Por: Thandara Santos*
Segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional, o número de presos e presas no Brasil cresceu 121% entre 2000 e 2011, atingindo, em dezembro de 2011, uma população carcerária total de 514.582 pessoas. Esse crescimento, no entanto, carrega especificidades muito claras sobre a condição das mulheres no “mundo do crimeâ€: nesse mesmo perÃodo, o número de mulheres encarceradas cresceu 252%, contra um crescimento de 115% da população carcerária masculina e, enquanto as condenações dos homens perpassam grande parte do nosso Código Penal, 47% de todas as mulheres encarceradas no Brasil em 2011 pagava por um único crime, o tráfico de drogas.
A esmagadora maioria destas mulheres foi enquadrada por tráfico na legislação de Drogas e Entorpecentes, reformulada em 2006, ao levarem drogas para dentro dos presÃdios para seus companheiros, maridos, filhos, irmãos, etc, encarcerados. É preciso problematizar essa polÃtica de drogas que entende o encarceramento em massa como resposta ao tráfico de drogas, mas fecha os olhos para a estrutura do crime organizado que está sendo cada vez mais fortalecida e financiada pelo próprio dinheiro do tráfico, que entra nos presÃdios, na maior parte das vezes, pelas mãos destas mulheres que lhe servem como instrumento.
Para além da denúncia da falência desta polÃtica de drogas como forma de superação da violência e da criminalidade financiada pelo tráfico, é preciso que o movimento feminista se engaje verdadeiramente na luta antiproibicionista e busque revelar quais os pressupostos por trás dessa noção de “proibição†à s drogas, que se sustenta e se reproduz nos corpos destas mulheres exploradas pelo tráfico e submetidas aos abusos fÃsicos e morais já rotineiros do sistema penitenciário feminino, e de que forma esses pressupostos compõem uma estrutura muito mais ampla de dominação de nossos corpos.
A revolução social por trás da ideia de superar os limites e as imposições do proibicionismo à s drogas se alimenta da mesma fonte do feminismo no Brasil e, por isso, não pode se distanciar dessa luta. Ambas revelam a mais dura face do conservadorismo que insiste em tomar as formulações de polÃticas públicas, as deliberações legislativas, os debates veiculados pela grande mÃdia e o senso-comum (des)informado pela mesma grande mÃdia que se fortalece a cada dia e se dissemina.
Em ambos os casos, esse conservadorismo e a utilidade de sua perpetuação têm origem e nome: no caso da luta antiproibicionista, ele nasce, principalmente, pautado pelos interesses da grande indústria farmacêutica capitalista moderna, que se alimenta e se reproduz a partir do monopólio sobre as possibilidades de exploração da mente e dos corpos animais; já no caso da luta feminista, o conservadorismo é filho único do capitalismo patriarcal, que fundamenta a divisão sexual do trabalho, fonte da exploração da mulher, de seu corpo e de sua mente.
A indústria farmacêutica representa o capital que determina a intervenção sobre o corpo e que monopoliza as possibilidades de abstração mental, enquadrando as diferentes lógicas de pensamento e nÃveis de consciência em “desvios mentais†passÃveis de serem tratadas a partir de medicamentos monopolizados por 2 ou 3 grandes indústrias e criados sem qualquer participação ou controle por parte dos usuários.
Assim como a discussão sobre a mercantilização do corpo e a indústria do consumo enfoca as mulheres, a discussão sobre o proibicionismo passa pela superação do capitalismo monopolista que cria os mais diversos “desvios sociaisâ€, travestidos de fatores os quais, supostamente, inviabilizariam sua vida social e, portanto lhe anulariam como ser humano e ser social “bem sucedido†(como a obesidade, a flacidez, a introspecção, a timidez, a depressão, as espinhas, etc). Em paralelo, o mercado cria e monopoliza os artifÃcios para superação desses “desviosâ€, tais como: os cosméticos e as cirurgias plásticas para os “desvios†do corpo e da aparência que impossibilitariam sua plena sociabilidade; e os remédios, anti-depressivos, estimulantes, etc para os “desvios†da mente, que também inviabilizariam sua vida em sociedade. Ambas crias do capitalismo, ainda que datadas de forma diversa, as bases desse conservadorismo geram um mesmo produto: a negação da autonomia.
O debate sobre as drogas trás em seu bojo o questionamento da divisão entre público e privado, tão central na luta feminista, uma vez que a proibição incide sobre os estÃmulos psicoativos que são criados e disponibilizados pela natureza e, naturalmente/milenarmente, apropriados pelos seres humanos como forma de explorar suas potencialidades mentais. O proibicionismo, portanto, incide sobre a auto-determinação dos corpos, mas principalmente sobre a auto-determinação das mentes e das possibilidades de explorações dos limites mentais.
Na luta feminista, a negação da auto-determinação dos corpos se manifesta no machismo que determina comportamentos como femininos e não-femininos, que justifica o estupro pelo uso de determinadas roupas e por determinadas formas de se portar em público, que entende o corpo feminino como seu espaço de dominação e o encerra cotidianamente ao espaço privado, mas, principalmente, se manifesta na proibição do aborto, que mata milhares de mulheres diariamente e nega a autonomia de decisão sobre a maternidade a todas nós.
A ordem social que proÃbe as drogas é também a ordem que se mantém a partir da exploração do corpo feminino e, portanto, só poderá ser superada quando essas lutas se unirem. Seguiremos em marcha até que tod@s sejamos livres do capitalismo patriarcal, do conservadorismo e da restrição à s mentes e corpos.
* Thandara Santos é cientista social, pesquisadora do campo da Segurança Pùblica e militante da Marcha Mundial das Mulheres – São Paulo.