Dividimos  um desabafo sobre o que vimos  nos últimos dias, na esperança de que… não sei. Na esperança.
Relato franco e desesperado: Fragmentos e destroços do Pinheirinho, da Luz, da barbárie tucana
Por Pedro Nogueira, Coletivo DAR
Ainda estou em choque. Com aquela sensação de que qualquer risada, ou mudança de assunto, significa um calar gigantesco sobre a barbárie.
São Paulo está há 17 anos dominado por uma gangue e por seus pastores alemães, rotweillers e pitbulls. Peço perdão. Não são cães – eles não tem tamanha vocação pra crueldade. São monstros. São Paulo não é conservadora. É retrógrada, é atraso. É morte.
Tento fiar minhas esperanças, a cada desânimo que me abate, na dialética da resistência que mostra que quanto maior a pancada, maior a revolta. Me apoio nas pessoas que conheço, nas novas ferramentas de comunicação que ajudam na nossa mobilização. Na fé ateia de que as coisas podem ser melhores. Nas pedras que foram atiradas contra a PM e a GCM armadas. Nos paus que foram utilizados para destruir carros da opressão bruta.
Procuro não internalizar demais tudo que acontece, tudo que vi, tudo que não vi, tudo que li e todas violências que não serão gritadas. No mar de sangue proposto pelo Estado, é difÃcil escolher o que será contado.
Sonhei, nessa noite, que era espancado com impressionante realismo, senti cada dor do pesadelo, inocente de que aquilo era fruto da minha cabeça. Criaturas metade homens, metade gorilas, invadiam minha casa, estilhaçando grandes objetos de vidro no chão, depois me levantavam e me arremessavam contra os estilhaços e me deixavam desacordado à pontapés. Muitos me observavam, mas eu resistia, sentindo a dor como se fosse verdade, calado a cada bica que tomava. Acordava algumas horas depois, ferido, cheio de cortes e sangue, e procurava meus amigos e familiares, assistência médica. Mas não achava nada.
Estou completamente dilacerado.
Domingo, saà de meu cotidiano de classe média indignada, e fui até o Pinheirinho, junto com 20 ativistas, revoltados, companheiros e companheiras, articulados pela internet para ir até o Pinheiro destilar toda nossa impotência e solidariedade. A nossa nave, alien e estranha, chegou na porta da barbárie passando por carros queimados e gritos de “Vai, Zé Povinhoâ€. No Brasil, a sua classe social, o seu nascimento, as suas roupas, são um testemunho gritante da desigualdade. Aceito cada ofensa, cada olhar estranho e desconfiado, resignado e esperançoso de que um dia não seja mais assim.
Vi as tropas nazistas, legiões de porcos desalmados, enfileirados, barricando as pessoas de suas casas e de sua dignidade. Animais podres e cruéis. Meu ódio pela polÃcia já não é mais revolta adolescente. É um refinado, históricamente construÃdo e bem montando sentimento de repúdio, nascido de bombas, balas e violência, de relatos e consciência.
Muita gente se aglutinou na cerca do parque dos refugiados, que margeia a comunidade do Pinheirinho, para ver o ronco do trator, para ver o corte da luz do local, pra ver a brutalidade. A observação foi respondida com uma latinha de gás lacrimogêneo da Condor. Castro Alves choraria ao ver sua imagem poética transfigurada em ferramenta do ódio contra os bisnetos dos mesmos negros que um dia se insurgiu para defender.
O que se seguiu foram cenas de massacre. A polÃcia e a GCM dispararam a esmo contra a tenda que abrigava a triagem. Crianças choravam, velhos de cadeira de rodas eram empurrados catatônicos pra longe do perigo. Algumas bombas explodiram do meu lado. Xinguei um policial de covarde, que me apontou, me marcando. Divido aqui os relatos de Jaque, Paloma e Victor, que estavam comigo nesse momento, por economia. Pela angústia de reunir fragmentos do absoluto absurdo.
Jaque:
http://www.youtube.com/watch?v=otTsN53YI5A&context=C31b6e92ADOEgsToPDskKCUhySEU7u5L8lqX8j2sbJ
http://www.youtube.com/watch?v=D-vUahC2QA4&feature=related
Victor:
Paloma:
Desde que comecei a militar de verdade, em 2005, noto um recrudescimentona violência policial na minha terra, São Paulo. Hoje não consigo mais ouvir um rojão, bombinha ou traque explodindo sem ficar assustado, sobressaltado. O som é por demais parecido com as bombas que estouraram ao longo desses anos perto de minha perna, de meus amigos, de meus queridos desconhecidos. Parecido demais com o som da arma de calibre 12 que dispara inofensivas balas de borracha, que matam crianças.
