Ana Paula Salviatti, Carta Maior
São Paulo – No último sábado, dia 25 de agosto, diversos movimentos sociais que formam a Rede Dois de Outubro, dentre eles a Rede Extremo Sul e a Pastoral Carcerária estiveram presentes no Fórum pelo Fim dos Massacres, realizado em São Paulo, com o objetivo de fomentar o resgate da memória do Massacre do Carandiru, que completa 20 anos em 2012. Além disso, um dos assuntos trabalhados pela Rede Dois de Outubro é o de incentivo e construção do debate em torno das continuidades e rupturas das polÃticas dispensadas pelo Estado à s populações mais vulneráveis.
Em entrevista à Carta Maior, o Padre Valdir integrante da Pastoral Carcerária e Carol Catini, representante da Rede Extremo Sul apontam os desdobramentos atuais da violência cometida pelo Estado de São Paulo.
O Massacre
Em 2 de outubro de 1992, véspera das eleições municipais, o então governador do Estado, Luis Antônio Fleury Filho, autoriza a entrada na Penitenciária do Carandiru de forte aparato policial a fim de conter uma rebelião que acontecia entre os encarcerados. O saldo oficial de mortos pelas forças policiais no evento foi de 111 pessoas, entretanto ex-detentos e movimentos de direitos humanos refutam estes dados, afirmando que 280 presos teriam sido assassinados durante a ação.
Segundo o laudo do Instituto de CriminalÃstica da época “as trajetórias dos projéteis disparados indicavam atirador(es) posicionado(s) na soleira das celas, apontando suas armas para os fundos ou laterais”. Os laudos periciais concluÃram que 70% dos tiros foram dirigidos à cabeça e ao tórax, muitos detentos estavam ajoelhados e/ou deitados quando receberam os tiros. Muitos presos para escapar com vida se misturaram aos corpos dos colegas mortos. Entre os assassinados, 80% não tinham sido condenados; a maioria estava presa por roubo, e quase metade tinha menos de 25 anos de idade.
Vinte anos depois do Massacre apenas o então comandante da operação Cel. Ubiratan Guimarães foi julgado e condenado a mais de 600 anos de prisão pelo tribunal do juri, Ubiratan recorreu da sentença e foi absolvido pelos desembargadores do Tribunal de Justiça de SP no ano de 2006. Dos outros envolvidos nenhum até o momento foi julgado. Foram comuns promoções na hierarquia militar e até novos homicÃdios no currÃculo de PMs que participaram do massacre na Casa de Detenção.
Até 2009 a perÃcia nas armas utilizadas no massacre não havia ainda sido feita. Em 2002 o complexo foi implodido. A Comissão Interamericana de Direitos Humanos da Organização dos Estados Americanos (OEA) determinou, em 2000, que o Brasil deveria condenar os responsáveis pelo massacre.
Qual é o objetivo dessa reunião para a Rede Dois de Outubro? Como está ocorrendo a articulação e o debate entre os movimentos sociais que lembrarão os 20 anos de Massacre do Carandiru.
Carol Catini – Acho que é uma articulação de movimentos sociais importante que estão na luta por democratização, por acesso à justiça. Uma articulação muito importante pra gente combater este massacre grande como o que aconteceu no Carandiru, mas como os que ocorrem no cotidiano, no sistema carcerário que humilha todas as famÃlias, todas as pessoas que estão envolvidas e que tem se manifestado também contra a violência do Estado nas periferias, na militarização da gestão. Todos estes temas são bastante envolvidos e esta articulação nos fortalece para que a gente comece a criar uma pauta em que possamos brigar por ela. Com o intuito que este sistema se dissolva.
Pe. Valdir – É triste que a gente vai comemorar os 20 anos do massacre não como fato histórico isolado, mas dentro de uma continuação de massacres que aconteceu ao longo do perÃodo da história de São Paulo, e também em nÃvel de Brasil.
É triste saber que isto aqui não será um ato isolado, dos 20 anos. Temos que continuar com esta luta, porque outros massacres continuam acontecendo constantemente nas periferias. Hoje o povo da periferia sofre atrocidades, como a Carol colocou, em várias situações.
A própria massificação da destruição da pessoa que está presa vai muito mais além do que somente relembrar e também de pedir que não se faça mais atos de extermÃnio, mas que se criem polÃticas que possam ser contempladas a inclusão das pessoas que são mais vulneráveis socialmente. Todos os direitos como o estudo, o trabalho, mas principalmente o de respeito, precisam ser garantidos, porque esta população passa por humilhações diárias nas periferias de várias formas.
A apresentação dos Ãndices de encarceramento feitas pelo Governo do Estado e pela organização da PM como algo positivo, sinônimo de segurança, é algo falacioso? O que significa estar preso dentro deste contexto, qual é o objetivo de um sistema prisional?
Pe. Valdir – A posição do Governo e do Secretário de Segurança são bem fiéis aos princÃpios deles, a quem estão trabalhando. É muito claro para nós que eles não estão trabalhando para a camada mais geral, mais pobre da sociedade. Não é novidade o que eles falam, pra quem eles estão governando e pra quem eles estão trabalhando. Uma coisa é certa, não estão governando, não estão defendendo a classe mais vulnerável. Isso é cada vez mais claro.
