Fernanda Simas, iG São Paulo | 20/01/2012 09:00
A presidenta Dilma Rousseff sancionou nessa quarta-feira (18) a Lei 12594/12, que institui o Sistema Nacional de Atendimento Socioeducativo (Sinase) e entra em vigor daqui a 90 dias. Pela primeira vez, o Brasil terá uma lei nacional para a execução de medidas socioeducativas destinadas a crianças e adolescentes que pratiquem atos infracionais.
Apesar de ser comemorada por defensores de direitos humanos por regular o sistema, o artigo 65 da lei causa incômodo. De acordo com o texto, a autoridade judiciária poderá interditar o adolescente em caso de transtorno mental. Deve-se “remeter cópia dos autos ao Ministério Público para eventual propositura de interdição e outras providências pertinentesâ€.
O secretário parlamentar da Frente Estadual Antimanicomial Leonardo Pinho considera que o artigo abre brecha para que adolescentes sejam internados por tempo indeterminado. “Qualquer medida de privação de direitos, ou seja, a interdição, exige uma fiscalização e um acompanhamento superiores e dá algumas brechasâ€. Pinho cita o exemplo da Unidade Experimental de Saúde, em São Paulo, que mantém jovens detidos mesmo após o cumprimento da medida socioeducativa.
Para o vice- presidente da Comissão Nacional da Criança e do Adolescente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Ariel de Castro Alves, o artigo 65 reforça a possibilidade da internação, o que, para ele não pode ser regra. “A privação de liberdade é sempre a forma mais cara de tornar as pessoas piores. Diante da dita comoção popular e das polêmicas envolvendo a maioridade penal e o tempo de internação, o Judiciário tem se curvado à pressão da opinião pública e aplicado a internação como a principal medida e não como exceção, em casos nos quais as demais medidas não seriam adequadas.â€
Alves lembra, no entanto, que alguns programas de atendimento socioeducativo em meio aberto executados pelo poder público ou até por ONGs são de má qualidade ou nem existem. “A maioria dos municÃpios ainda não possui os programas e serviços. Nessa ausência ou má qualidade dos programas, se eu fosse juiz também pensaria duas vezes antes de deixar o adolescente ser acompanhado e orientado por programas precários ou inexistentes.â€
Contudo, o artigo 49, inciso 2, permite que, na falta de vagas em unidades de internação e apenas em casos de atos infracionais sem o uso da violência ou grave ameaça, como o furto, o jovem cumpra a medida socioeducativa em meio aberto. “Isso evita a superlotação e que o jovem seja prejudicado em razão da incompetência do Estado, já que ele ficaria esperando a vaga em uma unidade não adequada ou em um DPâ€, explica.
Retorno à escola
Apesar de possuir um artigo polêmico, o novo Sinase é visto como um avanço na questão de medidas socioeducativas ao obrigar que os adolescentes voltem a estudar durante e após o cumprimento das medidas, de acordo com o artigo 82. “Antes era praticado em algumas unidades, mas não era obrigaçãoâ€, explica Leonardo Pinho.
“Se o adolescente procura a escola, o serviço de atendimento contra a drogadição, trabalho e profissionalização e não encontra vaga, ele vai para o crime. O crime só inclui quando o Estado excluiâ€, afirma Alves.
Para o senador Armando Monteiro Neto, relator do projeto na Comissão de Constituição, Justiça e Cidadania do Senado, a disparidade nas polÃticas adotadas pelos governos municipais, estaduais e federal deve ser corrigida com a nova lei. “É como se depois de 18 anos da criação do ECA, iniciássemos a fazer valer os preceitos contidos no Estatuto.â€
Problemas nos tratamentos
Há quatro anos uma resolução do Conanda (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente) criava o Sinase, mas muitas de suas determinações não eram cumpridas. Isso pode ser comprovado pelos relatórios do Programa Justiça ao Jovem, do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), que denunciaram abusos.
Desde junho de 2010, magistrados visitam unidades de internação para jovens infratores em Estados do PaÃs e, dos 25 relatórios disponibilizados no site do CNJ, apenas dois – de Roraima e Santa Catarina – não relatam problemas encontrados. Nos outros 23 Estados, são relatados problemas de superlotação, abusos de autoridade, maus-tratos, falta de programas pedagógicos e locais fÃsicos inadequados para o tratamento dos jovens, com uma arquitetura prisional.
Das 196 unidades visitadas nos 25 Estados, pelo menos 30% apresentaram superlotação. Além disso, em 21 Estados foram vistas unidades com arquitetura prisional e em sete foram relatados casos de agressão. Em uma unidade de internação de BrasÃlia, segundo o relatório do CNJ, ao menos 21 adolescentes morreram em 13 anos. O Ministério Público pediu o fechamento do local, o que não ocorreu até a publicação do relatório.
Para Ariel Alves, o novo Sinase tem pontos positivos que podem ajudar a melhorar a situação encontrada pelos desembargadores, como o artigo 43, que prevê a reavaliação da medida socioeducativa a qualquer momento desde que haja um motivo aceitável e o artigo 48, que proÃbe o isolamento do jovem, a não ser para proteger ele mesmo ou outros internos.
