Para historiador Henrique Carneiro, “crack é a faceta visÃvel da miséria geral”; já o cientista social Rubens Adorno define a cracolândia como “a cara de São Paulo” e relaciona substância com o neoliberalismo
COLETIVO DAR
O seminário “Cracolândia muito além do crack†começou em grande estilo na noite desta segunda-feira, na Faculdade de Saúde Pública da USP, em São Paulo. Com cerca de 300 presentes lotando o auditório – e mais uma sala cheia onde os atrasados acompanhavam o papo pelo telão – a mesa inicial contou com o cientista social Rubens Adorno e o historiador Henrique Carneiro, e mostrou bem qual será a cara do evento: desmistificar e aprofundar o debate em torno do crack, através de olhares diversificados e muito sérios.
Além das ótimas exposições dos dois participantes, o debate contou com diversas (e interessantes) perguntas feitas pela platéia. O seminário prossegue na terça e na quarta abordando aspectos jurÃdicos, antropológicos e sociais da questão – a programação completa pode ser conferida aqui.
“A cracolândia é a cara de São Pauloâ€
Foi com essa frase que o cientista social Rubens Adorno, coordenador do projeto “Usuários de crack: agenciamentos e usos em territórios urbanosâ€, iniciou sua fala. Preocupado em se opor ao senso comum demonizador da substância, e de seus usuários, Adorno ressaltou a completa ausência de polÃticas públicas conseqüentes para estas populações e a forma enviesada e generalizante com que este importante tema é tratado polÃtica e midiaticamente.
Com ampla experiência de campo adquirida durante o projeto, Adorno lembrou da invisibilidade destas pessoas como estratégia estatal para a região. “Uma maneira de se ler o Estado é a forma como ele lida com seus setores marginaisâ€, apontou, caracterizando o atual momento como muito próximo ao que o intelectual francês Loic Wacquant denomina de “Estado policialâ€. Há populações que se deixam viver, e outras que se deixam morrer.
Ele lembrou de diversas analogias feitas para se retratar a região popularmente conhecida como cracolândia, que hoje conta até com verbete na Wikipédia. Já foi definida como uma grande feira, um parque de diversões, um local de convÃvio entre Deus e o Diabo, um refúgio urbano de moradores da periferia e mesmo como uma “rave públicaâ€, em oposição à s festas privadas onde jovens das classes médias e altas também usam e abusam de drogas ilÃcitas – sem PM, é claro.
Segundo o cientista social, o crack representa uma inovação do ponto de vista “do marketing do mercado de drogasâ€: tanto seu preço como suas formas de distribuição e armazenamento propiciam uma circulação mais ágil em relação a outras substâncias também muito consumidas. Posteriormente se dá a identificação do crack com áreas degradadas, uso abusivo e violência, numa equação altamente estimulada e propagada pela mÃdia.
Adorno classificou o crack como um espelho do neoliberalismo: com o fim do Estado de bem-estar social, é na esfera do consumo que se dá o exercÃcio de cidadania nos dias atuais. Na ausência de tal bem-estar, ele passa a ser vendido – é a felicidade vendida em forma de mercadoria.
“O crack talvez seja o bem econômico que mais cresce no Brasilâ€, lembrou Adorno. Sua difusão envolve pessoas desligadas do trabalho, ou ligadas a materiais descartáveis – pessoas estas também descartadas pelo mercado. O crack atuaria assim como o descartável urbano (por ser um “resto†da cocaÃna) que coloca os descartáveis urbanos novamente no interior do sistema macroeconômico. “O crack integra o circuito marginal à sociedade de consumoâ€, resumiu.
O crack como bode expiatório e nocebo
Na exposição seguinte, Henrique Carneiro foi didático e profundo como sempre.  Começou propondo situar o crack num contexto mais abrangente, lembrando que a ingestão de substâncias psicoativas tem uma universalidade na história humana.
Na tradição clássica, por exemplo na Grécia antiga, o uso problemático inicialmente foi visto como falha moral. Posteriormente como pecado, no bojo do cristianismo, e depois como doença na tradição médica. Em comum nestas visões o fato de o uso problemático ser visto como distúrbio mas não como crime, transformação que ocorre apenas na virada do século XIX para o XX.
