Por Luis Fernando Tófoli
Na Folha de São Paulo de 29 de janeiro de 2012 foi publicada uma breve entrevista do médico Drauzio Varella, concedida a Claudia Colucci. Nela, o Dr. Varella expressa o seu inconformismo com a mera discussão sobre a internação compulsória de dependentes de crack. Antes do que eu tenho a  dizer sobre isso, é interessante ler a entrevista:
Internação compulsória é caminho a ser percorrido, diz Drauzio Varella
O Dr. Drauzio Varella é um grande divulgador de temas da Saúde no Brasil. Eu sou professor de Medicina e tenho utilizado seus textos para discussões sobre relação médico-paciente e outros temas ligados à Psicologia Médica. Sua percepção das relações humanas, sua prosa bem escrita e sua vasta experiência como clÃnico trazem diversos insights a serem compartilhados com estudantes de Medicina, em especial os livros ‘Por um Fio’ e ‘O Médico Doente’.
No assunto especÃfico da dependência quÃmica e, em especial, sobre o tema das polÃticas públicas de saúde mental voltadas para usuários de crack em situação de rua, o Dr. Drauzio, vinha, até agora, manifestado sinais contraditórios. Depois de um texto de 2011 na Carta Capital, onde defendia a internação compulsória usando pedindo ‘menos hipocrisia’, ele publicou, em 2012, no seu portal na internet, uma série de vÃdeos que continuam a entrevista feita por ele com o psiquiatra Dartiu Xavier da Silveira, do Programa de Orientação e Apoio ao Dependente (PROAD), na Universidade Federal de São Paulo – UNIFESP, que é a principal voz da Psiquiatria brasileira a se opor à s propostas de internação compulsória de dependentes de crack. Tais propostas têm pululado em diversas cidades do Brasil: o Rio de Janeiro aparentemente desistiu, mas São Paulo e Salvador mantêm-se firmes neste intento. Na entrevista, o Dr. Varella se mostrava atento, cortês, e sem qualquer sinal da revolta que transparece na entrevista concedida à Folha. Acima de tudo, em nenhum momento ele contrapôs ao discurso de Dartiu a ideia de que ele pudesse estar sendo “ideológico†ou “hipócritaâ€.
Agora, depois de ter demonstrado apoio a iniciativas para descriminalização das drogas no Brasil, o Dr. Drauzio vem à carga em uma entrevista com palavras fortes que foram comemoradas e prontamente repercutidas em toda a blogosfera conservadora como evidência inequÃvoca de que a ‘vitória’ contra o crack só se dará com o tratamento forçado por meios judiciários.
Não nos cabe esticar a discussão sobre os tipos de internação psiquiátrica, mas me escapam à compreensão as razões pelas quais o Dr. Varella defende a ação judiciária da internação compulsória – criada para ser usada de forma excepcional – ao lugar do recurso sanitário da internação involuntária. Também não entendemos por que ele propõe a internação como a única alternativa à situação verdadeiramente degradante do morador de rua craqueiro, uma vez que há uma série de outras ações de saúde possÃveis, que tornariam a internação – especialmente as de tipo não voluntário – um ato a ser usado somente nos casos graves, como diversos psiquiatras têm deixado claro na imprensa, e como preconiza a própria literatura psiquiátrica.
Só podemos entender que aqui há falta de conhecimento, admitida pelo médico dentro da própria entrevista. Sendo assim, optamos por escolher alguns pontos importantes para esclarecê-los diante temos estudado na literatura cientÃfica. Evidentemente, as informações são, por vezes, escassas, e certamente não há consensos absolutos, mas também não há qualquer justificativa na afirmativa de que a suposta solução seria a internação compulsória e que qualquer discussão sobre prós e contras esta medida fosse incabÃvel.
Eis, então, a seguir, os trechos escolhidos e os meus comentários:
 “Não conhecemos bem a eficácia ou a ineficácia porque as experiências com internações compulsórias são pequenas no mundo. Mesmo as de outros paÃses não servem para nós. O Brasil tem uma realidade diferente.â€
Há evidência internacional suficiente para que o Escritório sobre Drogas e Crime Organizado da ONU e a Organização Mundial da Saúde recomendem que o tratamento coercitivo (e aqui não se fala só de internação, mas de qualquer tipo, até o ambulatorial) seja a última opção a ser adotada, findas todas as outras. Os estudos internacionais disponÃveis apontam para ausência de efeito positivo na internação compulsória, com riscos óbvios de abusos do ponto de vista ético. Quando há comparação entre tratamentos voluntários e não voluntários (que incluem o involuntário e a compulsório), a balança da evidência e da ética pesa a favor da internação voluntária. É relevante também lembrar que no Programa ‘Fantástico’ o Dr. Drauzio posicionou-se firmemente contra os fitoterápicos, por considerar que estes não tinham eficácia clÃnica suficiente. Curiosamente, no caso das drogas, as supostas idiossincrasias brasileiras permitiriam que fossem tomadas medidas de base empÃrica duvidosa.
