Sérgio malbergier – Folha.com
A ditadura foi tarde. Mas, democracia nova, resta muito entulho autoritário.
Outro dia, um juiz novamente proibiu a Marcha da Maconha em São Paulo. Maconheiros marcham pacificamente em dezenas de cidades do mundo e do Brasil, mas, em São Paulo, um juiz proibiu a marcha de defender suas ideias alegando que seria apologia do uso da droga.
Pior, o assalto à liberdade de expressão transformou-se em repressão policial contra os manifestantes pacÃficos na avenida Paulista, que você vê aqui na TV Folha.
Claro que o juiz não consegue barrar a propagação de ideias. Poucos dias depois, o ex-presidente Fernando Henrique Cardoso apareceu no Fantástico e em todos os grandes jornais defendendo posições iguais às da marcha censurada, para um público muito maior.
Carol Guedes/Folhapress |
PolÃcia usou a força para reprimir a Marcha da Maconha, no centro de São Paulo, no dia 21 de maio |
A violência jurÃdica e policial foi tamanha que a causa ganhou força. Em nova marcha, no último sábado, o número de participantes subiu dos 700 uma semana antes para 4.000. Eu, por exemplo, aderi na segunda marcha, rebatizada de Marcha da Liberdade, que você vê aqui também na TV Folha.
O clima era “flower power” total. DifÃcil imaginar uma multidão mais pacÃfica, criativa, construtiva, e incrÃvel ter sido justamente essa turma alvo desse entulho autoritário extemporâneo.
O mundo vive uma onda de protestos organizados e mobilizados pelas redes sociais: surgiu uma capacidade de comunicação, organização e mobilização que mudará tudo.
No mundo árabe, a revolta contra as ditaduras finalmente pôde ser organizada e mobilizada pelas redes sociais. Na Espanha, dezenas de milhares de jovens marcham por Madri e outras cidades contra o sistema econômico e polÃtico. Movimentos como esses pipocam pelo mundo graças à nova comunicação.
No Brasil, jabuticaba com orgulho, entre tantas bandeiras, primeiro foi uma estação de metrô em Higienópolis e depois a Marcha da Maconha que trouxeram a nós esse movimento jovem de protestos em massa. E ainda falam que a maconha tira o pique das pessoas.
Ela certamente as torna criativas. Slogans e cartazes da marcha: “F-H-C, quero queimar um com você”, “ei, polÃcia, pamonha é uma delÃcia”, “cultura é a cura”, “ideias são a prova de bala”, “polÃcia de verdade defende a liberdade”, “Kassab, que vergonha, o busão tá mais caro que a pamonha”, “coxinha é que faz mal, pamonha é natural”, “arroz, feijão, pamonha e educação”.
Fabio Braga/Folhapress |
Após os confrontos da Marcha da Maconha, foi a vez da Marcha da Liberdade, na avenida Paulista |
Pamonha porque a marcha só teve autorização de marchar porque se comprometeu a não defender a maconha.
Antes da marcha, na concentração em baixo do Masp, Pedro Nogueira puxou um discurso inspirado, para animar a turma, em defesa das liberdades individuais, da justiça social, contra a repressão policial, contra qualquer preconceito, a favor da educação.
Conversei depois com ele. Jornalista, 25, Pedro explicou que o movimento do qual faz parte, o DAR (Desentorpecendo a Razão), que organiza a Marcha da Maconha, não tem hierarquia nem cargos, é horizontal. E que no próximo dia 18 de junho tem outra marcha saindo do Masp defendendo as mesmas bandeiras de liberdade, fraternidade e igualdade, contra todas as discriminações.
Segue entrevista com o Pedro, para entender melhor como se organizou a marcha e o que pensam esses moços e moças mobilizados. Espero que o juiz não mande me prender:
Pergunta – Como foi a organização da marcha?
Resposta – A Marcha da Liberdade foi organizada durante uma semana de muita correria entre os setores que se sentiram indignados pelo que aconteceu no sábado da Marcha da Maconha. Fizemos a divulgação pela internet, twitter, facebook e DAR e nos focamos em encontrar as pessoas que concordavam com a gente. Após as bombas do sábado (21), foi chamado um ato que se transformou na marcha da liberdade e uma reunião para quarta-feira, para definir processos organizativos, no Masp. Nela estavam mais de 100 pessoas de todo tipo de organização e pensamento polÃtico. Divulgamos pela internet, mas tentamos manter uma organização horizontal e descentralizada que se articula também pela internet. E pretendemos continuar assim para o dia 18, alinhados sobre eixos comuns, mas cada um trazendo a sua pauta transversal.
