O volume de trabalho de Celso Ferreira, 45 anos, funcionário da Prefeitura do Rio de Janeiro, aumentou muito no último ano. Contratado para um cargo de tÃtulo pomposo, “educador socialâ€, ele é uma das 50 pessoas cuja função é ir à s chamadas cracolândias da cidade para recolher os usuários de crack e levá-los para abrigos municipais. Depois de criar um “Protocolo de Abordagem Socialâ€, no inÃcio de 2011, a prefeitura passou a internar compulsoriamente crianças e adolescentes viciadas.
“A quantidade de meninos recolhidos aumentou bastante. Gosto do que faço, é preciso recuperá-losâ€, diz Celso, evangélico fervoroso. Mais precisamente, foram 544 nos últimos 12 meses. Apesar da boa intenção de funcionários como ele, a iniciativa da Prefeitura do Rio é alvo de polêmica e sérias contestações. A eficácia do tratamento iniciado com uma internação obrigatória é questionada por muitos especialistas, defensores de uma abordagem baseada no convencimento e no apoio familiar.
“Lugar de criança não é na rua. Se não quero isso para o meu filho não quero nenhum menino ou meninaâ€, diz o secretário de Ação Social, Rodrigo Bethlem, encarregado da tarefa. Apesar da convicção de Bethlem, o percentual de sucesso não pode ser considerado alto (28,16%) e a veracidade dos dados tem sido contestada. Em cidades como Porto Alegre, Salvador e Recife, consultórios montados na rua se colocam como alternativa a esse tipo de abordagem. O Brasil ainda busca a metodologia ideal para combater o flagelo do crack.
A rotina dos funcionários que recolhem os menores para internação compulsória se parece com um jogo de gato e rato. Nas operações freqüentes, feitas geralmente em locais perigosos pela proximidade com o tráfico, eles assistem a muitos viciados fugirem em debandada assim que suas vans estacionam.
Quando conseguem se aproximar de algum jovem usuário de crack, gastam um bom tempo conversando. “Tentamos fazer ele ir por vontade própria, para evitar levar pelo braçoâ€, conta Celso. A maioria escapa, há quem arremesse pedras contra os veÃculos, mas algumas crianças e adolescentes alcançados pelos funcionários acabam levados para as vans. “Com o tempo, notamos a diminuição de meninos nessas cracolândias, uma prova de que estamos avançandoâ€, diz Betlem.
São muitos os especialistas que acham o contrário. “A internação compulsória pode ser indicada para alguns casos, são exceções e não a regraâ€, acredita Pedro Abramovay . Ele reconhece, no entanto, que a ação da prefeitura do Rio tem o benefÃcio de seguir os parâmetros da saúde e da ação social e não da captura policial, como ocorre em São Paulo. “As instalações para onde são levadas essas crianças, porém, têm métodos e aparência de prisão, são inadequadas para o tratamentoâ€.
Uma das crÃticas mais assÃduas a esses abrigos é a presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, Margarida Pressburger. Ela esteve em janeiro no abrigo Casa Viva, de Laranjeiras, e não gostou nada das condições do lugar, um pequeno prédio de dois andares. “A médica e a psiquiatra fazem plantão apenas uma vez por semana, durante três horasâ€, relata a advogada.
Além disso, segundo Pressburger, as crianças estavam completamente ociosas, sem um livro, uma televisão ou uma bola para ocupá-las. O uso de remédios de tarja preta foi constatado. “Uma das meninas se mostrava completamente apática, sem reação, e a psiquiatra do nosso grupo disse que ela estava dopadaâ€, conta a integrante da OAB.
“Aquilo não devia ter o nome de Casa Viva, parece mais casa da morteâ€. A artista plástica Yvonne Bezerra de Mello, coordenadora de uma ONG para atendimento a crianças de rua, também esteve naquele abrigo. “Está longe de ser o tratamento ideal para crianças envolvidas com esse problema. Elas deveriam estar hospitalizadasâ€, opina.
“Havia crianças fumando livremente e os funcionários alegaram ser uma alternativa para amenizar a dependência do crackâ€. Depois dessas duas visitas, a prefeitura informou ter implantado plantões diários de psicólogos e não é mais permitido fumar nos abrigos.
A reportagem de Carta Capital esteve no abrigo Ser Criança, no bairro de Guaratiba, na manhã de terça-feira 10. Diferente das instalações de Laranjeiras, ali o espaço é bastante amplo, com piscina, quadra de futebol e duas salas de tevê. Os quartos são pequenos, com beliches onde há vagas para quatro meninos.
O abrigo é dividido em área de crianças e de adolescentes. Naquela manhã, uma psicóloga atendia alguns abrigados e 17 crianças participavam de uma atividade lúdica. Aos 14 anos, o garoto M.A. está prestes a completar 11 meses no abrigo. Antes dali, não passava um dia sem crack e chegou a pegar em arma na quadrilha de traficantes de drogas da favela Mandela, na zona norte carioca. “Depois de uma operação policial, eu resolvi pedir para ser internadoâ€, conta ele.
Tratado com medicamentos, o próprio garoto diz estar com aparência bem melhor do que quando chegou e espera voltar para casa em breve. Esse retorno, que representaria o final do tratamento, pode, na verdade, se tornar um risco: enquanto o irmão foi preso algumas vezes e é usuário do crack, a mãe, também viciada, fez apenas uma visita ao filho e não se mostra preocupada com o destino do garoto. “Com uma famÃlia desestruturada, é grande o desafio de manter o tratamento depois que o menino sai daquiâ€, diz Watusy Ramos, coordenadora do abrigo.
