“No tempo que fiquei sentado, as coisas finalmente começaram a se distorcer. Tudo derretia. Assoei forte meu nariz e meu cérebro escorreu. Aspirei novamente e recobrei a consciência[…]Apenas pensava em Mariano Ferreira e de como a morte de Kirchner ocuparia as manchetes.”
“Me contem, me contem aonde eles se escondem?
atrás de leis que não favorecem vocês
então por que não resolvem de uma vez:
ponham as cartas na mesa e discutam essas leis†Planet Hemp
A seção Cartas na mesa é composta por opiniões de leitores e membros do DAR acerca das drogas, de seus efeitos polÃtico-sociais e de sua proibição, e também de suas experiências pessoais e relatos sobre a forma com que se relacionam com elas. Vale tudo, em qualquer formato e tamanho, desde que você não esteja aqui para reforçar o proibicionismo! Caso queira ter seu desabafo desentorpecido publicado, envie seu texto para coletivodar@gmail.com e ponha as cartas na mesa para falar sobre drogas com o enfoque que quiser.
O texto que hoje apresentamos é de Rafael Zanatto, que nos traz o relato de uma experiência lisérgica em Buenos Aires. Nossa seção Cartas na mesa tem trazido contribuições de cunho mais acadêmico para o fenômeno das drogas, mas é com felicidade que publicamos uma experiência mais empÃrica como esta, esperamos poder seguir com esta interessante tradição já trilhada por Huxley, Baudelaire, Benjamin e tantos outros pensadores interessados nas reflexões e aprendizados trazidos pela alteração de consciência.
Assassinato, sindicalismo e o subúrbio: Expedição Lisérgica em Buenos Aires
Rafael M. Zanatto
Finalmente encontro-me na terra do Samba. Por esses dias estive a viajar em função de um congresso acadêmico. Tudo pago pela instituição da qual presto meus serviços. Destino: Buenos Aires. E lá, os ares não estavam nada bons ou sequer agradáveis. A morte do estudante de História Mariano Ferreira ocupava as manchetes. Militante desde sua adolescência, Mariano dedicava suas forças à agenda do Partido Obrero, tendência polÃtica de esquerda que buscava romper com os acordos sindicais firmados entre os sindicatos e o governo dos Kirchner. Mariano ganhou um tiro e faleceu após um enfrentamento entre trabalhadores terceirizados externos ao sindicato dos ferroviários tomado de Kirchneristas e os próprios. Os ânimos se elevaram a tal ponto que um sindicalizado que até o presente momento desconhecido, sacou sua pistola e deflagrou os disparos que assassinaram Mariano e condenaram ao coma outra militante do Partido. Vários foram responsabilizados, mas até agora o crime contra o estudante de 23 anos permanece obscuro. Seriam fragmentos que restaram de uma ditadura que tragou cerca de 30 mil pessoas, que decepou cabeças e atirou milhares ao mar de seus orgulhosos Fokker’ s 27. Quantos corpos debilitados pela tortura tiveram que se despedaçar em alto mar para que esse paÃs expurgasse a “ameaça comunistaâ€? Os esforços da “Triple A†– Aliança Anticomunista Argentina teriam sido em vão, já que neoperonistas adeptos aos Kirchner continuam a desempenhar o mesmo papel dos perseguidores que encarceiraram e exterminaram milhares de peronistas e “Montonerosâ€? O papel conciliador de Perón serviu bem após o massacre dos Montoneros que o esperavam na praça de maio em seu retorno do exilio. Teria sido a Sociedade Rural Argentina e a direita os responsáveis pelo retorno do General ou a guerrilha que tanto sangrou para que esse dia chegasse. A Triple A fez da praça de Mayo um local ideal para uma emboscada que culminou na morte de muitos militantes. Perón conciliou. E logo após sua morte, o golpe desencadeou novamente a resistência. O resultado são incontáveis mortos e desaparecidos. De que adianta hoje, anos depois, transformar a Escola Superior de Mecânica da Armada – ESMA, palco de assassinatos, detenções e torturas em um grande memorial da ditadura e do genocidio de estado? Morre Mariano Ferreira , anos depois. Triste dos povos que precisam de sangue e de governo. Pois bem, lá estava eu, em Buenos Aires quando Kirchner morreu de infarto. A imprensa logo o transformou em um grande estadista. Não cansou de o equiparar à lideres latinoamericanos como Hugo Chaves e Luis Inácio da Silva, o Lula. De pronto, a imprensa levantou dúvidas sobre a possibilidade de Cristina Kirchner continuar a governar o paÃs. Era dia de censo populacional. Todos os estabelecimentos comerciais fechados. Cristina era apresentada na TV como viúva, de moral inabalável e fiel ao seu marido por trinta e cinco anos, desde os tempos de faculdade. Mãe agora só. Seus filhos estavam com ela durante o funeral, que inclusive, Diego Armando Maradona, o mesmo craque de futebol que tem Che Guevara tatuado no corpo, o mesmo que visitou Fidel Castro e Carlos Menen – reparem na flexibilidade politica desse ser acostumado á holofotes – estava lá, prestigiando o defunto. E o defunto Mariano Ferreira caia no esqueciemento. Nada mais venderia jornais que a morte de Kirchner. Do dia pra noite, a cidade foi tomada de cartazes que se solidarizavam com a dor de Cristina. Todos estavam escritos “Força Cristinaâ€.
