O controle penal sobre as drogas e os novos panoramas de descriminalização e legalização
Hilbert Reis, Jus.com.br
É notável a necessidade da construção de alternativas ao sistema proibicionista das drogas. Para isso, deve-se desvelar os discursos do programa criminalizador e avaliar os principais pontos que fizeram dele um fiasco.
Para compreensão do panorama contemporâneo da paradoxalidade jurÃdico-polÃtico-social que permeia a relação toxicodependente/Estado é necessário emergir numa análise sobre a construção dos tabus que fizeram do século XX o perÃodo que marginalizou, criminalizou, e obscureceu a droga e seus usuários. Dessa forma, o presente trabalho apresenta os caminhos da (des)contrução dos dogmas que circundaram as drogas, as alternativas ao sistema proibicionista e os reflexos sobre as discussões do Novo Código Penal. Trata, também, de avaliar as reflexões que as doutrinas jurÃdico-penais e criminológicas nacionais e internacionais têm dedicado à questão, compreender suas vicissitudes discursivas, desvelar os discursos da dogmática penal – em especial quanto à s retóricas proibicionista e a da descriminalização.  Para isso, esta proposta se vale das proposições de Friedman e Caballero a fim de traçar possibilidades crÃticas e racionais para a substituição do projeto proibicionista.
PALAVRAS-CHAVE: drogas, redução de danos, descriminalização, legalização, proibicionismo.
A droga foi durante grande parte da história conhecida e consumida pelo homem sem qualquer tipo de previsão legal de crime e pena. De uso religioso ou recreacional ao uso médico – destinado a mitigar sintomas, distúrbios ou patologias mentais – as drogas, até o inicio do século XX, compunham o comércio internacional como uma mercadoria qualquer.
Durante os séculos XVII ao final do século XIX, o ópio foi o mais importante fármaco usado na Europa, empregado principalmente como antidiarreico e analgésico. Neste perÃodo, a Rota do Ópio, do sudeste asiático a Europa, alavancou o comércio entre as regiões e trouxe divisas incalculáveis à época para a Coroa Britânica, principal parceira comercial do ópio chinês. Como de costume, parcerias – principalmente, as comerciais – não logram benesses perpétuas; e fora o que aconteceu, o governo chinês promulgou uma série de barreiras à produção e consumo interno, o que acabou por produzir descontentamento por parte da Coroa Britânica, dando origem a duas guerras “do ópio†que perduraram de 1839-1842 e 1856-1860.
Já no século XX, com estÃmulo e pressão por parte do governo norte-americano, foi dada a largada para um regime do controle de substâncias entorpecentes, a war on drugs.
Em 1909, representantes de paÃses com colônias no Oriente e na Pérsia (atual Irã) se reuniram em Xangai, na China, para a primeira Conferência Internacional do Ópio. A partir desde encontro, traçou-se um esboço de um sistema de cooperação internacional sobre as drogas ao criar bases para a construção de um documento mais abrangente no conteúdo e restritivo na prática do uso e produção das drogas. Na Conferência Internacional de Haia (1911) e na Convenção Internacional de Haia (1912) estabeleceu-se diretrizes para o controle da produção de substâncias entorpecentes (ópio, morfina e cocaÃna) além de prever a restrição do uso dessas substâncias para atividades meramente lúdicas. O resultado dessas convenções foi o primeiro movimento que lançou o inicio a guerra contra as drogas, que perdurou por quase todo século XX.
Daà até meados dos anos 80, sob a batuta do governo americano e respaldo das Organizações das Nações Unidas (ONU), ampliou-se a listagem do que seriam substâncias psicotrópicas, disciplinando como seriam o combate as mesmas, inclusive dispondo sobre recomendações quanto a medidas a serem adotadas no campo penal, aconselhando que todas as formas dolosas de tráfico, produção, posse etc., de entorpecentes fossem punidas “adequadamente†(Single Convention on Narcotic Drugs, 1961).
