O plano da Prefeitura de São Paulo de internar compulsoriamente crianças e adultos usuários de crack inclui atuação da Guarda Civil Metropolitana (GCM). Composto por três fases – recolhimento, triagem e destinação -, ele prevê que agentes comunitários da saúde e assistentes sociais identifiquem os “noias” que ocupam, principalmente, a cracolândia, na região central, e guardas “ajudem a recolher” esses dependentes.
Todos os retirados das ruas por GCM e assistentes sociais serão encaminhados a centros de triagem, onde serão feitas, entre outros procedimentos, a identificação da pessoa, a avaliação se há sinais de dependência quÃmica e capacidade psÃquica e a checagem de antecedentes criminais.
A partir daÃ, os “recolhidos” poderão ser enviados a clÃnicas de reabilitação ou casas de assistência social. Dependendo do caso, ainda poderão receber capacitação profissional para tentar voltar ao mercado de trabalho.
Quatro secretarias municipais – Desenvolvimento Econômico e Trabalho, Assistência e Desenvolvimento Social, Saúde e Segurança Urbana – participam dos estudos sobre a internação forçada. Mas o programa ainda não tem data para começar, porque faltam acertos jurÃdicos.
Como o Estado revelou na sexta-feira, a Procuradoria-Geral do MunicÃpio já deu parecer favorável à internação, baseada na incapacidade legal de toxicômanos e menores de idade em fazerem escolhas pessoais.
Mas o assunto é polêmico. Para o promotor de Habitação e Urbanismo MaurÃcio Antonio Ribeiro Lopes, a Prefeitura ainda não tem um programa definido sobre o tema. “Nada está acertado. Sem que exista um programa detalhado é muito complicado. Estão fazendo um balão de ensaio. Eles têm divergências internas entre secretarias. Acho que não há nem sequer um projeto pronto. Não vi uma folha de papel. Entendemos que não há projeto detalhado, com cronograma e definição de responsabilidades pelas ações. Enquanto não for apresentando formalmente ao Ministério Público, não há razão para continuar falando nisso”, disse Ribeiro Lopes. “Se não for um projeto abrangente para resolver situação de moradia, autoestima, emprego, renda, educação e saúde, desculpe: isso é perfumaria, não é programa.”
Ampliação. Enquanto isso, a Secretaria Municipal da Saúde diz que já fez 111 internações involuntárias (com aval médico) ou compulsórias (com determinação judicial) nos últimos dois anos – 70 de menores de idade dependentes quÃmicos. A maior parte na Ação Integrada Centro Legal, deflagrada em julho de 2009 em bairros do centro, como a Luz e o Bom Retiro. E a Prefeitura reconhece que terá de investir para criar novas vagas na rede municipal de atendimento para dependentes quÃmicos. Hoje são 317 vagas – 80 leitos na rede própria (com capacidade para 500 atendimentos por ano) e outros 237 nas comunidades privadas conveniadas.
No Rio, a polÃtica de internação forçada vem recebendo cada vez mais crÃticas. Nesta semana, o Conselho Estadual de Defesa da Criança e do Adolescente emitiu parecer contrário à medida. O grupo alega que a estrutura oferecida pela prefeitura é inadequada e a abordagem, ineficaz. “A criança só pode recuperar-se se tiver desejo de ser tratada”, avaliou a conselheira Sabrina Bonfatti. “Além disso, é preciso trabalhar com a famÃlia.”
O secretário de Assistência Social, Rodrigo Bethlem, rebateu as crÃticas. Ele afirmou que há estrutura adequada para tratamento dos menores e a prefeitura está pronta para criar novas vagas de internação, caso seja necessário. “Mais de 80% dos acolhidos não têm mais vÃnculo familiar.” Desde a regulamentação das operações, em 31 de maio, a prefeitura do Rio retirou 101 crianças de cracolândias.
O modelo também já é criticado em São Paulo. Para o secretário paulistano da Saúde, Januário Montone, a diferença é que o Rio fez uma legislação sobre acolhimento e abrigamento compulsório. Em São Paulo, segundo ele, está sendo estudada internação para tratamento.
Apenas 12,4% das crianças e adolescentes que deixaram suas casas para viver nas ruas do centro da cidade tomaram a decisão motivados por uso de drogas. A negligência e o abandono da famÃlia são os principais motivos da ida para a rua (37,3%), seguidos pelas violências familiar (18,3%) e sexual (15,7%).
