NÃO
Acolher ou incriminar?
BERENICE GIANNELLA
O caso das crianças que promovem arrastões na Vila Mariana põe a nu uma grave falha. Analisando a questão longe do senso comum suscitado pelo clamor público, vê-se que o Estado e a sociedade brasileiros têm sido incompetentes para evitar o mal maior, que é a entrada de suas crianças e adolescentes na criminalidade.
Desse ponto de vista, o episódio das meninas da Vila Mariana é, por um lado, positivo: ele mostra a dificuldade de articulação das polÃticas públicas no sentido de se tratar essa população de maneira integral e preventiva, evitando sua entrada no mundo delinquencial.
Por outro -e aà está o aspecto negativo-, passou-se a ver o caso como espetáculo midiático e, nesse diapasão, não tardam a aparecer os especialistas de plantão com suas soluções drásticas, para não dizer mágicas.
É o caso daqueles que advogam a internação ou o abrigamento compulsório das “crianças arruaceiras” com menos de 12 anos. Além de terminantemente ilegais, pois o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) e a Constituição Federal vedam iniciativas do gênero, tais soluções parecem oportunistas, por não irem à s raÃzes do problema.
A receita para lidar com a questão está posta há 21 anos, desde a promulgação do ECA. Reza o estatuto que todos os entes da Federação, a sociedade e a famÃlia devem se articular para garantir a observação dos direitos das crianças e dos adolescentes.
Em termos práticos, isso quer dizer que esses atores têm de arregaçar as mangas e integrar os serviços públicos que prestam, articulando polÃticas preventivas eficientes, acolhendo e tratando essas crianças e adolescentes.
Ações de prevenção deveriam ser adotadas já para os primeiros anos escolares, quando várias crianças dão sinais de que têm famÃlias desestruturadas ou vivem em situação de risco -que, mais tarde, se nada for feito, as levará para os atos infracionais.
A Fundação Casa, entidade que presido desde 2005, tem sido nos últimos tempos a caixa de ressonância da ausência de um trabalho efetivo e eficiente nessa área, com papel proativo, e não reativo. Nossa clientela é tÃpica: jovens que abandonaram a escola sem que houvesse providências, filhos de famÃlias desestruturadas, sem acesso a serviços básicos e que acabam na criminalidade por não terem sido resgatados anteriormente.
É a velha história da crônica da morte anunciada. Nos últimos dois anos, cresceu drasticamente o total de internações na Fundação Casa sem que houvesse, no mesmo perÃodo, um aumento proporcional da criminalidade infanto-juvenil.
De uma média mensal de 5.335 jovens atendidos em 2007, saltamos para os mais de 7.200 atuais (total que já alcançou os 7.800 em alguns meses).
Se houvesse uma eficiente articulação dos serviços existentes que detectasse os problemas que levam à criminalidade e agisse proativamente para corrigir os rumos e propiciar atendimento integral a crianças e adolescentes, terÃamos menos vidas comprometidas com essas estatÃsticas tristes.
Os instrumentos para resolver o problema estão aÃ. Conselhos tutelares, sistema único de assistência social, Varas da Infância e da Juventude, escola… Não faltam estruturas. O que falta é integrá-las de maneira inteligente para que possam intervir eficientemente.
A questão da prevenção se faz urgente. E o caso dessas crianças e jovens da Vila Mariana serve de alerta. Querer encarcerá-las sem antes lançar mão de instrumentos que o paÃs já tem é decretar, a priori, a falência do Estado brasileiro.
BERENICE GIANNELLA é procuradora do Estado, mestre em direito processual penal pela USP e presidente da Fundação Casa.
TENDÊNCIAS/DEBATES
Crianças devem ser levadas compulsoriamente para abrigos?
