Em artigo publicado em dezembro, Prof. Antonio Nery Filho diz que acabou o seu silêncio.
Leia e saiba porque este é o momento de voltar a falar.
Não olhei a data do meu último post, mas sei que foi há muito tempo. Tenho pensado nisto e tentado compreender esta resistência comigo mesmo e buscado as razões que tornaram minha alma indisposta.
A mais fácil resposta vem do tempo: estou envelhecendo e já vivo trabalhando, dias mais, dias menos, desde 1980 – trinta e dois anos – com pessoas envolvidas direta ou indiretamente com o consumo de álcool ou outro tipo de droga.
Não me convenço disto porque continuo pensando, e agindo, propondo inovações como foi o caso, recentemente, do Ponto de Encontro, atividade inspirada na experiência européia e que consiste em um serviço de baixa exigência, voltado para o acolhimento de pessoas fortemente marcadas pela exclusão de qualquer possibilidade que não seja experimentar a fome, o medo, a violência fÃsica e psÃquica e a morte.
Neste Ponto de Encontro, estas pessoas encontram mãos dispostas a tocá-las, encontram um café, um banho, encontram ouvidos sensÃveis e muita, muita consideração pelo fracasso, numa sociedade cada vez mais exigente, competitiva e orientada pelo ter em lugar do ser, como já foi dito e escrito por muitos. Também ajudei a nascer o Saúde (de Cara) na Rua, atividade voltada para a informação da comunidade sobre as substâncias psicoativas, de modo lúdico, com alegria e seriedade.
Envelhecer não me fez mal; por que, então, meu silêncio? Será porque a comunidade do bairro onde está localizado o Ponto de Encontro em Salvador luta, desesperadamente, para expulsá-lo de lá, sob a justificativa de que os usuários do Serviço são bandidos, drogados, ameaçadores e que devem ser internados (ou encarcerados), longe dali?
Será que meu silêncio tem a ver com o Parlamento Brasileiro que deixou de fora da proibição de propaganda na mÃdia a cerveja, porque esta bebida tem teor alcoólico abaixo de 12 graus Gay Lussac, mesmo sendo o produto psicoativo mais consumido e que mais contribui para as mortes no trânsito – cidades e estradas – todos os dias, anos a fio?
Ou será que meu silêncio tem a ver com as insistentes tentativas, apoiadas por deputados estaduais e federais, de tornar empresas particulares – Comunidades Terapêuticas – beneficiárias de recursos do SUS?
Ou, será que pesa mais sobre mim as brutais intervenções dos Governos Municipais do Rio de Janeiro e São Paulo, os dois faróis que iluminam o Brasil, com a ajuda das polÃcias locais, recolhendo moradores de rua sob o pretexto de que são usuários do temÃvel crack, como se fosse a droga a causa de violência e não a violência a causa de consumo do crack e outras drogas.
Pior, a Presidente da República e o Ministro da Justiça acreditam – ou dizem acreditar – na internação compulsória como solução. Aliás, devo ser justo: o Ministério da Saúde , historicamente, trata mal, muito mal a saúde mental e, por extensão, os usuários de drogas legais e ilegais e participa destas intervenções.
Li, ontem, e fiquei sem fala, um e-mail dando conta que o Governo de São Paulo não financiará mais os serviços que tenham como norte técnico a psicanálise, “porque os resultados são demorados e sem demonstração de que sejam eficazesâ€, isto relacionado aos portadores de autismo e outras patologias mentais. O que posso dizer? Talvez ficar em silêncio, inundado de vergonha e pensando: o que dirão meus colegas argentinos, chilenos, espanhóis, italianos e franceses sobre isto.
Há algo melhor do que a palavra para dar conta de nossa condição humana?
Será que meu silêncio tem a ver com uma mÃdia nacional que se interessa mais pelo horror disfarçado em reportagens pseudocientÃficas, do que pela informação técnica, honesta?
Devo silenciar novamente: acabo de falar longamente com a Coordenadora do Ponto de Encontro; fico sabendo que pouco mais de uma dezena de pessoas, aquelas que não têm mais do que a violência para lidar com o mundo, apareceu no serviço, alguns alcoolizados, provocadores, outros, mais cordatos, querendo “encarar os problemáticos†fisicamente; os moradores convocaram a polÃcia; um proprietário queixou-se que sua famÃlia estava refém daquelas pessoas e se fazia porta-voz da insatisfação pela convivência com uma gente meio-animal, meio-bandida, meio-drogada e, só um pouco, ainda gente.
Na voz de minha colega Diretora, um quase desespero, um quase pedido de socorro, um quase sofrimento explÃcito, mas, e isto foi o que me animou, havia também em sua voz uma forte determinação de continuar buscando soluções técnicas “de lutar a boa lutaâ€. Decidi que vou ficar menos silencioso.