Autor de “O fim da guerra” classifica modelo espanhol de “revolucionário”, o holandês de “ultrapassado” e avisa: “a descriminalização não resolve nenhum dos problemas graves ligados a drogas”
Holanda, Califórnia, Espanha, Portugal e Marrocos. O jornalista Denis Russo Burgierman visitou estes lugares em busca de alternativas à fracassada guerra à s drogas. Além de muita história para contar e da certeza de que é necessário e urgente transformar o proibicionismo, Denis trouxe na mala o livro O fim da guerra – a maconha e a criação de um novo sistema para lidar com as drogas, que terá lançamento nesta segunda-feira em São Paulo (veja convite abaixo). O DAR conversou com exclusividade com Denis sobre o que ele viu em sua viagem, suas opiniões sobre o inevitável processo de mudanças e sobre a atual conjuntura do debate de drogas no Brasil e no mundo.
DAR – Seu livro chega num momento em que cada vez mais se questiona a atual polÃtica proibicionista de certas drogas. No entanto, o debate ainda está envolto em muitos preconceitos e tabus, como o veto da propaganda do livro no Metrô-SP mostra. Como você avalia o atual estágio do debate sobre drogas no Brasil?
Denis Russo Burgierman – Claramente há avanços, principalmente no reconhecimento do direito à liberdade de expressão, verificado na decisão recente do Supremo em relação à legitimidade da Marcha da Maconha. Isso é muito importante. Como jornalista que tenta discutir o tema a sério há mais de uma década, várias vezes enfrentei ameaças judiciais por meramente propor o debate. Quando comecei a escrever sobre o tema, o esdrúxulo crime de “apologia” podia equivaler ao tráfico: portanto havia uma pressão muito grande para calar o debate. Mas ainda há uma dificuldade muito grande em discutir o assunto abertamente. Embora seja um dos temas mais cruciais do paÃs, intimamente ligado aos maiores problemas nacionais (em especial corrupção e violência), a cada vez que se tenta falar do assunto surge uma violenta reação social, que busca desqualificar o debatedor. Dissemina-se a ideia de que falar sobre drogas no geral – e maconha em particular – não é importante, e que a motivação de quem insiste em debater é “fumar seu baseadinho em paz”. Acho engraçado que essa reação conservadora agressiva vem dos mais variados setores da sociedade, inclusive de indivÃduos que se consideram progressistas. É um preconceito entranhado tanto na direita quanto na esquerda, tanto na TFP quanto em supostos defensores da liberdade. Agora, é importante lembrar que esse problema não é exclusivo do Brasil. No mundo inteiro há tabus envolvendo esse tema.
DAR – Por que considera que “os polÃticos são dependentes da guerra à s drogas”?
Denis – PolÃticos dependem de votos. Sem votos eles não se elegem e sua carreira acaba. Essa dependência de votos pode ter efeitos nefastos: maus polÃticos podem começar a agir apenas para ganhar votos, esquecendo-se que sua verdadeira obrigação é defender o interesse público. Isso claramente é o que está acontecendo praticamente no mundo todo em relação à polÃtica de drogas. Entramos num ciclo vicioso: a abordagem meramente repressiva torna as drogas mais caras, o que aumenta seu preço e consequentemente aumenta os lucros do tráfico. Com isso, os traficantes tornam-se mais poderosos, a violência aumenta e o uso de drogas aumenta. Os polÃticos, então, aumentam a repressão, o que aumenta ainda mais o preço das drogas e os lucros do tráfico. E uma coisa vai alimentando a outra.
Hoje, no Brasil, não há praticamente nenhum polÃtico que tenha coragem de romper esse ciclo vicioso. Só há dois tipos de polÃticos: uma minoria que ingenuamente acredita que a guerra contra as drogas pode funcionar e uma maioria que não acredita nisso mas não toca no assunto porque tem medo de perder votos. É por isso que apenas polÃticos aposentados têm coragem de abordar a sério esse tema. Eles estiveram no poder e sabem que o que estamos fazendo simplesmente não funciona. Romper esse ciclo sempre pareceu quase impossÃvel, mas Portugal, um paÃs católico e conservador, provou que não é. Lá, um governo seriamente comprometido com o interesse público teve a coragem de, em vez de usar o tema das drogas oportunisticamente para apavorar a população e ganhar votos, realmente juntar um grupo de especialistas para resolver o problema. Os resultados são incontestáveis. Em apenas dez anos, o problema das drogas no paÃs diminuiu a olhos vistos, o que diminuiu o pânico da população e permitiu uma polÃtica mais racional, moderada e eficaz.
DAR – Quais alguns dos principais impactos polÃtico-econômicos para o Brasil caso a maconha seja legalizada?