No entanto, Alves ressalta que a lei é falha em alguns pontos, como ao não determinar a divisão de internos por idade, ato infracional cometido e porte fÃsico. “A legislação poderia ser mais incisiva em prever unidades de internação com capacidade para até 40 internos e a criação de ouvidorias e corregedorias independentes para enfrentar as constantes situações de maus-tratos, torturas e outras irregularidades, principais queixas dos jovens e de entidades de direitos humanos com relação ao sistema socioeducativo no PaÃs e que podem gerar processos internacionais.â€
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Fernanda Simas, iG São Paulo | 09/08/2011
Algumas unidades de internação para adolescentes infratores que existem no Brasil ainda se parecem com penitenciárias e o PaÃs precisa investir em um sistema socioeducativo e não só punitivo. Essa foi a constatação do Conselho Nacional de Justiça (CNJ) depois de visitar unidades de internação em todo o PaÃs (semana que vem terminam as vistorias no Estado de São Paulo).
Quarto em unidade de internação para jovens infratores no Brás, São Paulo
“Essas unidades foram construÃdas na época em que se via a medida socioeducativa como uma medida próxima ao sistema penitenciário. Elas possuem uma estrutura de cadeia, de presÃdio, sem a preocupação com uma área de lazer, com uma área para profissionalização e de convivência entre os jovensâ€, afirma o juiz Reinaldo Cintra Torres de Carvalho, coordenador do Programa Justiça ao Jovem, do CNJ, que consiste na avaliação da estrutura e do tratamento oferecido nas unidades por meio de entrevistas com os internos. Um relatório será apresentado no final do ano pelo CNJ e medidas de melhoria serão propostas para cada Estado.
Cintra cita outro fator que precisa ser melhorado nas unidades para infratores do Brasil: o trabalho posterior à internação do adolescente. “Não adianta você pegar um adolescente que cometeu um ato infracional e colocar em um sistema maravilhoso se quando ele sair não tiver uma famÃlia que o apoie, alguém que o orienteâ€. Cintra explica que a medida de contenção do jovem cabe ao Estado, enquanto o trabalho de apoio cabe aos municÃpios, por meio de programas com a famÃlia, por exemplo. “É preciso orientação para a famÃlia do jovem. A saÃda do jovem da unidade merece um acompanhamento especializadoâ€, afirma.
Jovens infratores em aula em uma unidade de internação no bairro do Brás, em São Paulo
Ter uma profissão ajuda na inserção dos jovens à sociedade e é uma forma de reduzir a porcentagem de adolescentes que precisam ser internados novamente. “É preciso que profissionalize [o jovem] para que ele possa ter uma opção quando sair da unidade. E esse tipo de ensino não está presente na maior parte das unidades do Brasilâ€, explica Cintra. Ele ressalta, no entanto, que os Estados do Rio Grande do Sul e de Minas Gerais já possuem unidades de internação com um ensino profissionalizante adequado, assim como as oito unidades já vistoriadas em São Paulo que ficam na região do Brás, bairro central da cidade.
Violência e tortura
Em algumas unidades, as equipes do CNJ se depararam com violência e despreparo por parte dos funcionários. “Foi constatada a ocorrência de agressões, de contenções desnecessárias, casos até que você pode dizer que eram práticas de torturas com alguns jovensâ€, afirma Cintra. Os casos citados de tortura foram verificados em Santa Catarina e no EspÃrito Santo, mas, de acordo com o juiz, as corregedorias estão tomando as providências cabÃveis e a polÃcia abriu inquérito. Quando um caso de tortura é constatado, ocorre a abertura de um processo criminal contra os agentes e responsáveis pela unidade.
Modelo
Uma unidade de internação citada pelo juiz Cintra como modelo é a unidade feminina de Natal, no Rio Grande do Norte. “A unidade propicia que elas [internas] tenham a sensação da contenção, que é importante para o jovem, mas existe uma polÃtica pedagógica que torna um lugar indesejado em um lugar suportável para que haja a absorção de valores que melhorem a vida dessas meninasâ€, diz Cintra.
O juiz explica que a estrutura da unidade é parecida com um hotel com diversos chalés, o que melhora a convivência no local, e que o ensino é bem estruturado. “Cada chalé é um quarto para as meninas, tem uma área de lazer interessante, um ensino formal bem regulamentado e cursos profissionalizantes.â€
Impressões
No Brasil, entre 16 mil e 17 mil jovens estão internados, sendo que o PaÃs tem uma média de 390 unidades de internação. O juiz Cintra aponta que nas unidades em pior condição encontrou locais sujos, uma estrutura fÃsica inadequada, falta de projetos pedagógicos adequados e os adolescentes sofriam maus tratos e castigos fÃsicos. Alguns Estados que apresentaram esses problemas foram Pará, Pernambuco e Santa Catarina, com duas unidades fechadas depois da visita feita pelo CNJ.
No outro extremo, estão as unidades com um bom estado de conservação e higiene, com projetos pedagógicos e práticas de lazer e esporte. Foram citados como Estados que deixam uma boa impressão, de acordo com Cintra, o Rio Grande do Norte e o Rio Grande do Sul. O juiz diz que também encontrou boas condições nas unidades já visitadas em São Paulo.