A maioria é negra. Todos são viciados em crack. Muitos têm 16 anos, mas são tão raquÃticos que parecem ter 10. Um ou outro sabe ler. Alguns representam a terceira geração de moradores de rua. Seus depoimentos relatam abusos sexuais, prostituição, abandono, surras de traficantes, morte precoce de amigos. Quase todos têm doenças de pele. Alguns estão com os pulmões comprometidos pelos efeitos do crack.
Há 100 dias, quando a prefeitura do Rio determinou a internação obrigatória das crianças pegas em cracolândias da cidade, 85 meninos, entre 10 e 17 anos, vivem em quatro abrigos. Raros são os que sabem onde mora a mãe. São tão carentes que abraçam, beijam e pedem para ser beijados por quem quer que apareça nos abrigos. A maioria parece não entender o que se fala com eles. Com cinco minutos de conversa, os mais desinibidos pedem: “Tia, me tira daqui?” Não que tenham para onde ir. Dos oito meninos internados no abrigo Casa Viva, apenas quatro tiveram as famÃlias localizadas pela prefeitura. Na Casa Ser Criança, cinco dos 15 internados recebem visita de parente.
Alguns meninos ainda não se livraram do hábito adquirido na rua de tomar coisas de quem passa por perto. Tem os que pedem e os que pegam. Duas meninas do Casa Viva aproveitaram o efeito perturbador que suas histórias causaram no correspondente do jornal Los Angeles Times e pegaram o gravador do jornalista. Funcionários recuperaram o aparelho.
Polêmica. A decisão inédita no PaÃs – recolher com a ajuda da polÃcia e internar obrigatoriamente meninos pegos na rua usando crack – causou polêmica.
A discussão ficou mais intensa há 40 dias. Acompanhados da ministra Maria do Rosário, da Secretaria de Direitos Humanos, representantes da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e dos conselhos regionais de enfermagem, psicologia e assistência social visitaram os abrigos da Secretaria de Assistência Social, e não gostaram do que viram.
“O abrigo parece depósito. Os garotos estão sendo desintoxicados na marra, tomam remédios. Não existe um protocolo de atendimento”, denuncia Margarida Pressburger, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB.
“Há grupos que torcem para que dê errado. Se eu colocar as crianças no Hotel Copacabana Palace, vão achar pouco”, reage o secretário de Assistência Social, Rodrigo Bethlem, que assumiu o cargo no inÃcio do ano.
Dois abrigos visitados pelo Estado – o Casa Viva, administrado pela prefeitura, e o Ser Criança – estão longe de ser um hotel cinco-estrelas. O primeiro, em Laranjeiras, na zona sul, é uma casa pequena de dois andares. A única área externa é um terraço modesto. Não há TV desde que foi quebrada em um acesso de fúria por uma menina. As crianças não estudam. Na última terça-feira, uma equipe da Secretaria de Educação foi até a casa para planejar como funcionará a sala de aula. Na semana que vem, começarão a aprender judô.
Até a visita dos conselhos regionais, duas meninas viviam na casa com meninos. Em um quarto, conviviam garotos de 8 e outros de 14. O atendimento médico e psicológico era feito duas vezes por semana. Há apenas uma semana, uma pediatra começou a dar plantão diariamente na Casa Viva. Na quinta-feira, os meninos foram ao Hospital Pinel, centro de referência em saúde mental, para consulta com um psiquiatra.
Os beliches foram trocados por camas. O cigarro, usado em uma tentativa de reduzir danos da sÃndrome de abstinência, foi substituÃdo pelo doce e pela pipa. A medicação para controlar a ansiedade vai ser substituÃda aos poucos. Na Casa Viva só poderão ficar medicamentos para situações de emergência.
O convênio com as Secretarias de Educação e de Saúde por enquanto só está sendo colocado em prática com os oito meninos internados no Casa Viva. Os outros 77 continuam nos três abrigos na zona oeste, administrados por ONGs, sem esta cobertura. Cada criança custa à secretaria cerca de R$ 2.300,00 por mês.
O Ser Criança, em Pedra de Guaratiba, ganha do Casa Viva em espaço. A casa é modesta, mas fica em uma região rural e tem quintal. O atendimento médico, porém, é mais precário. A consulta com a psiquiatra é feita apenas duas vezes por semana.