Essa ideia de que justiça é por na cadeia a demonstra que pessoa não refletiu muito sobre o tema, porque ela está criando mais violência pra si mesma. Este método não deu e não tem dado certo para ninguém.
Lutamos por outra forma para lidar com conflitos, nossa proposta não é remendar o que nós temos, melhorar o presÃdio, não existe isso, melhorar a justiça. A justiça é punitiva é seletiva e acabou. Pode criar algumas formas de manutenção, dar visibilidade que esta alternativa vai suavizar para manter o sistema.
Mas a quem interessa o sistema prisional hoje? A quem interessa este aprisionamento em massa? É essa pergunta que temos que nos fazer. Quem ganha com isso? Se vivemos em uma sociedade capitalista quem está por detrás disto? Porque que prendendo mais dá resultado? Resultado pra quem? Pra vÃtima não dá, pra sociedade não dá. Então pra quem está dando resultado? Nós somos contra não só a reforma da lei como está hoje, porque ela é seletiva, punitiva e está criada para manter uma estrutura, nós também somos contra o encarceramento em massa, que são os presÃdios que não resolvem.
Um presÃdio hoje no estado de São Paulo está custando hoje 40 milhões de reais aproximadamente, e este dinheiro que retorno nos dá? Se fosse aplicado, vamos supor, em escolas, saneamento, educação, quer dizer, lazer, saúde pública, que também é uma coisa calamitosa em todo o nosso Estado, se fosse aplicada nesse tipo de estrutura. Até mesmo para quem é pobre e sai do sistema prisional tivesse a segurança de salário por um ou dois anos até ter um emprego, você gastaria muito menos com este resultado para ter muito menos encarceramento. Porque ele é muito mais caro quando é preso depois. Então criar alternativas realmente práticas para o sistema e não por uma manutenção como o temos hoje.
Carol Catini – A gente da rede 2 de Outubro tem esse consenso de que o sistema é punitivo, é seletivo e que ele não serve aquilo que ele se propõe, que seria fazer uma ressocialização do preso. A conjuntura tem acirrado um momento de repressão muito grande porque a articulação entre o setor polÃtico e econômico que impedem que as politicas sociais sejam integradas de maneira satisfatória acaba com que a repressão seja uma politica social que está sendo colocada no lugar das outras. Então toda esta pauta que o Pe. Valdir falou na periferia ela se expressa numa forma de conter a indignação da população pobre. É a própria repressão.
Este modelo prisional não responde a um projeto maior, a um projeto polÃtico especÃfico? Existiriam outras ramificações espraiadas em diversos âmbitos da sociedade em geral?
Carol Catini – Sim, essa polÃtica repressiva se manifesta em várias outras esferas da vida social e esta militarização tem concretamente se manifestado num aumento da atribuição de cargos ou de funções das polÃcias, que inclusive estão indo nas escolas para resolver pequenos conflitos entre alunos, ou entre alunos e professores. Este é um problema muito grave que a gente tem que combater. Na medida em que alguém está preso sobre estas condições a verdade é que estamos todos nós encarcerados. Todos nós estamos num limite muito grande de atuação.
Pe. Valdir – A mudança tem que ser uma mudança cultural, nós temos que fomentar o debate, porque nós não queremos que outra cultura acabe assimilando o que nós contestamos.
O sujeito de mudança deve ser o próprio preso e também os familiares. Então não nos importa a nós como pseudo-intelectuais para buscar, para dar instrução. Não. Isso tem que ser construÃdo junto, debatido, refletido, e com certeza eles também sabem a solução dos problemas e podem ajudar a assessorar o debate, mas é necessário fazermos a mudança.
Se queremos um paÃs mais fraterno, mais justo, temos que junto com a classe mais vulnerável discutir os meios para que possa haver mais partilha dos bens cujos são mais consumidos naquele grupo que tem e que explora e que defende a construção de presÃdios, que gerencia os presÃdios e a justiça no Brasil.
A próxima reunião da Rede Dois de Outubro será no dia 3 de Setembro. E os eventos da semana do Dois de Outubro lembrarão os 20 anos do Massacre do Carandiru.
Carol Catini – No dia 3 de Setembro a gente tem a próxima reunião da Rede Dois de Outubro na rua da Abolição 167, no Sindicato dos Advogados, em São Paulo, onde estamos construindo junto de outros vários movimentos e coletivos a construção do Dois de Outubro, que não apenas lembra do massacre do Carandiru, mas se posiciona contrariamente a continuidade dos massacres. Então a gente convida a todos para participar e construir junto com a gente esse importante momento de reflexão.
Pe.Valdir. – Todas as pessoas que estão se sentindo atacadas pela violência e querem se comprometer com a mudança social e com a justiça, uma sociedade participativa nas decisões, sujeitos das mudanças, venham também se unir conosco neste debate, parceria de construção de conjunto e coletiva. Quem estiver aberto ao diálogo é muito bem vindo.