SIM
A criança não pode esperar
ROBERTO DELMANTO JUNIOR E THEREZA CAVALCANTI SAMAJA
A “gangue das meninas”. O abandono, a negligência e o descaso com o que temos de mais precioso, as nossas crianças, está aÃ. Diz o noticiário: meninas com idade entre seis e 12 anos, acusadas de arrastões na Vila Mariana, estão de volta à s ruas. Haviam sido levadas para um abrigo pelo Conselho Tutelar; duas horas depois, estavam andando por aà (Folha, 11 de agosto).
Três dias após, sete meninas foram novamente apreendidas na Vila Mariana. Uma tem 14 anos, três têm 13 anos, duas têm 11 e uma tem dez (Folha, 12 de agosto).
Há poucos dias, quatro crianças entre nove e 12 anos, que vivem na rua, entraram em uma loja de chocolates fazendo arruaça. Uma sentou-se no chão e pediu um copo d’água. Ela aparentava estar dopada.
O grupo não chegou, sequer, a ser encaminhado ao Conselho Tutelar (Folha, 29 de agosto).
Em situações emergenciais, de manifesto risco pessoal, familiar ou social para o jovem abandonado, a medida protetiva do abrigamento compulsório deve, sim, ser aplicada. O Conselho Tutelar deve encaminhar a criança em risco para um abrigo, comunicando o juiz em 24 horas (arts. 93 e 101 da lei 8.069), buscando-se a sua reintegração familiar, com aconselhamentos e outras medidas.
O que não se pode mais tolerar é deixar as crianças fazerem o que quiserem, zanzando pelas madrugadas, abandonadas, exploradas, drogadas, jogadas às agruras dilacerantes da selvageria da nossa São Paulo.
O absurdo maior é a criança ir para o abrigo, “tomar um lanche” e, duas horas depois, sair de volta para as avenidas e viadutos de São Paulo, sob o argumento de que o ECA diz que o acolhimento não implica privação de liberdade (art. 101). Ora, aqueles que estão com a criança têm o dever do cuidado!
Você deixaria um filho seu de dez anos de idade voltar para a rua? Isso é inaceitável.
Sabemos que não é preciso que as coisas ocorram dessa maneira.
Há experiências positivas, sobretudo com a participação de organizações da sociedade civil, como o Centro Assistencial Cruz de Malta, do qual somos diretores, que se dedica a prestar assistência à s famÃlias carentes do Jabaquara, mantendo uma creche com 220 crianças, um Centro de Juventude, cursos profissionalizantes e atendimento médico.
Lá, uma criança de oito anos cuja mãe não tinha condições mentais e cujo padrasto usava métodos violentos de educação não queria voltar para casa ao sair do centro assistencial, passando a dormir na rua, sendo assediada por mais velhos para ingressar nas drogas.
Após apoio familiar sem êxito, foi chamado o Conselho Tutelar, que a encaminhou ao Juizado da Infância e da Juventude. O atendimento foi muito bom, e o menino encontra-se hoje em um abrigo, recebe visitas da mãe e do padrasto, e de voluntários da Cruz de Malta, estando muito feliz.
Aliás, a Prefeitura do Rio de Janeiro implementou um programa de abrigamento compulsório de jovens de rua viciados em drogas, sendo um exemplo a ser seguido.
Encerramos com um poema de Gabriela Mistral: “Somos culpados de muitos erros e muitas faltas, mas nosso crime é o abandono das crianças, negando-lhes a fonte da vida. Muitas das coisas de que necessitamos podem esperar; as crianças não podem. Agora é o momento: seus ossos estão em formação, seu sangue também está e seus sentidos estão se desenvolvendo. A elas não podemos responder “amanhã’; seu nome é hoje”.
ROBERTO DELMANTO JUNIOR, 42, advogado, conselheiro da OAB-SP, é diretor do Centro Assistencial Cruz de Malta ( cruzdemalta.org.br ); e-mail: robertojr@delmanto.com
THEREZA CAVALCANTI SAMAJA é diretora e fundadora do Centro Assistencial Cruz de Malta há mais de 40 anos; e-mail: cacmteresa@hotmail.com