Denis – Eu prefiro não colocar o debate nesses termos. Não acho que a legalização seja uma solução mágica para todos os problemas. O fundamental não é escolher entre a “legalização”, a “descriminalização” e a “proibição”. Qualquer desses caminhos pode funcionar, desde que seja implantado de maneira racional, moderada, baseada em conhecimento. O que não funciona é o que fazemos hoje: uma repressão burra, ultra radical, baseada apenas em preceitos morais, sem levar em conta o conhecimento produzido por especialistas. Precisamos superar esse radicalismo. Não sou favorável a substituir um radicalismo por outro: trocar a proibição burra por uma legalização total. Acho que as mudanças precisam ser graduais – para começar, precisamos abrir brechas no atual sistema que tirem lucro do tráfico e criem canais de fornecimento para usuários conscientes, ao mesmo tempo em que se estrutura uma rede de cuidado para os dependentes.
Tem duas coisas fundamentais que o sistema atual é incapaz de fazer: tirar dinheiro (e poder) do tráfico e cuidar dos dependentes. Portugal criou um sistema lindo para cuidar dos dependentes. A Califórnia e a Espanha estão experimentando com sistemas bem diferentes um do outro mas que tiram poder do tráfico ao criar canais legais de fornecimento de maconha. É por aà o caminho. É por aà que o Brasil vai no futuro, queiram os polÃticos ou não.
DAR – No último seminário do CEBRAP o secretário exonerado da SENAD, Pedro Abramovay, afirmou que os EUA foram pioneiros no proibicionismo e serão os primeiros a legalizar e regulamentar a venda de Cannabis. Você concorda que o caminho é esse?
Denis – O federalismo americano dá aos estados a autonomia de decidir seus próprios caminhos. Diante disso, me parece inevitável que mais cedo ou mais tarde acabe sendo aprovada a legalização em algum estado americano. Acho muito provável que a Califórnia legalize a maconha em 2012. E, se não for a Califórnia, será o Colorado, Novo México, Vermont, Massachussetts. Se não for 2012, será 2014. Quando isso acontecer, o efeito será poderoso no mundo todo. A guerra contra as drogas é uma invenção americana, largamente financiada pelos EUA, com efeitos trágicos no mundo todo. Quando ela acabar no coração dos EUA, provavelmente a autoridade simbólica dos tratados internacionais antidrogas irá se esvaziar rapidamente. Mas é bom lembrar que o Brasil tem uma classe polÃtica imensamente corrupta e desconectada do interesse público. Fomos o último paÃs das Américas a abolir a escravatura – não será surpresa se formos também o último a nos livrarmos dessa polÃtica burra que só favorece os traficantes.
DAR – Apesar de afirmar que o fim da proibição da maconha está próxima, você afirma que no caso brasileiro dificilmente a mudança não acontecerá por meio do Congresso. Como você vislumbra que será essa transição no Brasil?
Denis – Na Justiça, como está sendo na Espanha e nos EUA. Vai ficar cada vez mais difÃcil para um juiz negar o direito individual ao cultivo pessoal sem fins lucrativos, assim como só um juiz muito cruel seria capaz de negar um tratamento comprovadamente eficaz para um doente crônico. Essas duas frentes – os usuários medicinais de cannabis e os auto-cultivadores – vão mudar o sistema, aos poucos, ao custo de muito sacrifÃcio pessoal.
DAR- Você concorda então com o argumento de que a “Cannabis Medicinal” seria a via mais rápida de um avanço no processo de regulamentação da maconha no paÃs?
Denis – Nosso sistema atual é cruel, ao negar um medicamento útil a pacientes que estão sofrendo com doenças terrÃveis, que estão perdendo a visão por causa de glaucoma, que estão desistindo de se tratar do câncer por não aguentar os efeitos colaterais da quimioterapia, que estão tendo que recorrer a medicamentos muito mais nocivos, que causam uma série de efeitos colaterais que inclusive ameaçam a vida. Então enxergar a cannabis medicinal apenas como uma estratégia para a regulamentação me parece inadequado. Mas o fato é que o atual sistema, por ser ultra-radical e não abrir brechas, aumenta imensamente o poder do tráfico. Nesse sentido, é fundamental que surja alguma brecha – algum canal legal de fornecimento de cannabis, que permita aos usuários que não querem ou não podem parar de usar maconha conseguir comprar sem alimentar o narcotráfico.
Na Califórnia, a brecha é o uso medicinal – eu mesmo sou um paciente aprovado. Na Espanha é o cultivo. Por onde surgir a brecha, as pessoas vão entrar. Garanto a você que, se o uso religioso for regulamentado, haverá um monte de conversões. É muito difÃcil traçar com precisão a fronteira entre o que é recreativo, o que é medicinal e o que é religioso. Exemplo: um antidepressivo serve para melhorar o humor, nesse sentido ele é recreativo também. A verdade é que as pessoas usam determinadas substâncias por diferentes razões, nem sempre claras para elas mesmas.
