Sergio Vidal, antropólogo, ativista e autor do livro “Cannabis Medicinal – Introdução ao Cultivo Indoor“, relata sua experiência na audiência judicial do caso “Moqueca”
por Sergio Vidal
Na última quinta-feira (11/03) estive em Guarapari, no Espirito Santo, participando pela primeira vez de uma Audiência Judicial, na qualidade de testemunha. Estive a disposição para responder perguntas feitas pelo JuÃz, pelo advogado de defesa e pelo promotor do caso. É a primeira vez que um antropólogo foi convocado para prestar testemunho num caso envolvendo um cultivador de cannabis. Essa é uma prática bastante comum em outros processos. Diversos antropólogos já participaram de processos envolvendo comunidades indÃgenas, quilombolas, dentre outras – em geral em casos de disputa por posse de terra ou reconhecimento identitário. Nesses casos, a função do antropólogo tem sido a de servir como um “mediador culturalâ€, facilitando a compreensão das culturas “nativasâ€, por parte dos operadores do Direito. Também é muito comum nos E.U.A e em alguns paÃses da Europa a figura do especialista sobre cannabis qualificado para cortes que, em geral, atuam trazendo esclarecimentos a respeito das práticas de cultivo, estimativas de colheitas, análises do rendimento da estufa, dentre outras questões. Nesse caso especÃfico, cumpri dupla função, atuando como antropólogo, já que realizei a única pesquisa brasileira sobre usuários que cultivam para consumo próprio, e como especialista em cultivo de cannabis. Como antropólogo, procurei esclarecer a respeito da cultura do cultivo de cannabis para uso pessoal e, como especialista em cultivo, procurei levar dados a respeito das expectativas de rendimento da colheita, bem como uma análise da situação na qual o acusado foi flagrado.
O caso em questão é bastante complicado, pois o cultivador está sendo acusado de envolvimento com um grupo que, de fato, praticava o comércio não-autorizado de maconha. No entanto, conforme todas as informações recolhidas até o momento, não há qualquer indÃcio do seu envolvimento com tal grupo. A namorada do cultivador procurou primeiramente os usuários do fórum Cannabis Café, onde ele possuia um diário no qual pretendia relatar o desenvolvimento do seu cultivo. Posteriormente, procurou os usuários do Growroom, para que, juntos, todos pudessem trabalhar para ajudá-la a fazer com que a Lei 11.343 fosse cumprida da forma correta e o Alexandre (Moqueca) pudesse voltar à liberdade.
Das 4 testemunhas de acusação, 1 faltou e, por isso, o promotor solicitou o adiamento da audiência para o dia 6 de abril. O advogado de defesa pediu então que ao menos eu fosse ouvido, por ter ido de um estado distante e não poder ir novamente no dia 6. Após uma longa negociação, foi acordado que eu seria ouvido antes do fim da audiência.
Logo no começo do meu depoimento, o promotor acusou o advogado a estar me induzindo a falar sobre minhas qualificações acadêmicas e técnicas sobre o cultivo. No entanto, ficou decidido que isso era importante para justificar minha convocação e situar o papel da minha colaboração na audiência. O Juiz então aceitou solicitar à escrivã que digitasse uma cópia do meu resumo curricular que consta na Plataforma Lattes do CNPQ. É preciso dizer que o relato abaixo é uma adaptação com base no que eu lembro e não são exatamente o que foi dito lá, nem muito menos o que ficou registrado, mas o conteúdo é essencialmente o mesmo.
O primeiro a pertungar foi o Juiz:
Respondi que não. Que só conheci ele após o corrido, quando me procuraram para ajudar no caso e fui me informar sobre o diário de cultivo dele no cannabiscafe.net. Informei também que este é um fórum aberto para todos lerem e, nele, o Alexandre relatou, de março a setembro de 2010, como estava o andamento da construção da sua estufa que não chegou a ser usada porque ele foi preso. Frisei que só o conheci após o ocorrido, através das discussões no growroom.net e no cannabiscafe.net
Não.