O Brasil, sintonizado com a postura também defendida pelos Estados Unidos, pautou-se pela proibição total à livre produção, circulação e consumo de substâncias psicotrópicas, e pela repressão aos segmentos sociais associados; o que nesta época fez surgir a necessidade do entendimento e da diferenciação do usuário e do traficante, posto como uma “concretização moralizadora dos estereótipos consumidor-doente e traficante-delinquenteâ€. (CARVALHO, 2010, p. 15)
Em 1976, adveio a Lei de Entorpecentes (nº 6.368), cujo art. 1º estabelecia ser dever de toda pessoa fÃsica ou jurÃdica colaborar na prevenção e repressão ao tráfico ilÃcito e uso indevido de substância entorpecente ou que determine dependência fÃsica ou psÃquica; ao passo que o art. 2º proibia, em todo o território brasileiro, o plantio, a cultura, a colheita e a exploração, por particulares, de todas as plantas das quais possa ser extraÃda substância entorpecente ou que determine dependência fÃsica ou psÃquica.
Em linhas gerais, o sistema das Nações Unidas ao combate de drogas baseava-se na estrutura constituÃda pela Convenção Única de Nova Iorque sobre Entorpecentes (1961), e pelas Convenções de Viena sobre Substâncias Psicotrópicas e Tráfico IlÃcito de Entorpecentes de 1971 e 1988, que estabeleceram um modelo uniforme de controle as drogas, defendendo a criminalização do uso e do comercio, com opção primordial pela prisão, excluindo a possibilidade de medidas de redução de danos, como a troca de seringas, além do não reconhecimento de direitos das comunidades e povos indÃgenas em relação ao uso de algumas substâncias classificadas como entorpecentes, mas tradicionais e fundamentais para a cultura desses povos.
Foi nos anos 1980 que as leis penais e o controle no combate à s drogas alcançaram nÃveis extremos tanto no Brasil como no mundo. Paradoxalmente, lograva-se com isso, o inÃcio do enfraquecimento do proibicionismo com a criação de medidas no campo da saúde pública e sanitária de polÃticas preventivas e de redução de riscos.
A crescente onda e sucesso alcançados pela polÃtica de redução de danos e o questionamento de alguns paÃses europeus fizeram com que órgãos que apresentavam grande resistência à s terapias de substituição e programas de fornecimento de seringas sucumbissem a presente realidade social e reconhecessem a reinserção dos toxicômanos na sociedade através de programa especiais de readaptação. Foi o caso da Comissão de Combate à s Drogas da ONU (CND) que, somente em 2009, no seu Plano de Ação para a década, reconheceu os avanços das medidas alternativas e a derrocada da meta de um mundo livre de drogas.
O sistema proibicionista, nascido no começo do século XX em oposição ao livre e lucrativo mercado que era praticado até meados do século XIX, pretendia criar um mundo livre das drogas através do controle da oferta, produção, e consumo; e para os transgressores, abstinência pela prisão. Organizado e bem sistematizado, esse sistema traz consigo a presença da supremacia norte-americana que começava a ser desenhada no começo do século XX ao apresentar traços marcantes (e semelhantes) ao que se já se começava a ser aplicado nos EUA.
Sem alternativas para a construção de métodos distintos a repressão, a prisão, e a perseguição policial, ignorando por completo a realidade social e sanitária, e deparada com a explosão do consumo de drogas no mundo, o sistema proibicionista alcançou seu nÃvel extremo nos anos 80, e começou a ser repensado como não sendo a única forma no trato as substâncias entorpecentes, o que fez surgirem as polÃticas preventivas e de redução de riscos.
O programa de troca de seringas estéreis foi o programa mais conhecido na estratégia da redução de riscos, ao evitar que os usuários de drogas injetáveis contraÃssem doenças infectocontagiosas, como a infecção pelo HIV ou a hepatite. Como exemplo, em 1993, o programa português conhecido como “Diz não a uma seringa em 2ª mão†buscou contribuir para a minimização dos riscos para os usuários de drogas injetáveis (UDIs), por meio da distribuição de seringas em farmácias e em postos móveis colocados em lugares tÃpicos do uso de entorpecentes.
Diante do insucesso da polÃtica repressiva, tem-se construÃdo novas compreensões sobre o tema da descriminalização do uso das drogas, em especial na Europa, sendo o modelo português, introduzido pela Lei n. 30/2000, um exemplo do processo de descriminalização, mas que também sofre severas crÃticas ao criar um sistema liberal quanto ao usuário e punitivo em relação ao tráfico (cultivo e venda), o que revelaria uma aparente contradição.