Uma professora vai uma vez por semana para tentar ensinar alguma coisa aos meninos. Segundo Vatusy Ramos, coordenadora do local, nos outros dias eles têm capoeira, teatro e educação fÃsica. Falta estrutura, mas a dedicação dos funcionários é comovente. “A gente tenta encher a mente deles. Conversamos muito. Aos domingos, à s vezes a gente vai para algum sÃtio”, conta ela.
“Estamos trocando pneu com o carro andando”, diz Bethlem. “No Brasil não há expertise para tratar esses meninos usuários de crack. Mas é melhor fazer como estamos fazendo ou deixar essas crianças na rua com risco de morrer?”
Maria Thereza Aquino, que dirige há 25 anos o Núcleo de Estudos e Pesquisas em Atenção ao Uso de Drogas, ligado à Universidade do Estado do Rio, não tem dúvidas. “Deve haver erros, mas as crianças certamente estão muito melhor do que na rua.”
DUAS PERGUNTAS PARA…
Analice Gigliotti, psiquiatra
1.A internação compulsória pode salvar essas crianças? É melhor elas serem acolhidas do que estar na rua. Mas desse jeito não vai funcionar. Precisa ter mais recurso e uma supervisão psiquiátrica especializada. O trabalho com dependente quÃmico é multidisciplinar. É preciso ter psiquiatra, psicólogo, assistente social, clÃnico, fonoaudiólogo. Os meninos são impulsivos e carentes. Eles carregam muita dor. Já sofreram tanto que a rua para eles é melhor do que a casa onde moravam.
2.Como tratar os meninos? Acolher dando atividades lúdicas pode ser muito bom. Eu visitei a Casa Viva. É um lugar muito pequeno. Tem pouca atividade lúdica. Não é um lugar agradável. Eles precisam de piscina, de esportes. Eles não podem ficar confinados em uma casa. Eles têm de ser acompanhados por anos. Dependência quÃmica é uma doença crônica, como diabetes e hipertensão. Não existe ex-dependente. Mas é totalmente possÃvel não voltar a fumar crack. O pior problema desses meninos não é o crack. É a vida deles.
Moisés (nome fictÃcio) é negro, gordinho e baixinho para os seus 13 anos. Ainda chupa o dedo quando está muito triste. Nasceu no Complexo do Alemão, mas vive na rua desde os 8 anos, quando a mãe morreu. Já passou por vários abrigos. Fugiu de todos. A última vez em que foi pego estava no Largo do Machado. Desde 31 de maio, quando a prefeitura decretou a internação compulsória de menores usando crack nas ruas, ele vive no abrigo Casa Viva, em Laranjeiras. Na terça-feira, entrou na sala da direção furioso. “Eu vou fugir esta noite, eu vou aloprar tudo aqui.” Moisés estava com raiva porque achava que não tinha recebido atenção da coordenadora da Secretaria de Assistência Social, Cláudia Castro, que acompanha sua saga há anos. O ataque de fúria piorou quando foi levado para o quarto por um educador, funcionário musculoso.
Por quase uma hora, Moisés gritou, esperneou e quebrou duas camas. Não ouviu os argumentos da psicóloga nem atendeu aos apelos da pediatra Cristiene Magalhães, recém-chegada ao abrigo. “Ele ficou com taquicardia, estava muito nervoso. AÃ, tive de sedar.” Cristiene não perdeu a calma. Em quatro dias de trabalho, aprendeu que é preciso paciência com os meninos. “Eles não têm o hábito de conversar. Não pedem as coisas, eles tomam. Um “não” para eles é como uma agressão. Mas, aos poucos, eles vão mudar.”
Adriano, nome fictÃcio, está há “cinco meses e um dia” no Ser Criança, em Pedra de Guaratiba. Tem 12 anos e desde os 7 foge de casa. “A droga me chamou.” Jura que se for para casa com a mãe vai ficar de vez. “”Tô” aqui para me livrar do crack, da maconha e do pó.” Falante, mostra nas costas a marca da surra que levou de um traficante. “Eu roubava, tia. Mas eu “se” arrependo. Vou estudar, ter uma bicicleta e carregar celular no short.” Seu sonho é jogar no Flamengo, mas se não der, quer ser policial. “Aà eu entro nas favelas e mato os traficantes. Não pode matar, tia? Então tá bom, deixo aleijado.”