8 de Novembro de 2011 – 10h56
do Vermelho
Por Jamil Murad*
O uso de substâncias alucinógenas ou que alterem os sentidos é milenar na história da humanidade. Possivelmente, permeou a existência de alguns dos nossos mais antigos antepassados – que recorriam a diversas plantas para fins geralmente ligados à religião e à medicina – e certamente continuará a fazer parte de nosso cotidiano.
No entanto, na contemporaneidade o processo que levou à exacerbação da sociedade do consumo parece ter resultado em uma nova relação com as drogas e na sua maior disseminação e grau de dependência. O conhecido “vazio existencial†e as doenças cuja intensificação está associada à modernidade, como a depressão, é um dos fatores que levam uma parcela considerável da população a recorrer aos mais diversos tipos de droga como saÃda paliativa à s suas angústias.
Por outro lado, as drogas são usadas para buscar novas experiências, para auto-afirmação social ou mesmo para turbinar a sensação de felicidade e bem-estar. Fator igualmente importante é que, especialmente no caso de substâncias de mais baixo custo, maior poder de alucinação e alto grau de dependência, como o crack, a utilização serve para aplacar as dores de populações em condições sócio-familiares vulneráveis, como os moradores de rua.
Outro aspecto a ser considerado é que o mercado de drogas está entre as mais rentáveis atividades econômicas do mundo, ou seja, de uma maneira ou de outra, ainda que seja feito o combate ao tráfico, as estruturas criminosas usarão dos mais diversos artifÃcios para potencializar seus lucros e manter girando a roda do negócio. E uma das maneiras é fazer com que as substâncias cheguem a cada vez mais pessoas de idade cada vez menor.
Nestas situações, ou quando a somatória dessas diversas motivações e fatores leva a um descontrole do uso de drogas, passa a ser imprescindÃvel a interferência do poder público tanto do ponto de vista preventivo – o que inclui desde ações de inteligência e combate ao tráfico até a educação de crianças e jovens – como no âmbito do tratamento multidisciplinar – envolvendo desde aspectos ambulatoriais até a ressocialização dos dependentes em estado mais preocupante.
A gravidade da situação de milhares de usuários Brasil afora ganhou contornos de tragédia nacional, entrando na agenda oficial do governo federal e chamando maior atenção dos poderes locais.
Quando o crack supera o álcool
Não são apenas as substâncias ilegais que causam preocupação. O consumo de álcool, especialmente em nossa juventude, é outro dado alarmante. Pesquisa realizada pela Secretaria Nacional de PolÃticas sobre Drogas (Senad) com 17 mil estudantes universitários de todas as capitais mostrou que 86% deles consumiram álcool e que nesse universo, 22% podem desenvolver dependência. Mas, por se tratar de uma droga socialmente aceita e de menor agressividade tóxica quando comparada ao crack, por exemplo, tem sido tolerada ao longo dos anos. Além disso, seu consumo é propagandeado nos principais meios de comunicação, o que contribui para naturalizar o seu uso. Mas, a epidemia de crack já chega, em alguns aspectos, a superar o álcool.
Um levantamento feito pela Frente Parlamentar de Enfrentamento ao Crack e Outras Drogas, da Assembleia Legislativa de São Paulo, mostra que especialmente no interior paulista, em cidades entre 50 mil e 100 mil habitantes, o crack se equipara ao álcool no número de atendimentos na rede pública de saúde: 38% cada.
Para chegar a estes dados, foram enviados questionários aos administradores de todos os 645 municÃpios paulistas; 325 deles o responderam, representando 76% da população.
No estado como um todo, dentre os usuários de algum tipo de droga lÃcita ou ilÃcita que buscam atendimento, 49% estão ligados ao vÃcio do álcool; o crack vem depois, com 31%, seguido da cocaÃna (10%), maconha (9%) e drogas sintéticas (0,59%). O levantamento mostrou também que tem sido alto o consumo entre os cortadores de cana.
Inversamente contrário à s necessidades dos municÃpios é a ajuda vinda dos entes estadual e federal. Segundo as respostas dos gestores, apenas 5% das prefeituras recebem recursos estaduais para lidar com o problema e apenas 12% dizem receber ajuda federal.
Alcance devastador
Resultante da mistura da pasta-base de coca ou cocaÃna refinada com bicarbonato de sódio e água, o crack pode ainda conter outras substâncias tóxicas tais como, por exemplo, querosene, cal, cimento e soda cáustica. Por ser fumado, alcança diretamente o pulmão, órgão que, devido à sua vascularização e tamanho, tem a absorção facilitada, levando a substância rapidamente à circulação sanguÃnea e ao cérebro.
Conforme informações da Secretaria Nacional de PolÃticas sobre Drogas, em 10 a 15 segundos, os primeiros efeitos já ocorrem, enquanto após cheirar cocaÃna surgem depois de 10 a 15 minutos, e após a injeção, em 3 a 5 minutos. “Essa caracterÃstica faz do crack uma droga ‘poderosa’ do ponto de vista do usuário, já que o prazer acontece quase instantaneamente após uma ‘pipada’ (fumada no cachimbo)â€, informa.