Bem, neste ponto rememoro os ensinamentos de Hunter S. Thompson, um dos mais sagazes jornalistas americanos posteriores à decada de 60. Ingeri cerca de meio ácido lisérgico e me perdi na multidão que se dirigia ao funeral. Eu e um companheiro encontramos nas cercanias do Congresso o movimento do sindicato dos telefônicos. Todos gritavam que Kirchner estava vivo. “No se murrió†eram as palavras de ordem. Atravessamos a avenida 9 de Julho e o ácido batia forte, a percepção se aguçava e pude ver a face das pessoas. Grande parte estava abatida e uma fila incomensurável se amontoava para cumprir um trajeto interminável em direção ao corpo. Carregavam flores e cantavam. Os movimentos da Juventude Peronista e do Movimento Evita disputavam á cotoveladas o melhor foco para suas bandeiras que ganhariam notoriedade internacional ao serem captadas pelas lentes dos correspondentes internacionais. Atravessamos a multidão que se aglomerava em peregrinação e observamos, de um ponto privilegiado os comerciantes que se valiam da aglomeração para vender seus “super-panchos†e “hamburguesasâ€. Cansamo-nos do espetáculo populista e tal como Benjamin nos adverte em seus escritos apropriados pela academia que negou-lhe sua livre-docência, nos encaminhamos para o subúrbio de “La Bocaâ€. Mas anteriormente ao longo percurso, sentei-me em uma esquina e meu companheiro de viagem inseriu seu corpo no interior de um estabelecimento que vendia cervejas. No tempo que fiquei sentado, as coisas finalmente começaram a se distorcer. Tudo derretia. Assoei forte meu nariz e meu cérebro escorreu. Aspirei novamente e recobrei a consciência. Tentava imaginar tudo aquilo que estava acontecendo. Nao sou adepto da racionalização das coisas, e tão pouco da irracionalidade. Sou adepto da experiencia que me atira a novas cercanias, que me impulsiona em direção ao oculto, ao que a tradição insiste em soterrar com seu discurso hipócrita e mediocre. Apenas pensava em Mariano Ferreira e de como a morte de Kirchner ocuparia as manchetes. Muitos presos, e nenhuma resolução. Não acredito tampouco no sistema carcerário, mas já que a dissidencia sempre foi tão habilmente esmagada, porque não requisitar um pouco da justiça tradicional, já que o justiçamento revolucionário está fora de moda. Busquei meu companheiro “borracho†perdido no interior do estabelecimento. De Pronto, ganhamos as ruas em direção ao bairro de “La Bocaâ€, agora com suprimentos. Estacionamos nossos corpos em uma praça. Olhamos atraves das grades e o ácido, assim como nossa concepção de praça, nos impedia de reconhecer aquele lugar cercado como um espaço em que podiamos descansar as pernas e libertar ainda mais a consciencia. Um rastafari se aproximou e nos convidou a entrar. “És una plazaâ€, e adentramos ao local. Reparei em uma placa que anunciava que haveria logo mais aulas de Capoeira de Angola, tendencia das mais tradicionais que continuam a resistir e afirmar posições politico-culturais associadas a resistência negra. Logo me senti em casa. Eu e meu companheiro debatemos o que tinhamos acabado de ver. Conversamos sobre os monumentos da elite que os movimentos de grafiteiros insistem em remarcar e dos mosaicos que não cansam em conceder aos massacrados por todos os governos, em todas as épocas as devidas honrarias . Refletimos que o povo aqui não precisa do estado para honrar seus mortos, seus heróis ou seus sÃmbolos. Monumentos cotidianos tomam os lugares nas calçadas e nas paredes onde muitos tombaram assassinados sob a força da maquina estatal tomada pelos interesses dos “Dueños del PaÃsâ€, como Piño Solanas os definiu em seu filme “La hora de los hornosâ€. Continuamos em nossa caminhada interminável. Chegamos ao estádio do Boca, caminhamos pela calçada onde vários craques deixaram seus pés pregados no cimento. Atravessamos a linha de trem e chegamos á um bar repleto de imagens da equipe preferida das cercanias. O ácido estava a mil e minha mente se encandescia. Sentei-me e logo meu camarada reconheceu alguém que logo estava a conversar conosco. Olhava pela janela e via os turistas com suas poderosas cannon´s a sacar fotos até das merdas que os passáros que tomavam as ruas. O ácido aguçava a percepção. Olhava as imagens se distorcer e retomar sentido a medida que buscava qualquer referencia. O argentino, que se chamava qualquer nome, já que só vou me expor aqui e não os personagens desse relato verÃdico, perguntou o que fazia-mos no Brasil. Respondemos que éramos pesquisadores de História, e que estávamos alà para um congresso internacional. E ele sabiamente respondeu: Entao são pobres. Sorrimos impressionados com o quanto ele sabia da escola da vida. Falou incessantemente até que mencionei que detinha algum acido em minha