No Brasil, a lei n. 11.346/06 substituiu no ordenamento jurÃdico brasileiro a Lei 6.368/76 e trouxe alterações em relação ao tratamento dado ao traficante e ao usuário, competindo a esse último prestação de serviços à comunidade ou medida educativa de comparecimento a programa ou curso educativo (art. 28, incisos I e II), e não mais a previsão de pena privativa de liberdade. No caminhar rumo ao desligamento do sistema proibicionista, a Comissão de Juristas do Senado, criada para reformular o Código Penal brasileiro, recentemente, anunciou que pretende descriminalizar a posse de drogas para uso pessoal. Plantar, comprar e portar drogas para uso próprio deixará de ser crime, quando a quantidade não ultrapassar o suficiente para cinco dias de consumo. Caso aprovada e regulamentada, essa alteração colocará o Brasil no rol de paÃses como Portugal e Holanda que já descriminalizaram o consumo de drogas.
A que se pese, a descriminalização do usuário não é sinônimo de descriminalização das drogas, uma vez que libera o usuário, mas não o vendedor, que segue tendo seu comércio como uma atividade ilegal e sujeita de repressão.
Diferente da organização e sistematização do sistema proibicionista, a perspectiva alternativa, antiprobicionista, é constituÃda por uma enormidade de propostas, que vão ao fim de qualquer tipo de controle, a diminuição do impacto do sistema penal e a redução do seu alcance punitivo.
Quando se busca ir à extrema oposição ao proibicionismo se chega à liberação total das drogas, uma opção que poderia se mostrar um quanto ineficiente, uma vez que dificilmente teria uma execução satisfatória, visto que as atuais estruturas sanitária, social e econômica foram feitas ao longo do tempo sob a perspectiva de um sistema proibicionista. O que se vê, portanto, é a construção gradativa de diretrizes para o desenvolvimento de alternativas viáveis e racionais e que estejam sintonizadas com os direitos fundamentais de liberdade individual e dos interesses transindividuais.
As propostas de descriminalização do consumo de drogas do final do século XX e começo dos anos 2000 são consideradas por Caballero (2000) o gap necessário para a superação das ideias de proibicionismo extremo e da legalização irresponsável, o que constituiria um espaço de transição, que não corresponderia à quimérica legalização total.
Longe da ideia da intervenção proibicionista e nem tão anárquica como a legalização total, surgem três conceitos de legalização: A Estatizante, a Controlada, e a Liberal (Friedman, 1992).
Ao Estado caberia à distribuição e venda das drogas psicotrópicas. Esse é o pilar sustentador da Legalização Estatizante, que defende a liberdade do consumo de substâncias psicotrópicas sob o controle estatal de sua venda e distribuição. Anularia o tráfico, mas sob a custosa estrutura estatal que seria criada para a manutenção de uma rede de distribuição para venda dessas substâncias.
A Legalização Liberal, defendida por Friedman, propõe a legalização da produção, consumo e venda de entorpecentes, mas com a possibilidade de um controle estatal semelhante ao que temos com o cigarro e o álcool – como a proibição de venda para menores.
A Legalização Controlada seria, segundo seus criadores,
“(…) un système qui vise à remplacer l’actuelle prohibition des drogues par une réglementation de leur production, de leur commerce et de leur usage en vue d’en limiter les abus préjudiciables à la société. (…) elle conserve au droit pénal un rôle de prévention des abus nuisibles aux tiers, qu’il s’agisse des usagers (ivresse) ou des producteurs (contrebande)â€. (CABALLERO; BISIOU, 2000, p.131-132)
Ficaria permitido o uso, produção e venda, mas sob limites impostos pelo Direito Penal para que a liberdade individual não venha a gerar danos de alta lesividade a sociedade. Portanto, a Legalização Controlada leva em conta a impossibilidade da legalização extrema e a superação do sistema proibicionista.
É notável a necessidade da construção de alternativas ao sistema proibicionista. Para isso, desvelar os discursos do programa criminalizador e avaliar os principais pontos que fizeram dele um fiasco são o caminho para que junto com as ideias já apresentadas, haja a abertura de possibilidades que conjuguem a sadia convivência e legitimação das liberdades individuais e transindividuais.
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