No entanto, a sensação dura pouco: cerca de cinco minutos; no caso de cheirar ou inalar cocaÃna, varia de 20 a 45 minutos. Conforme explica a Senad, isso faz com que o usuário volte a utilizar a droga com mais frequência que as outras (praticamente de cinco em cinco minutos), facilitando a dependência.
Propostas em questão
Conforme dados da Organização Mundial de Saúde, a estimativa é de que haja no Brasil 6 milhões de usuários de crack, equivalentes a cerca de 3% da população, enquanto o Ministério da Saúde trabalha com cerca de 2 milhões. Estudo realizado pela Unifesp e pela Senad adotado nas Diretrizes Gerais Médicas do Conselho Federal de Medicina (CFM) indica que um terço dos usuários encontra a cura, outro terço mantém o uso e outro terço morre, sendo que 85% dos casos estão relacionados à violência.
O CFM defende intervenções dentro dos preceitos legais para desintoxicação como medida inicial, ressaltando que o paciente deve “ter acesso à rede de tratamento ambulatorial bem como aos processos integradosâ€.
Para o Conselho, além das questões de cunho médico, é preciso criar uma rede multidisciplinar que englobe, entre outros fatores, ações preventivas através da sensibilização e capacitação dos profissionais de saúde e educação; identificação precoce e encaminhamento adequado; desintoxicação via tratamento e suporte sintomático; tratamento das comorbidades clÃnicas e psiquiátricas; aplicação de estratégias de psicoeducação trabalhando fatores de risco, entre outros.
No âmbito federal, a busca por saÃdas levou à elaboração de um Plano Integrado de Enfrentamento ao Crack e outras Drogas, lançado em maio de 2010 pelo então presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com um orçamento inicial na ordem de R$ 410 milhões para aquele ano a serem utilizados em ações de prevenção, atenção e reinserção social de usuários e dependentes, e repressão ao tráfico.
A presidenta Dilma Rousseff deu continuidade ao plano e no começo deste ano, durante lançamento de 49 Centros de Referência em Crack e outras Drogas, declarou: “Temos um quadro extremamente preocupante no que se refere à s drogas e à criminalidade. Meu governo vai fazer um combate sustentável ao crack. Tenho o compromisso de levar uma luta sem quartel ao crackâ€. As ações federais são passos positivos, especialmente levando-se em conta que até 1998, não havia no Brasil uma polÃtica pública voltada para as drogas. E mostram que o governo está se comprometendo a enfrentar a questão.
No âmbito municipal, as coisas são mais preocupantes. Uma forte polêmica, opondo parte do setor médico e entidades ligadas aos direitos humanos à s autoridades públicas, veio à tona com mais força a partir da polÃtica adotada na cidade do Rio de Janeiro.
O uso da polÃcia no processo de recolhimento de crianças nas ruas e sua condução a delegacias policiais, num flagrante desrespeito ao Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), levaram o Ministério Público Estadual a propor à Secretaria Municipal de Assistência Social o compromisso de assinar um termo de ajuste de conduta a fim de que seja revista a tática usada pela prefeitura carioca. Até agosto, as operações teriam resultado no acolhimento de mais 1.300 pessoas, das quais pouco mais de 250 eram crianças e adolescentes.
No caso da cidade de São Paulo, não levou muito tempo para que a prefeitura cogitasse aplicar a mesma tática do Rio de Janeiro, o que indica um perigoso potencial de reprodução em âmbito estadual e mesmo nacional dada a influência que a capital tem sobre as demais cidades. Interesses econômico-imobiliários focados no projeto “Nova Luz†e a percepção de boa parcela da população de que a presença de usuários nas ruas é uma ameaça à sua segurança e degrada a cidade estão na essência do posicionamento assumido pela administração municipal.
Neste contexto que envolve as duas maiores capitais do paÃs, a tática da internação compulsória ganhou capas de jornais e revistas e se tornou a grande panaceia daqueles que querem extirpar o problema sem ter de enfrentar sua essência. Estimativas do Departamento de Investigações sobre Narcóticos (Denarc) apontam que devem existir na cracolândia, região central da cidade, cerca de 2 mil usuários. Muitas dessas pessoas, de fato, encontram-se em situação deplorável: já não têm total consciência de seus atos, dormem e acordam nas ruas, passam fome, frio e todo tipo de violência, se afastam de seus familiares e contraem doenças de toda espécie.
Mas, recolher essas pessoas à força e trancafiá-las num espaço fÃsico qualquer, tirando-as da vista da sociedade, não se configura em solução adequada. É preciso uma abordagem multidisciplinar feita por profissionais treinados para a situação.
Em casos muito extremos de dependência ou de surtos psicóticos que ponham em risco a vida do usuário, pode ser necessária a internação. Porém, é preciso que haja uma avaliação médica cuidadosa e autorização judicial, além de uma estrutura de tratamento completa. O recolhimento desordenado de todo e qualquer usuário é medida policialesca e de pouca eficácia, conforme tem sido colocado por diversos especialistas.