posse. Ele me pediu que dividisse e como sempre fui adepto da socialização das drogas lhe perguntei se havia qualquer tesoura em seu poder. De pronto levantou-se e encaminhou-se para fora do estabelecimento, onde junto com um barbeiro turco conseguiu uma navalha. Entregou-me e disse que deveria eu mesmo fazer a mágica. Abri o instrumento mortal e seccionei o LSD. Entreguei-lhe uma quantia e dividi o farto restante com meu companheiro. Passamos a conversar sobre assassinato. Ele nos disse que as armas de fogo são instrumentos europeus de morte, e que se fosse para ver seu sangue derramado na rua, preferia que sua existencia fosse extirpada por um instrumento cortante, mais honesto que a covardia de uma arma de fogo. Imediatamente me lembrei das navalhas que os malandros se valiam para combater no dia a dia. Dissse-lhe que esses malandros agitavam os lenços de seda para se proteger. Envolviam seu braço de defesa em tao eficaz cobertura até o ponto em que conseguiam o espaço para extinguir o combatente, o opositor, e por muitas vezes o policial que o tentava aprisionar. Passamos um tempo na viagem, comunicando-nos em espanhol e o assunto da morte de Kirchner emergiu em meio a embriagues da lisergia. Nos disse que ruim com ele, agora para a eleição de 2011 pior. Sequer mencionou a morte de Mariano Ferreira, o estudante assassinado. Minha sede de drogas logo o inqueriu: Tem como encontrar aqui cocaÃna. Me respondeu de imediato contando uma história, que custou-me a acreditar, mas logo me convenceu, dizendo que se quisesse um tanque de guerra, que lhe desse meia hora e o traria de pronto. Em segundos, retornou com tres papelotes de coca. Dirigimo-nos à sua casa, um prédio envelhecido de muitos andares, com um banheiro por piso. A banheira estava tomada de mofo. Condições sub-humanas tomavam o local. Parecia que naquele ambiente a própria situação economica da Argentina se fazia presente. Disse – nos antes de nos entorpecermos com a cocaÃna de La Boca que não pagava aluguel fazia meses, porque não tinha emprego, não tinha como pagar e que o dono do local nao havia o que fazer. Pareceu-me que era tal qual uma ocupação. Havia construido um piso superior em seu quarto, com madeiras encontradas na rua. É incrivel o poder de adaptação do ser humano. A politica neste espaço ganhou outras dimensões. Esta pessoa sobrevivia de lavar pratos no restaurante da mesma esquina em que momentos atrás bebia-mos sem parar. Disse-nos que todas as ferramentas que possuia em sua casa para consertar coisas de madeira que haviam sido encontradas na rua. Falou-nos também que sua casa era ponto de recepção de algumas mercadorias roubadas, como pudemos observar algumas dessas mercadorias. Contestei o conceito, dizendo que o roubo ganha novo significado quando quem rouba esta o fazendo para sobreviver. De pronto defendi sua prática falando-lhe do conceito de expropriação. Sacou como um raio de sua estante e me presenteou com o livro de Oswaldo Bayer, “Los Anarquistas Expropriadoresâ€, no qual um de seus artigos reflete a história do anarquista catalão Buenaventura Durruti, revolucionário que percorreu toda a América Latina cometendo assaltos a bancos e financiando a fundação de sindicatos de trabalhadores. Em Buenos Aires, assaltou o Jockei Clube e ficou conhecido como “El caballero de las treinta monedasâ€, por carregar um cofre que continha apenas trinta moedas de prata. Terminamos de consumir a coca e ganhamos a rua. Meu companheiro parou para comprar cigarros e escutei uma senhora perguntar-lhe o que iria fazer conosco. Passei a pensar onde estávamos metidos. Sentamos no bar e o argentino logo se pos a lavar pratos, porque havia percebido que havia escutado a preocupação da senhora turca. Logo me levantei com seu copo cheio de cerveja e lhe entreguei, convidando-o a sentar-se. De pronto finalizou seu trabalho e sentou-se para ouvir o que tinha a dizer. Comecei explicando que não eramos moleques, que não tinhamos medo de nada, que não era de hoje que caminhavamos por becos e periferias, que não eramos ricos e que conheciamos ao menos um pouco da malandragem. Ele ficou desconcertado, e quis reparar falando sobre a periculosidade do bairro. Neste momento prescionei minha narina esquerda, de modo que os resquicios de meu consumo saissem pela direita. Falei: é o que temos, segura ai vinte e cinco pesos, não temos com o que se preocupar porque não temos nada pra ser roubado. De pronto se levantou e ficou vinte minutos desaparecido. Talvez não esperasse minha reação. Pegamos um taxi clandestino e rumamos para onde esticariamos nossos corpos, mas simultaneamente a sucessão dos fatos aqui narrados, em nenhum momento pude esquecer a relação entre a malandragem e a sobrevivencia.