O setor destinado aos adolescentes é diferente da área das crianças. Ali está a quadra de esportes, mas o espaço é bem menor. Além disso, as instalações estão em pior estado, com infiltrações e mesas de plástico mal conservadas. Os banheiros são limpos, mas parecem não ter recebido acabamento, o que dá ao lugar um ar prisional – impressão acentuada pelo fÃsico musculoso do educador que lidava com os jovens. Um deles, G. S., de 15 anos, foi levado ao abrigo pela famÃlia.
Também usa medicamentos para controlar as crises de abstinência e diz se sentir melhor. Tem, no entanto, uma reclamação grave: a agressividade por parte de alguns educadores. Seu colega, M.A. também diz que foi agredido por um “tioâ€. Tanto G.S. quanto M.A. reclamaram das agressões à coordenadora Watusy, que repreendeu os funcionários e, segundo os meninos, o problema não se repetiu.
“É preciso entender que o uso da droga é um ponto de partida, e não um ponto de chegada. O uso começa num ambiente tão ruim que a droga aparece como solução. A saÃda é dar resposta social para fazer com que a droga não seja mais necessáriaâ€, afirma Paulo Silveira, da ONG Respeito é Bom e Eu Gosto. “O programa do Rio é uma farsa na medida em que não tem nada a oferecer como instrumento de inclusão social.â€
A denúncia mais contundente, no entanto, é feita por Monique Barbosa, mãe de J.A., de 12 anos. O garoto está de volta à casa desde janeiro, depois de passar quatro meses no abrigo de Guaratiba. Inicialmente, ela elogia o trabalho e diz que o filho está recuperado do vÃcio do crack graças à quele tratamento. “Desconfiava que não ia dar certo, mas foi melhor do que eu esperava. Mesmo depois da volta dele para casa, continuo recebendo apoio da prefeituraâ€, diz.
Do lado negativo, Monique também relata agressões. “Meu filho falou que alguns funcionários batiam nas crianças, outros acordavam os meninos jogando água em seus rostos. Houve até um dos meninos, chamado Yan, que foi jogado na piscina com os braços amarrados e quase se afogou, foi retirado de lá desacordadoâ€, relata. Depois que o filho contou essas cenas, presenciadas no final do ano passado, Monique levou o caso à coordenadora, que afastou o funcionário. Watusy reconhece que volta e meia é obrigada a lidar com o problema: “Fazemos cursos de qualificação e de reciclagem, mas há quem não saiba lidar com a agressividade dos jovens afetados pelo vÃcio. Quando identifico algum esse tipo de comportamento, repreendo ou afasto a pessoa imediatamenteâ€.
Consultado pelo secretário Bethlem antes do inÃcio do recolhimento compulsório, o psiquiatra Jorge Jaber vistoriou os quatro abrigos da prefeitura e aprovou tanto o espaço fÃsico quanto a preparação dos educadores. “Vi gente abnegada, que se dedica ao seu trabalhoâ€, afirma. No ano passado, voltou à Casa Viva e também gostou do que viu. Acha que é preciso avançar e reuniu-se com outros especialistas para levar à prefeitura sugestões que possam melhorar o atendimento, entre elas a criação de um instituto voltado para o tratamento de usuários de drogas.
Sobre a eficácia do tratamento feito depois de internação compulsória, ele não tem dúvida: “Fiz um estudo e concluà que nesses casos o sucesso pode chegar a 77% dos casos, superior ao constatado nas internações voluntáriasâ€. Por esse padrão, o desempenho da prefeitura do Rio está baixo, pois não chega a metade desse Ãndice. Integrante da ONG “Respeito é bom e eu gostoâ€, que denuncia os problemas do programa de internação compulsória, Paulo Silveira discorda profundamente de Jaber.
“O uso do crack começa num ambiente tão ruim que a droga aparece como solução. A saÃda é dar resposta social para fazer com que a droga deixe de ser necessáriaâ€, acredita Silveira. Ele classifica o programa do Rio como “farsa†na medida que oferece instrumento de inclusão social. “Cidadãos brasileiros estão sendo suprimidos de seus direitos. É um regime de exceção justificado pela guerra à s drogasâ€.
Outras capitais brasileiras seguiram um caminho bem diferente para lidar com o problema. Em Porto Alegre, a prefeitura criou consultórios na rua, onde é feito um atendimento permanente.
“Mesmo nos casos de crianças e adolescentes buscamos estabelecer um relacionamento de confiança e tentamos convencê-los a se tratarâ€, explica o secretário municipal de Saúde da capital gaúcha, Marcelo Bósio. Foram criadas comunidades de acolhimento, nas quais os garotos e garotas não perdem o vÃnculo familiar.
Para ele, a motivação do indivÃduo é um forte elemento para a recuperação. “A internação compulsória não é eficaz, a vontade do usuário de se tratar é importante para a cura. Por isso, nunca optamos pela imposiçãoâ€, afirma. Recife e Salvador têm experiências parecidas. Não se sabe, porém, se poderiam ser repetidas em megalópoles como Rio e São Paulo, onde o número de crianças e adolescentes viciados é muito maior. O método ideal para o Brasil, como se vê, está sendo testado na prática.