DAR – Dos lugares pelos quais passou, quais modelos você considerou mais interessantes?
Denis – O modelo espanhol, das cooperativas de cultivadores sem fins lucrativos, me pareceu revolucionário. Tanto que boa parte dos antigos ativistas pró-legalização espanhóis hoje mudaram de ideia e são contra a legalização, porque acham que o sistema das cooperativas é ainda melhor, ao evitar que o mercado caia sob o controle de corporações. Mas tudo o que vi me pareceu imensamente interessante, por razões diferentes. O modelo holandês foi interessantÃssimo nos anos 1970, ao mostrar que a abordagem da redução de danos é muito mais realista e eficaz do que a proibição de inspiração religiosa. O sistema californiano é incrÃvel ao provar que a indústria da cannabis pode ser uma força positiva numa comunidade: geradora de empregos, recuperadora do espaço urbano, preservadora do ambiente. Portugal é a prova de que um sistema polÃtico pode ser racional e de que um sistema do século 21 funciona muito melhor do que um do século 20. E, claro, voltei absolutamente encantado do Marrocos, onde o consumo de cannabis ainda segue padrões tradicionais, pré-proibicionistas.
DAR – Após visitar Amsterdã, na Holanda, você afirmou que o modelo de polÃtica de drogas é interessante, mas já ultrapassado. Por quê?
Denis – Porque o principal problema ligado à s drogas não tem a ver com o usuário, mas com o fornecedor. O maior problema gerado pelas drogas ilÃcitas é o fato de que elas enriquecem os traficantes e dão a eles um imenso poder. Hoje, quase todo o crime organizado e os grupos guerrilheiros do mundo são em algum grau financiados pelo tráfico. E o modelo holandês, concebido nos anos 1970 com a boa intenção de proteger os usuários, não levou isso em conta. Os sistema dos coffee shops regulamentou a venda ao público, mas não a produção ou a venda no atacado. Isso gera uma situação insustentável: o comerciante pode vender maconha, mas não pode comprá-la nem produzi-la. Com isso, surge uma brecha da qual os criminosos podem se aproveitar. Enquanto essa contradição não for resolvida, o sistema holandês estará seriamente ameaçado.
DAR – Como você vê a opção defendida por alguns de descriminalização apenas do usuário e a manutenção da repressão ao “traficante”?
Denis – Criminalizar o usuário é insustentável numa democracia e custa imensamente caro para a sociedade. Colocar usuários na cadeia simplesmente não tem nenhum efeito positivo para a sociedade. Na cadeia, ele terá ainda mais acesso a drogas. Por conta disso, em praticamente todas as democracias desenvolvidas do mundo, a tendência é de não colocar usuários na cadeia. Mas a descriminalização não resolve nenhum dos problemas graves ligados a drogas. Ela não tira poder do tráfico, não garante a qualidade do fornecimento de drogas, não garante o cuidado ao dependente. Ou seja, é uma solução paliativa – melhor que nada, mas insuficiente.
DAR – No livro, você relata que existem 210 milhões de usuários de drogas ilÃcitas. Destes, 80%, 165 milhões, seriam usuários de maconha. Com a sua regulamentação, sobrariam os outros 45 milhões usuários de drogas ilÃcitas. Você defende a regulamentação também das outras drogas? Como vê o proibicionismo à s outras drogas que não a maconha?
Denis – Eu defendo que, para lidar com sistemas complexos, é preciso adotar soluções graduais e desistir das verdades absolutas. Cada caso é um caso e um passo de cada vez. Acho que os dois primeiros passos são 1) criar um sistema de cuidado para os dependentes nos moldes portugueses e 2) criar um canal legal de fornecimento de maconha. A partir daÃ, vai ser hora de observar os resultados e decidir de maneira racional, a partir de dados, se faz sentido ou não regular o fornecimento de alguma outra droga. Acho sim que o sistema de saúde deveria ser capaz de prover determinadas drogas a dependentes, com o objetivo de desrentabilizar o tráfico ilegal, mas reconheço que essa seria uma solução polêmica, difÃcil de defender politicamente, ainda mais num paÃs irracional como o Brasil.
DAR – Que importância você atribui aos movimentos sociais, como a Marcha da Maconha, no processo de construção de alternativas ao proibicionismo?
Denis – Acho que a Marcha impõe a agenda ao paÃs, o que é fundamental se considerarmos que os polÃticos são dependentes da guerra e a mÃdia, até com boas intenções, embora equivocadas, se auto-censura. Quando milhares de pessoas vão à s ruas fica difÃcil ignorar a questão. No geral, as alternativas à guerra contra as drogas não surgem dos polÃticos, surgem da sociedade mobilizada, protestando nas ruas, brigando na justiça, se manifestando em plebiscitos. Fico feliz em perceber que isso está começando a acontecer aqui.