Expliquei que são fóruns de usuários de cannabis que plantam pra consumo próprio e que neles os usuários trocam experiências entre sÃ, buscando ajudar uns aos outros para que possam se tornar independentes do tráfico.
Disse-lhe que a conta ainda está ativa e que, inclusive, seu diário está lá disponivel para qualquer um ler.
Disse-lhe que sou moderador. Expliquei também que um moderador faz com que as regras sejam cumpridas e pune os usuários que descumprem as regras.
Não. Expliquei-lhe que, tanto no growroom.net quanto no cannabiscafe.net é proibido qualquer tipo de comércio no site, mesmo de produtos lÃcitos. Também afirmei que uma das função dos moderadores é exatamente inibir esse tipo de prática.
O segundo a perguntar foi o advogado de defesa:
Expliquei que defendi uma pesquisa feita com usuários que cultivam pra consumo próprio e, além disso, sou autor de um livro sobre cultivo de cannabis medicinal.
Nesse momento, afirmei que tinha trazido dois exemplares para deixar com o Juiz e o promotor. O Juiz aceitou prontamente e passou boa parte da audiência folheando o exemplar dele. Chegou a afirmar que precisava ouvir os dois lados e que iria ler o livro. O promotor recusou o livro e disse ao advogado que se continuasse nessa linha, ele teria me fazer algumas perguntas sobre isso.
Advogado prosseguiu:
Expliquei-lhes de forma resumida como é o cultivo. Que são necessários equipamentos de iluminação, ventilação, fertilizantes especÃficos. Expliquei-lhes a diferença entre plantas macho e fêmea, frisando que somente as fêmeas servem para uso recreativo. Expliquei o fato de que a única parte aproveitável das fêmeas são as flores. Relatei-lhes a dificuldade de germinar a planta e que há uma taxa de perda na germinação. Expliquei também que a planta pode levar 4 meses ou mais para completar seu ciclo completo e estar apta para colheita.
Expliquei-lhes que, desde a mudança na Lei, em 2006, equiparando o porte e o plantio, muitos usuários se entusiasmaram em começar a produzir oqueconsomem e que essa é uma realidade crescente. Relatei-lhes um pouco da história do growroom.net e do cannabiscafe.net, afirmando ainda que existem muitos outros sites que discutem o tema, no qual os usuários podem encontrar informações a respeito. Afirmei ainda que o numero de pessoas flagradas cultivando para uso pessoal tem aumentado muito, e que isso é mais um indicativo da popularidade da prática.
Expliquei-lhes que o Skunk é uma variedade de cannabis. Disse-lhes que assim como existem diferentes variedades de feijão (preto, mulatinho, fradinho), de banana (terra, prata, nanica), ocorre o mesmo com a cannabis. Disse-lhes que o Skunk é apenas um, dos muitos tipos de cannabis existentes e que ele não é, por isso, mais forte ou mais fraca, sendo apenas uma varidade. Disse-lhes ainda que, por ser apenas uma variedade, pode ser cultivada de todo modo. Tanto hidroponia como com substratos, ou utilizando outras técnicas.
Afirmei que, apesar da dificuldade devido a variabilidades de técnicas de cultivo empregadas, de variedades da planta cultivadas, a literatura internacional sobre cultivo, com mais de 30 anos de tradição e experiencias, relatam algumas formas de fazer um cálculo de média. Falei que poderÃamos estabelecer, segundo Ed. Rosenthal, um dos principais autores da área, que em cultivos indoor a média é de 0,25g a 0,75g por watt de lampada.
Disse-lhe que pelo fato dele não ter experiência alguma, como está relatado no diário dele, seu rendimento provavelmente seria mÃnimo. Ou o equivalente a cerca de 100 gramas, em 4 meses de ciclo.
Afirmei que deveria ter pelo menos umas 10 salas de cultivo de 10m2 cada, equipadas com ar condicionado, refletores especializados, no mÃnimo 30.000 watts de lâmpadas e algumas centenas de plantas.
O último foi o promotor:
Disse que sim, mas que é um crime cuja pena de prisão é vetada.