Os dados tomam por base 209 entrevistas feitas entre junho do ano passado e junho deste ano com crianças e adolescentes que passaram pelo espaço de convivência da região da República, que engloba o perÃmetro da cracolândia. O trabalho é coordenado pelo Projeto Quixote, organização social ligada à Universidade Federal de São Paulo que presta serviço à Prefeitura.
Não souberam explicar as razões para a ida para as ruas 56 entrevistados. “Esses dados mostram que concentrar a discussão na questão da internação e do crack é um enfoque simplista”, afirma o psiquiatra Auro Lesher, coordenador do Quixote. “Não se deve “medicalizar” uma questão social. Depois de sair da clÃnica, se a criança encontrar a mesma realidade em casa, do que vai adiantar?”
Apesar de irem para as ruas por causa de problemas familiares, muitas crianças e adolescentes passam a usar tipos variados de drogas depois que ingressam na nova rotina. É o que constatam os educadores do Quixote e a Pesquisa Nacional sobre Crianças e Adolescentes em Situação de Rua, da Secretaria Nacional de Direitos Humanos, que em março mostrou que 38,6% dos entrevistados não dormiam em abrigos por causa da proibição do uso de álcool e drogas.
Luta. Na tarde de ontem, na sede do Projeto Quixote, na Vila Mariana, zona sul da capital, o Estado encontrou Davi, de 12 anos, e Tamara, de 17, que até hoje lutam para seguir uma vida mais estável após morar na rua. Davi acaba de voltar de um mês de internação contra a sua vontade, a pedido da mãe. Disse que não queria falar sobre o assunto. Ele foi o filho temporão de uma famÃlia com três irmãos. Desde os 6 anos, Davi foge de casa. Aos 11, já morava na rua, onde passou a usar drogas.
No caso de Tamara, ela foi levada à rua pela mãe, que era dependente de crack. Morava na cracolândia com dois irmãos mais novos e viu a mãe engravidar de gêmeos. Aos 12 anos, já usava crack, como a mãe. Depois que deu à luz, o Projeto Quixote conseguiu que a mãe de Tamara se comprometesse a deixar a rua. Ela ficou por um ano em uma clÃnica terapêutica. Os filhos foram para abrigos e passaram a morar todos juntos quando a mãe saiu da internação.
A situação piorou quando a mãe voltou inesperadamente a engravidar. Ela retornou para as ruas aos poucos. Tamara, contudo, aos 17 anos, mora em um abrigo e segue firme na tentativa de ter um futuro sem tantos problemas. Seus quatro irmãos foram adotados. Algumas vezes, ela conseguiu resgatar a mãe e trazê-la de volta aos tratamentos.
“O importante nesses casos é que o crack não é o principal empecilho para trabalhar com as crianças. Estabelecer relação de confiança com essas pessoas e reestruturar a vida fora da rua é fundamental para que o tratamento funcione”, diz o psicólogo Bruno Rocha.
Pela terceira vez, a Justiça adiou o julgamento de agravo regimental que pede a paralisação do Projeto Nova Luz, que prevê a concessão urbanÃstica de 45 quarteirões das regiões da Santa Ifigênia e Luz, na parte conhecida como cracolândia. O novo julgamento foi marcado para o dia 17. O adiamento ocorreu a pedido do desembargador Marc Cracken, depois de o relator do processo, o desembargador Carlos Alberto de Sousa Lima, dar parecer que mantém o projeto.
O agravo foi movido pelo Sindicato do Comércio Varejista de Material Elétrico e Aparelhos Eletrodomésticos no Estado (SincoElétrico) contra uma liminar conseguida pela Prefeitura. Comerciantes da região afirmam que a concessão urbanÃstica Nova Luz é inconstitucional. Em abril, o sindicato entrou com uma ação direta de inconstitucionalidade (Adin) e conseguiu bloquear o projeto.
Para Paulo Garcia, presidente da Associação de Comerciantes da Santa Ifigênia, a definição de uma nova data para avaliar o processo mostra que o assunto é polêmico e as argumentações da sociedade estão sendo consideradas. “Vamos continuar pressionado e informando a população. Esperamos que os desembargadores votem pela inconstitucionalidade desse projeto porque pode abrir precedentes horrÃveis para a cidade e para o PaÃs e tirar o direito à propriedade.”