Gente morreu, viu gente? A PM, o Estado, em conluio com os hospitais da cidade, estão fazendo agora uma operação para desaparecer com os corpos de pelo menos quatro pessoas. Militantes se agonizam, se agilizam, se juntam na cidade para investigar o que aconteceu, já que não se pode mais contar com a imprensa e com o governo. Existe uma guerra não-declarada e o principal mérito dos capangas do Estado é fingir que ela não existe, é contar que seremos sempre uma pacÃfica massa de revoltados.
Penso no que está acontecendo na Cracolândia, nas trevas que justificam que, diante da população mais frágil de nossa sociedade, lidemos com isso coletivamente com bombas e violência. Com saculejo e prisão. Com jaula.
Quanta ideologia é necessária pra agirmos com naturalidade diante disso? Pra continuarmos impassÃveis na nossa rotina? Pra não nos explodirmos em revolta cientes de que o silêncio pode significar nossa morte? Sinto que minha tranqüilidade de zona oeste pode ter seus dias contados, que um dia meu pesadelo se concretize comigo.
De noite, no domingo, no sindicato dos metalúrgicos do SJC, conversava com alguns amigos. Haviam voltado da guerra civil no Pinheirinho mais tarde que nós – que saÃmos fugidos das bombas e da possibilidade de ver nossos carros transformados em barricadas (um destino justo, ainda que indesejável por motivos financeiros).
DiscutÃamos o enquadro que eles tomaram, classificado como “sussaâ€. Apenas haviam sido revistados e o PM disse: “Nós temos uma bomba especial pra vocês, subversivosâ€. Isso é o “sussa†em tempos sombrios. Discutimos longamente sobre como seria bom ter super-poderes nessa hora. Parar o tempo, soltar fogo, voar. Poder de parar a barbárie. Sonho de não-impotência. Mas quanta fraqueza cerca a gente, é inominável.
Lembro agora de ver um amigo sendo espancado por tirar fotos. Foi prontamente socorrido por mulheres que tinham perdido tudo e salvo de mais violência policial. Depois uma chegou em mim e disse: “Nós fomos pra cima deles, não vamos deixar que nada aconteça com vocêsâ€. Calei silencioso, desesperado. Havia acabado de ver a maior solidariedade do mundo.
Lembro do relato de uma amiga. Viu uma senhora desesperada entre os escombros da batalha. Parou pra conversar. “Perdi tudo. Minha casa, minha famÃlia, meus amigos…â€. As duas se encararam por um instante calado, lacrimejando. O momento foi dispersado por gás lacrimogêneo. As duas se perderam, então, também. Cada uma com seu aniquilamento.
Não consigo tirar da cabeça, ainda bem, a lágrima das mães que corriam com seus filhos embaixo das asas, caindo dos braços. Das pessoas que passavam chorando, assustadas, carregando as poucas tralhas que conseguiram salvar. É sobrepujante o sentimento de dor que aquele lugar concentrou. Alimento a revolta dentro de mim, sem cogitar possibilidade de desanimar. Afasto a depressão, o desânimo. A barbárie pode ter como efeito colateral o desengano, o ceticismo e o cinismo. Mas ainda vejo, cafona e sonhador, o amor, a solidariedade, a nossa força de reinventar tudo que é podre e velho, pois nada podem bombas onde sobra coração, já cantavam os derrotados e valentes espanhóis na década de 30.
A situação toda até seria menos caricata se o terreno não pertencesse a Naji Nahas, mega-investidor corrupto e safado, daqueles velhos charuteiros, estereótipo da fartura que tira comida de tantas bocas. Estereótipo perfeito de vilão, de milionários que cospe na criadagem. Vejam vocês mesmos:http://colunaesplanada.com.br/wp-content/uploads/2011/12/nahas.jpg
Penso em que direito humano não foi violado ali. Só consigo achar, com muito esforço, que o direito à propriedade privada foi mantido. Está na hora de tirar isso da declaração universal de direitos humanos, da nossa constituição. Não consigo imaginar um pedaço de terra no mundo que valha uma vida, 9 mil vidas. Propriedade privada nunca foi direito, senão privilégio.
A inoperância da esfera federal só reforça que não adianta mudar o carrasco nas eleições. É preciso destruir essa guilhotina de pobres e subversivos que se proclama Estado Federativo Terrorista do Brasil.
Está mais clara do que nunca, para quem tem olhos e sabe ver, a perversidade do sistema social que nos foi imposto sem pedir permissão. Está na hora de começar de novo. Ou viver mais milhares de Pinheirinhos. Por uma Nova Luz que não seja alicerçada nas Velhas Trevas. Por uma São Paulo, um Brasil, um mundo, onde seja novamente possÃvel ser humano. Porque eu não estou conseguindo mais… Espero que as minhas ridÃculas lágrimas se transformem em mar, porque elas não são nada perto do oceano de tristeza das pessoas que perderam tudo, menos sua inextirpável dignidade. Venceremos.