Disse-lhe que sabia que essa era uma das possÃveis interpretações para essa conduta.
Disse que para fazer o cadastro a pessoa precisar aceitar uma declaração afirmando que é maior de 18 anos e usuário(a) de cannabis.
Disse-lhes que sim, era uma autodeclaração, como as mesmas feitas em todo site na internet com conteúdo destinado a adultos.
Disse-lhes que nenhuma triagem é feita.
Disse-lhes que não é possÃvel saber isso. E afirmei que, pessoalmente, acredito que alguém que tenha interesse em traficar sequer vai fazer uma conta, restringindo-se apenas ler o conteúdo. Disse-lhe ainda que não acreditava que alguém que pretende vender sua colheita iria criar um diário pra se expor, como foi o que o alexandre fez.
Disse-lhe que não, que não tenho como saber se o Alexandre ou qualquer outro vai plantar pra consumo ou pra venda. Disse ainda que a quantidade de plantas que uma pessoa cultiva também não podem dizer isso. Disse-lhes ainda que, somente havendo provar concretas de venda é possÃvel saber isso, uma vez que uma pessoa pode cultivar dezenas de plantas e não vender nenhuma, ou pode cultivar apenas uma e vendê-la.
Disse-lhe que sim, que era apenas minha opinião. Que eu acredito que alguém que pretende vender não vai se expor fazendo um diário.
Enquanto a escrivã imprimia meu depoimento para que eu pudesse ler e assinar, o promotor solicitou ao Juiz que fosse encaminhada denúncia contra mim ao Ministério Público de Sergipe, sob acusação de estar incentivando e facilitando a prática do crime de cultivo de maconha.
Links para entender o caso:
Link do diário do “moquecaâ€
Link do tópico sobre o caso no Cannabis Café
Link do tópico sobre o caso no Growroom
NotÃcia sobre o caso no site Folha Vitória
Relato da namorada do “Moquecaâ€
“No dia 28 de outubro Moqueca foi preso na casa dele, na qual mora com os pais e outros familiares. A famÃlia dele possui uma outra casa que fica no centro da cidade, na qual Moqueca começou, pelo que vi no fórum, em abril a construir o seu grow. Essa casa no centro é como um sobrado, loja e sobreloja por assim dizer. Na casa de baixo, Moqueca fazia o cultivo em um pequeno quarto. Bem, na casa de cima moram pessoas da famÃlia dele, primos de terceiro grau e tios. Na realidade, não sei bem dizer o grau de parentesco porque não tÃnhamos contato com eles, mal os vÃamos, e não tive a oportunidade de até então conhecê-los. No dia 28, a polÃcia foi até a casa do centro, com mandato de busca e apreensão em nome de um dos primos do Moqueca, que mora na casa de cima. Na busca, os policiais apreenderam algumas coisas na casa desse primo. Ao acabar a casa de cima, invadiram a casa de baixo. E um dos outros moradores de cima disse que era Moqueca que as vezes ficava na casa de baixo, mas que não morava lá. Bem, ao vasculhar a casa acharam o grow dele, e depois disso foram com um dos moradores da casa de cima na casa de Moqueca, e lá o prenderam. Não havia nada no mandato mencionando Moqueca. No depoimento dele ele explicou que era usuário e que estava cultivando a maconha pois estava cansado de ser ameaçado em boca de fumo, e que não tinha relação nenhuma com o primo. No depoimento do primo, ele alegou também que mal tem relação com Moqueca, que os dois se conhecem, mas não mantem contato algum. Segundo minhas conversas com o advogado, a operação foi pra prender o primo, mas infelizmente porque as casas dividem o mesmo terreno, acharam as coisas de Moqueca. Bem, foram autuados em flagrante por trafico e associação ao tráfico. O que foi divulgado na mÃdia foi absurdamente errôneo, pois afirmaram que foi encontrado um laboratório de drogas, quando na realidade era um sistema hidropônico de cultivo, no qual a maior parte do material estava embalado, não tendo sido, portanto, utilizado.“