Pergunta – O que é o DAR?
Resposta – O DAR é um coletivo horizontal e autogestionado, de caráter antiproibicionista, que tem dois anos e se pauta pela discussão de que não basta discutir a legalização da maconha: temos que falar de violência urbana, de repressão, dalegalização/regulamentação de todas as drogas, da criminalização da pobreza e dos movimentos sociais. É um coletivo que tenta fazer o diálogo entre setores progressistas que pautam as liberdades individuais e uma luta consequente contra o sistema que está posto.
Pergunta – Qual a sua função no DAR?
Resposta – Não temos funções e cargos definidos. Cada um contribui de acordo com sua área de atuação e de acordo com suas possibilidades.
Pergunta – Como o DAR foi criado?
Resposta – A partir da reflexão de que não basta discutir (assim como não basta legalizar) a maconha. Fomos realizando reuniões e debates para consolidar o que querÃamos enquanto projeto coletivo e temos nos organizado assim desde então. Temos crescido bastante por saber aliar as pautas de drogas com outros setores e outras preocupações além de nossa causa especÃfica.
Pergunta – Qual o papel de redes sociais como Facebook e Twitter na organização?
Resposta – São armas que temos. O twitter foi criado originalmente como ferramenta de organização de manifestações via SMS. Lutamos por esse caráter. Evidentemente que lembramos que não são os fuzis que fazem as guerras, e sim os soldados, mas agora temos a bomba atômica da comunicação nas nossas mãos, e isso nos empodera. A Marcha da Liberdade foi divulgada quase que exclusivamente pela internet. Sabemos que boa parte da população brasileira ainda não está na rede, mas isso é apenas questão de tempo.
Pergunta – O DAR e os movimentos aliados pensam em fazer protestos sobre outros temas?
Resposta – Sim. Chamamos durante o ato de sábado um ato nacional, uma grande marcha da liberdade. Ela se foca na defesa da liberdade de expressão real no Brasil e na questão da repressão policial no Brasil, que cria uma cultura de medo que impede as pessoas de irem para a rua. E por isso passa a regulamentação do uso de armas menos letais – spray de pimenta, bala de borracha (que pode ser letal a pequena distância), gás lacrimogêneo (extremamente tóxico) e outros instrumentos de tortura coletiva. Isso é uma herança ditatorial que precisa ser mudada. Além disso, também queremos uma marcha onde caibam todas as outras pautas que lutam por mudança deste status quo. Acho que essa última é de importância fundamental: sermos um movimento aberto, que tente canalizar as pautas de setores que lutam por mudanças na sociedade, e que tenha abertura para tanto.
Pergunta – O que achou da violência policial na primeira marcha?
Resposta – Triste e importante. Triste porque é um resquÃcio da ditadura nas nossas forças de segurança, na nossa Justiça. Mas é um obscurantismo que levantou poeira e deu a real dimensão do que estamos enfrentando. Importante por ter escancarado o que disse antes, por ter mobilizado corações. Importante, acima de tudo, porque marchamos até o fim. Fomos até onde havÃamos planejado, mesmo sob chuva de bombas, mesmo machucados. E voltamos para protestar pela liberdade dos que haviam sido presos. Importante porque levantou a discussão de uma nova polÃtica de drogas para um patamar de qual não retrocederemos. As pessoas viram que a repressão que sofremos é a mesma que os usuários sofrem, que a população das periferias sofre em nome da guerra à s drogas.
Pergunta – Há coordenação com movimentos em outros Estados, tanto na questão da maconha como em outros temas?
Resposta – Estamos articulando. Existem contatos, redes, organizações nacionais. Queremos crescer. A Marcha tem coletivos regionais que estão permanentemente em contato, assim como temos contatos com diversos coletivos antiproibicionistas de todo o paÃs, do Rio de Janeiro, Rio Grando do Norte, Rio Grande do Sul, ABC paulista, Belém, Salvador, Fortaleza. Temos um twitter (@coletivodar) e um site (www.coletivodar.org) que potencializam esses encontros.
Pergunta – Como vê essa onda global de protestos de jovens mobilizados por redes sociais? Vê o DAR e a marcha dentro desse novo espÃrito?
Resposta – Vejo com otimismo. Acho que estamos quebrando a casa do ovo que construÃram para a gente, que dizia que tudo era impossÃvel de mudar, que as coisas estão como estão e são por que são. Estamos vendo o mundo com olhos renovados e queremos reinventá-lo. O DAR se vê como parte desse processo, e acredito que a marcha também. Ao mesmo tempo em que sabemos que somos apenas mais um, queremos construir.