, do tratamento e da reinserção.
Holanda, SuÃça, Bélgica, Luxemburgo, Irlanda, Reino Unido e estados norte-americanos despenalizaram ou descriminalizaram a posse de maconha em quantidades pequenas. A Holanda permite a venda a maiores de idade de até cinco gramas de maconha em coffee shops. Assim como em Portugal, a produção e o comércio de grandes quantidades de maconha continuam ilegais — o limite de plantio é de até cinco plantas de cannabis para consumo pessoal. Sinal da complexidade da questão, na Holanda, a droga que se vende legalmente também é obtida ilegalmente.
Segundo a pesquisa, a autorização de venda livre não aumentou o consumo da droga no paÃs para além dos nÃveis dos paÃses vizinhos.
Legalizar já?
Martin Jelsma alerta que a legalização não é necessariamente resposta, ou solução para todos os problemas relacionados com a existência de uma economia de drogas ilÃcitas: “A ausência de medidas de controle poderia afetar de forma negativa a saúde públicaâ€.
O pesquisador da Fiocruz Francisco Inácio Pinkusfeld Bastos também diz não acreditar na viabilidade, por ora, da legalização no Brasil, devido à s restrições dos tratados internacionais. O que se pode fazer, explica, é descriminalizar e formular alternativas de controle, que não seja exercido pela justiça penal. “Não há mercado sem controle, seja de remédios, alimentos ou drogasâ€, lembra.
As palavras e seus significadosA seguir, algumas expressões relacionadas à s formas de se lidar com as drogas, e seus respectivos significados — que deixam transparecer a complexidade do tema. DEPENDENTE Aquele que faz uso repetido de substância psicoativa, caracterizado por apresentar intoxicação periódica ou crônica, compulsão pelo uso, dificuldade de parar voluntariamente e determinação para conseguir a droga em qualquer situação. DESCRIMINALIZAR Refere-se ao usuário. Retirar condutas relacionadas ao uso de drogas do rol dos crimes, por lei ou interpretação de jurisprudência. DESPENALIZAR Exclui a imposição de pena de prisão ao usuário, mas mantém a proibição de produção, consumo e comércio, condutas que seguem sendo consideradas crime. O usuário fica sujeito a sanções alternativas. LEGALIZAR Refere-se ao objeto (droga). O mesmo que tornar lÃcito, tornar legal. REDUÇÃO DE DANOS Conjunto de práticas que têm o objetivo de reduzir as consequências adversas do uso de drogas, sem necessariamente reduzir seu consumo. USUÃRIO Segundo a OMS, pessoa que faz uso de substância psicoativa. è |
Professora e coordenadora do grupo de pesquisas em PolÃtica de Drogas e Direitos Humanos da Faculdade Nacional de Direito da Universidade Federal do Rio de Janeiro, Luciana Boiteux avalia que o atual modelo de combate à s drogas está superado e que é hora de construir passo a passo polÃticas que tenham como foco os direitos humanos e levem em conta o desejo do usuário.
Como analisa o atual modelo de controle de drogas?
O modelo proibicionista de controle falhou. É uma constatação baseada nos dados que a própria ONU coleta. A meta definida em 1988 era a de um mundo livre de drogas, acreditava-se que seria possÃvel proteger a saúde pública e minimizar o consumo e o lucro desse mercado via modelo proibicionista, que reprime criminalmente usuários e traficantes. O que vemos, porém, é que em nenhum aspecto esse modelo teve o sucesso esperado. No Brasil e em outros paÃses em desenvolvimento, a realidade é pior: em vez de minimizar danos, essa formulação acarretou consequências nefastas. Baixa qualidade das drogas em circulação, situação de vulnerabilidade dos usuários, superlotação de prisões com indivÃduos que não necessariamente são traficantes. A violência no Rio mostra que o mercado de drogas tem grande poder, abalado por essa repressão ocasional, mas que depois tende a se fortalecer. A proibição torna esse mercado altamente lucrativo.
Por outro lado, não há consenso sobre alternativas, o que explicita a complexidade da questão.
No âmbito da polÃtica criminal, não há consenso, mas no da polÃtica de saúde, sim. Deve-se investir em prevenção, em informação… Os usuários que queiram ajuda precisam ser apoiados pelo Estado — uma intervenção social, não policial. O Brasil avançou bastante nesse sentido.
Mas ainda se questiona a redução de danos.
A redução de danos é um novo paradigma, porque não trabalha com a ideia da abstinência como única meta aceitável e, sim, com a de apoio a medidas que minimizem os danos. Esse pensamento avança no sentido da saúde publica e do respeito à liberdade do usuário. O Brasil acertou ao romper com visões mais conservadoras, como a ainda aplicada nos Estados Unidos, que impõem tratamento obrigatório se o usuário não quiser ir para a prisão. Essa prática vai contra a opinião de especialistas, que claramente dizem que a vontade pessoal de deixar as drogas é o primeiro passo. A justiça terapêutica é inconstitucional, porque não respeita o desejo do usuário, não é coerente e aceitável. A polÃtica de redução de danos não exclui outras opções de tratamento, nem mesmo a busca da abstinência. Do ponto de vista criminal, o mais próximo do consenso é a descriminalização do usuário, como Portugal fez muito bem. Quando se fala em despenalizar, o objetivo é que não se tenha mais a pena de prisão. Descriminalizar é mais forte: retirar a questão do direito penal e passá-la pra outra esfera — Portugal passou para a esfera administrativa.
Sempre será necessário algum tipo de controle?
Eu não defendo a ausência de controle, mas uma mudança na natureza do controle. A estigmatização decorrente do modelo proibicionista traz danos grandes até para a saúde, porque dificulta a intervenção social do Estado. O peso do crime sobre as drogas ilÃcitas é muito ruim.
Como definir que drogas descriminalizar?
É uma definição polÃtica. Portugal descriminalizou todas as drogas, mas poderÃamos pensar num modelo intermediário, começando pela descrimalização de drogas leves como a maconha.
Não é contraditório que Portugal e Holanda, por exemplo, tenham descriminalizado o consumo, mas não a produção?
É importante esclarecer que a Holanda não descriminalizou as drogas, despenalizou o usuário. O crime continua previsto em lei, mas os operadores decidiram focar determinadas condutas e tolerar outras. O usuário é tolerado, assim como a venda. Considera-se a Holanda um paÃs permissivo, mas o que não se entende é que tomou decisão pragmática: em vez de perder tempo com pequenos traficantes e usuários, atua sobre os grandes traficantes. DeverÃamos avançar mais, buscar outras modalidades de controle que não o penal, mas não há exemplo de paÃs que já tenha conseguido.
Há espaço no Brasil para mudanças em médio prazo?
Tenho visto a atuação de organizações não governamentais, da mÃdia e de parlamentares no sentido de tirar essa discussão pública do limbo. Há clima social para descriminalizar o usuário, mas isso depende de decisão polÃtica. O momento é de levar à frente o debate com base em evidências, fugir da ignorância que vigorava até a década passada, que espalhava o medo das drogas. Não vamos descriminalizar as drogas de uma hora para outra, mas podemos encontrar modalidades de superar o atual modelo.