R7 acompanhou o trabalho destas mulheres no coração da cracolândia
O ponto de partida para se conhecer a rotina de quem convive diariamente mergulhado num dos maiores dramas de São Paulo, a concentração nas ruas de dependentes do crack, é um casarão imponente de 1921, todo restaurado em pleno centro histórico da cidade. Com vitrais coloridos e pisos de granilites, o prédio de dois andares mantém uma renovada atmosfera aristocrática.
O edifÃcio Cleveland está colado ao que se convencionou chamar de coração da cracolândia paulistana, bem ao lado das estações Luz e Julio Prestes e da sala São Paulo, concorrido palco de concertos eruditos de público refinado. O prédio abriga uma unidade da Secretaria de Saúde do MunicÃpio, que entre outros atendimentos – ações que envolvem inúmeros cuidados com a população de rua – reúne um grupo de mulheres com aventais azuis de largos bolsos laterais onde se lê em branco: agente de saúde.
Elas são responsáveis por um corpo a corpo diário, sempre complicado e tenso, com os viciados em crack que habitam a região. Elas atuam num projeto batizado de Centro Legal. O lugar também é chamado de “zumbilândiaâ€, numa referência ao estado de torpor e desorientação que envolve os drogados.
O R7 acompanhou durante uma tarde o trabalho difÃcil destas pessoas. São 94 profissionais, 76 agentes e 18 enfermeiros, que trabalham divididos em equipes junto aos usuários de drogas todos os dias da semana, inclusive sábados e domingos, das 10h à s 22h. Em dois anos já encaminharam 4.000 pessoas para tratamentos de saúde e ajudaram a promover 1.700 internações para o tratamento de dependência, apenas 111 deles de forma involuntária, seguindo ordens médicas. O salário de cada agente de saúde é de exatos R$ 926,20, mais vale refeição e transporte.
Roseli da Silva, de 51 anos, e Karen Cintra Araújo da Silva, de 24 anos, atuam como agentes de saúde na cracolândia.
– Nosso objetivo é criar vÃnculos com eles, conseguir uma aproximação, um primeiro contato para o atendimento de doenças.
Elas admitem que, num primeiro momento, parentes e amigos se espantaram com o trabalho delas. Mas há dois anos entre os drogados, Roseli e Karen já desfrutam da confiança e até de certa cumplicidade entre eles. Ao verem os coletes azuis, eles sabem que não vão ser presos, mas sim vão receber ajuda. A abordagem acontece dentro do “respeito ao tempo†deles, conta Roseli. Se eles tiverem se drogando, elas esperam ficarem “mais calmos e acessÃveis†para engatar uma conversa, muitas vezes rejeitada num primeiro momento com um quase inaudÃvel “quero ficar em pazâ€. Isabel Ribeiro coordena o projeto:
– Trabalhamos com eles dentro da lógica da saúde e do atendimento básico. E nesses dois anos os agentes se tornaram um grande elo com a população de rua.
Diagnóstico
Cada equipe reúne um enfermeiro e quatro agentes com nÃvel médio, que vão se capacitando no decorrer do trabalho. Cada morador de rua e usuário de droga é submetido a um formulário para o diagnóstico de seus problemas de saúde. No caso dos usuários de crack, o que predomina são doenças pulmonares e respiratórias, pelo uso de substâncias de má qualidade.
A ação dos agentes também visa a prevenção de doenças como DST (doenças sexualmente transmissÃveis) e, em particular, a Aids; além é claro, da dependência de álcool e outras drogas.
– Nós despertamos nele um desejo de se cuidar.
Quem resolve se tratar, é levado a tomar banho em um dos centros de convivência espalhados pelo centro, recebe uma refeição.
– É o pontapé inicial para a inserção. Se criarmos um vÃnculo com ele já é um super-resultado.
O próximo passo é conseguir um documento. Hoje, calcula-se que existam mais de 14 mil moradores de rua na cidade, boa parte nas regiões da Sé, República, Santa CecÃlia e Luz, onde predominam os usuários de drogas. Na cracolândia, porém, nem todos vivem nas ruas. É comum encontrar no final da tarde e inÃcio da noite, trabalhadores do comércio da região em busca da droga para o consumo eventual. Mas apesar da “população flutuanteâ€, a cracolândia tem uma concentração média de quase mil usuários.
Confiança
E nada pode quebrar a confiança conquistada pelas agentes de saúde e os drogados. Para acompanhá-las é preciso ser discreto. Nada de câmeras, nem anotações. Há traficantes e foragidos da Justiça em meio da massa humana que vive nas calçadas, em meio ao lixo e papelões, retirados diariamente para que garis possam jogar água nas ruas. Essa hora é quase sempre conturbada, há princÃpio de protestos e gritaria, afirma Roseli.
– No inÃcio foi um impacto trabalhar entre eles, tinha receio, mas hoje chego sempre tranquila, é preciso respeitar o espaço deles.
Mas há relatos de agentes que já foram agredidas por moradores de rua com transtornos mentais. Tanto que as próprias agentes recebem um acompanhamento psicológico e participam de “sociodramas†com um psicólogo, diz Isabel.
– É para que possamos expor nossas angústias e relaxar. É uma terapia […] Não somos super-heróis e nem assistencialistas e respeitamos o desejo dos moradores de rua, que muitas vezes estão nesta situação apenas porque não querem viver dentro dos modelos que a sociedade oferece. Nos cabe orientar, a decisão de aceitar o tratamento é dele.
Muitas vezes a aproximação se inicia com a lavagem de uma ferida ou um curativo. Em outros casos, os próprios usuários procuram as agentes porque reconhecem que “estão usando demais†a droga.
A visão da cracolândia, mesmo para quem está acostumado com o noticiário sobre o assunto ainda assusta. Roseli se aproxima de uma mulher com uma criança recém-nascida e ouve que ela está parando de “usarâ€. Em todos os lados, sujeira e pessoas amontoadas com cachimbos sendo acesos a céu aberto. Um homem gesticula entre carros que insistem em passar no meio deles. Há até um enorme buraco que une duas ruas, usado segundo eles mesmos para torturas e mutilações em acertos de contas entre traficantes e usuários inadimplentes. E lá vão Roseli, Karen e outras agentes com a oferta de dignidade e um pouco de saúde.
Roseli da Silva, de 51 anos, e Karen Cintra Araújo da Silva, de 24 anos, atuam como agentes de saúde na cracolândia (Foto: Julia Chequer/R7)