Surge o proibicionismo, que pressupõe a necessidade da abstinência compulsória imposta pelo Estado, um fato recente historicamente.  Abstinência seletiva, ressalte-se, uma vez que só algumas substâncias são eleitas portadoras dos males sociais e proibidas.
Carneiro relacionou o abuso não com as substâncias em si, mas com a própria instituição da sociedade mercantil contemporânea. “A história da expansão européia – e do capitalismo – é a da expansão das drogasâ€, lembrou, ressaltando o papel que especiarias, açúcar, tabaco, álcool fermentado e depois destilado, café, chá, chocolate e outras drogas cumpriram no desenvolvimento do capitalismo. “Esse movimento simplesmente criou o mundo modernoâ€, salientou.
Prosseguiu citando Marx e o fetichismo da mercadoria, a propensão do capitalismo à instigar que se consuma sempre mais. “O vÃcio não é intrÃnseco ao consumo de drogas ou de alimentos, mas sim das mercadoriasâ€. Citou como exemplo o tabaco, substância amplamente conhecida e consumida entre os indÃgenas pré-colombianos mas que jamais teve os padrões de consumo atuais nestas culturas. “Os indÃgenas não fumavam 20 cigarros por dia, o consumo se dava de forma integrada à sua organização socialâ€.
Citando o filósofo alemão Christophe Turcke, apontou a existência não de uma epidemia de crack, como prega o senso-comum, mas sim de uma “epidemia de hiperatividade†– a hiperexcitação seria caracterÃstica social importante, num contexto em que até mesmo se locomover de um ponto a outro da cidade causa grande agitação e stress.
Carneiro chegou então ao centro de sua exposição, a natureza sacrificial do consumo de drogas e alimentos. Modelo espiritual da origem das religiões, o sacrifÃcio seria um rito universal, uma forma que a humanidade historicamente encontrou para fazer frente ao seu principal inimigo: o medo.
Com o tempo, o sacrifÃcio humano e de animais, para fazer frente à natureza ameaçadora e desconhecida, passa a ser substituÃdo por um emblema de sacrifÃcio, muitas vezes ingerido. O sacrifÃcio de Cristo, por exemplo, é repetido até hoje através da ingestão da droga álcool. Em grego, bode expiatório é “farmacósâ€, palavra muito próxima de fármaco – é o remédio para vencer o terror que a natureza coloca à humanidade.
Para Henrique, nos dias atuais são os consumidores de crack os bodes expiatórios. Num duplo sentido: são bodes expiatórios da sociedade, que não quer ver os problemas estruturais de sua crise de civilização, e deles próprios, purgando suas dores em meio a vidas degradadas.
Lembrando do placebo, a substância que mesmo inócua pode trazer benefÃcio psicológico já que é benefÃcio que se espera de seu uso, Carneiro apontou o outro lado desta moeda, o nocebo. “Se você busca o mal numa substância você pode encontrá-loâ€.
Para ele, o problema principal do crack não passa pela substância, mas sim pela forma como ela se apresenta, não somente adulterada mas no contexto social onde está inserida. Um contexto social nocebo. “O crack é a faceta visÃvel da miséria geralâ€, definiu, avaliando haver também a existência de um “urbanismo polÃtico que busca tornar invisÃvel essas manifestações†em um gueto, uma zona de exclusão social permanentemente vigiada.
Assim, o crack torna-se problema dentro de um contexto proibicionista, no qual a proibição só existe pois é muito útil para interesses econômicos e de controle social. A saÃda? “A única forma de assistir essas pessoas é isolá-las tanto do crime quanto da repressãoâ€, pontuou Carneiro, lembrando das bens sucedidas experiências de salas de uso assistido, as “narcossalasâ€, que tiveram ótimos resultados na Europa e no Canadá ao tratarem de usuários de heroÃna. “O crack não pode ser visto isoladamente em relação à regulamentação geral das drogas hoje ilÃcitasâ€, finalizou.