Reação à internação compulsória
Diante deste quadro alarmante e na busca por soluções que fujam do rol das respostas simplistas, autoritárias e higienistas, a Comissão de Direitos Humanos, Cidadania, Segurança Pública e Relações Internacionais da Câmara Municipal de São Paulo realizou debate sobre o tema.
Com base nas opiniões expostas por especialistas da área médica, jurÃdica, psicológica e representantes da administração pública, ficou claro que é preciso enfrentar a questão principalmente nos âmbitos familiar, social, educacional e da saúde. É preciso associar ações nestas áreas, oferecendo assim uma saÃda multissetorial. Um olhar especial deve estar voltado para a questão dos moradores de rua, principalmente as crianças e adolescentes.
Conforme dados do Projeto Quixote, ligado ao Departamento de Psiquiatria da Unifesp, obtidos através de 209 entrevistas feitas com crianças e adolescentes atendidas por ele, apenas 12% dos usuários foram para as ruas por causa da droga.
O abandono e a negligência por pais e parentes (37%) e as violências familiar (18%) e sexual (15%) são os principais fatores. Ou seja, a desestruturação das relações sócio-familiares, a falta de perspectivas, de apoio, afeto e educação levam parte de nossos jovens, já em sua tenra idade, a caÃrem na armadilha das drogas. Além disso, essas informações mostram que os recursos médicos respondem por uma parte do tratamento; é preciso uma rede de sustentação que faça com o que o usuário – criança ou adulto – seja inserido socialmente, veja-se como parte da cidade, tenha perspectivas futuras de estudo, emprego, saúde e convÃvio familiar. Sanar a doença sem oferecer novos rumos é como enxugar gelo: não resolve a questão.
Durante o debate que realizamos, um caso chamou atenção. O psiquiatra da Faculdade Paulista de Medicina, Dartiu Xavier, coordenador do Programa de Orientação e Tratamento a Dependentes (Proad),criado há 24 anos, recordou ter testemunhado o relato de uma menina que usava crack para não sentir a dor fÃsica de ter de se prostituir e, assim, garantir seu sustento. Para aquela menina, lembrou, a droga era a solução e não o problema de seu cotidiano. Mas ele advertiu que internar sem a concordância do usuário não é o caminho mais adequado para lidar com a brutalidade de situações como essa. “Posso afirmar que 98% das pessoas que são internadas compulsoriamente recaem, sendo, portanto, um método de baixa eficácia. Aliás, mesmo com a internação voluntária, o sucesso não é muito grandeâ€. Segundo ele, ainda que haja insuficiências, os melhores métodos atualmente são os de atendimento ambulatorial, como os empregados nos Centros de Atenção Psicossocial – Ãlcool e Droga (Caps-AD).
Do ponto de vista jurÃdico, Luiz Fernando Vidal, membro do Conselho da Associação JuÃzes para a Democracia, alertou para o fato de que nenhuma alternativa deve desrespeitar a autonomia do indivÃduo. “Não se pode admitir nenhuma intervenção de conteúdo autoritário na abordagem desse problema. Não havendo um programa, governos correm o risco de agir na base do voluntarismo, desprovidos de conhecimentos e base teórica e cientÃficaâ€.
Eduardo Ferreira Valério, promotor público da Divisão de Inclusão Social, disse que apesar de não haver ainda um parecer oficial do Ministério Público paulista sobre o assunto, “o MP não concordará com as internações compulsórias que signifiquem a mera remoção dos dependentes, sem um projeto que contemple o tratamento, sobretudo ambulatorial, propicie refazer os laços familiares e ofereça alternativas de profissionalização e moradia para que não retornem à s ruasâ€.
Resolver essa situação não é tarefa simples: não dispomos de fórmulas prontas, nem há soluções definitivas. Além disso, a questão muitas vezes fica permeada por um forte recorte de classe e uma visão elitista do problema que podem resultar em ações cosméticas e que colocam o uso da droga em si como foco deste drama, ignorando o que de fato está por trás do aumento de seu uso.
A prevenção, por meio da educação e da conscientização, ainda é o melhor caminho para se evitar epidemias de quaisquer drogas. Também é preciso criar uma rede de atendimento aos dependentes que contemple o tratamento médico por meio de centros de referência e a reinserção social e familiar.
A internação compulsória casada à falta de uma estrutura abrangente e que permita aos dependentes serem tratados e ressocializados leva ao risco de as cidades, especialmente São Paulo, ganharem verdadeiros “depósitos humanosâ€, cuja função seria simplesmente retirar os dependentes das vistas da população, uma resposta higienista que não resolveria efetivamente esta situação e infringiria o direito humano básico à vida, à liberdade e à dignidade.
*Jamil Murad é médico, vereador, lÃder do PCdoB e presidente da Comissão de Direitos Humanos,Cidadania, Segurança Pública e Relações Internacionais da Câmara Municipal de São Paulo