Nossos hermanos tinham todos os motivos para se preocupar com a morte de Kirchner, com a violencia no caso de Mariano Ferreira, assim como os burocratas sindicais que ao invés de trabalharem para os trabalhadores, para a conquista de melhores condições de trabalho, acabavam por frear as lutas sociais em um momento oportuno. A crise decretou a falência de muitas formas tradicionais de organização do trabalho. A eclosão de cooperativas após a quebra levada a cabo pela politica economica de conversibilidade de Domingos Cavallo ganha expressão ao repararmos nas fábricas reformadas pelos trabalhadores. Não são obviamente fabricas autogeridas, pois a autogestão demanda a eliminação de qualquer segmentação fixa nas funçoes do trabalho. O que temos é uma gestão mais democratica, onde as decisões são tomadas em assembléias de trabalhadores, e a gerencia da empresa é levada a cabo a partir do acúmulo dessas decisões. Existem por suposto postos de mando, mas mandos apoiados em decisões tomadas coletivamente. Mesmo permanecendo resquicios do escalonamento salarial definido, a organização interna do trabalho se flexibiliza. Basta reparar nos trabalhadores do Bauen Hotel, recuperado por seus trabalhadores cooperados. Não é com insatisfação que atendem os hospedes, não é com cansaço que servem as refeições ou com desgosto que trocam os lençois, pois se sentem parte de algo maior, algo que supera a forma tradicional de assalariamento. Teriam os trabalhadores recuperado a auto-identificação com o resultado final de sua produção? Creio que esta questão é bem complexa para tratarmos em um artigo deste porte, mas algo mudou deste acontecimento, e é o que cabe ressaltar. Outro acontecimento chamou-me a atenção. O sindicato dos Subtes, que são as linhas de metro que percorrem todo o subsolo de Buenos Aires, com o assassinato de Mariano Ferreira, abriram as catracas ao público e todos puderam passar sem nada pagar. Impuseram perdas aos transportes, assim como a politica do paÃs novamente havia imposto perdas humanas aos quadros dos trabalhadores. Bem, são essas as impressões de um viajante adepto a viver por ai, a sambar de acordo com a música, mas pronto a destruir o pandeiro, surrar o sambista e transformar o samba. Triste decisão que tivemos que tomar entre o liberalismo social dos antigos quadros da esquerda e o vampiro que deveria ganhar uma medalha por saltar com tanta habilidade os muros da embaixada chilena ao menor sinal de perigo. Creio que novamente tivemos que escolher entre a tecnocracia tucana e a burocracia petista. Ao senhor Gabeira, meus cumprimentos por apoiar os tucanos, afinal, o partido verde se ocupa da questão ambiental não é? Proponho que queimemos todas as florestas, porque hoje a preservação ambiental é indissociavel da dinamica mercadológica. Desta ladainha do Partido Verde ainda vamos muito ouvir. Abre-se essa nova frente na politica brasileira. Armem seus estilingues e iniciem assassinando das Araras, porque no jogo das contradições sociais, o mercado não encontra opositores senão os oponentes que fazem da destruição da natureza também um meio de ampliar o capital, destruindo as florestas para plantar soja, para pastar o gado. Salguemos nossa terra, envenenemos nossas nascentes e o capital encontrará um jeito lucrar com a desalinização. Mas ainda estamos aqui, a atirar para todos os lados, porque justamente é onde floresce o capital. Porque somos baratas, somos ervas daninhas… o que esperar do futuro? Sabe-se lá o que…