“Começam a falar que essa medida não respeita a dignidade humana. Que dignidade tem uma pessoa na sarjeta daquela maneira? Está na hora de parar com essa discussão ridÃcula. Pode ser que internação compulsória não seja a solução ideal, mas é um caminho que temos que percorrer. Se houver exagero, é uma questão de corrigir.â€
Bem, segundo, o Dr. Drauzio, pode ser que a internação compulsória “não seja a idealâ€, mas ele tem a certeza de que esse é o caminho a ser percorrido. GostarÃamos de entender qual a fundamentação na qual ele sustenta a sua afirmação. Até onde pudemos perceber, ela não passa da revolta do senso-comum, que, ao perceber a urgência da situação – que é fruto de décadas de descaso – foge à razão e à melhor informação qualificada e defende que a opção a ser tomada é a pura retirada das pessoas, contra sua vontade, da rua. Há ainda outro ponto importante. Em hipótese alguma o contraponto da sarjeta é a internação compulsória, como já mencionei acima. A ela se colocam uma série de medidas que incluem os consultórios de rua, os serviços ambulatoriais, as casas de acolhimento transitório e os leitos de desintoxicação, em modalidades voluntárias e involuntárias. Independente de sua ‘escola’ original, todos os especialistas concordam que a dependência quÃmica é um fenômeno complexo, com um perfil bastante heterogêneo de pacientes. Por isso, medidas plurais são absolutamente necessárias, pois o que serve para um, pode não servir para outro. Generalizações, aqui, são um grande perigo.
“É uma questão ideológica e não é hora para isso. Estamos numa epidemia, quanto mais tempo passa, mais gente morre.â€
Talvez não seja possÃvel perceber uma resposta tão ideológica nesta entrevista quanto essa, embora talvez o doutor não o tenha percebido. O nome desta doutrina – quase sempre involuntária, mas nunca compulsória – é Higienismo. Ele se fundamenta no conceito de epidemia – que no caso do crack nunca foi suficientemente comprovada nas grandes cidades brasileiras –,  na lógica biomédica, na defesa do bem-estar público e em certas doses de caridade para ‘limpar’, de forma pragmática, as cidades dos que são por ela considerados indesejáveis. Por outro lado, se olharmos do ponto de vista cientÃfico, todas as partes deste trecho da entrevista carecem de evidência. Dados da UNIFESP mostram quantidades enormes de pessoas que estão na rua, fumando crack, há mais de 10 anos. O mesmo estudo indica que na grande maioria das vezes não é o crack, por sua ação no organismo, que mata: o que mata é tiro. E os tiros, no Brasil têm a curiosa tendência de acertar determinados extratos da população que, não coincidentemente, são os mesmos que usam mais o crack. Segundo os relatos da equipe do  PROAD, a maioria dos ‘noias’ ou ‘cracudos’ em situação de rua começou a fumar a pedra por terem ido morar na rua, e não contrário. A população do centro de São Paulo vêm convivendo com esta suposta epidemia a anos a fio, tornada recentemente mais visÃvel justamente pelas ações da dupla Kassab/Alckmin, que espalharam os ‘noias’ da Luz por toda a cidade, dificultando terrivelmente o trabalho de abordagem de redução de danos que poderia ter sido feito se eles ainda estivessem concentrados.
 “Eu, se tivesse uma filha grávida, jogada na sarjeta, nem que fosse com camisa de força tiraria ela de lá.â€
Claro, ninguém tem dúvidas de que medidas fortes têm que ser tomadas em casos desse tipo. Em alguns casos, pode ser mesmo que uma moça grávida tenha que ser internada involuntariamente – mas nunca com camisa de força. Talvez seja interessante o Dr. Drauzio saber que em meus poucos dezesseis anos de prática psiquiátrica, nunca vi uma camisa de força. O próprio uso do termo denota um certo anacronismo, pois este recurso foi substituÃdo pela chamada de ‘contenção quÃmica’ – com tranquilizantes – há muito tempo. Outro ponto importante – fato que as equipes com experiência nesses casos sabe muito bem – é que mesmo quando uma abordagem mais firme é necessária, na maioria das vezes, se feita de forma adequada e com construção prévia de vÃnculos, ela não precisa ser nem involuntária, e muito menos compulsória.
“– Como prevenir a gravidez na cracolândia?
– É a coisa mais fácil. Há anticoncepcionais injetáveis, dá a injeção e dura três meses.â€
Aqui podemos compreender que o Dr. Varella está também propondo um tratamento involuntário com anticoncepcionais injetáveis para as mulheres em situação de rua. Se isto estiver correto, o que o Dr. Drauzio está sugerindo é muito grave e passÃvel de processo segundo o Código de Ética Médica, por mais pragmático e eficiente que possa parecer. Reza o Código, só para citar um de seus artigos, o 22º, que é vedado ao médico “deixar de obter consentimento do paciente ou de seu representante legal após esclarecê-lo sobre o procedimento a ser realizado, salvo em caso de risco iminente de morteâ€. Gravidez, salvo em situações especÃficas que não incluem necessariamente a dependência ao crack, não configuraria justificativa. E, em uma situação desse tipo, a autorização de um parente não seria suficiente, a menos que o paciente fosse menor de idade, curatelado ou evidentemente psicótico – um fato que não acontece com a maioria dos craqueiros em situação de rua, por mais que as lendas urbanas e os programas sensacionalistas indiquem o sentido contrário. Mais do que isso, a mera existência desta sugestão em um grande jornal, e o fato dela ter passado razoavelmente incólume na entrevista, mostra que em nosso paÃs as pessoas não têm mais medo de receberem crÃticas por proposições que em um passado recente seriam consideradas ditatoriais. Independente da questão do crack, isso é, em si, um fato muito preocupante.
 “– Por que é tão difÃcil adotar uma estratégia efetiva de enfrentamento do crack?
– Pela própria caracterÃstica da dependência. É uma doença crônica.â€
Esta resposta ignora, por exemplo a falha do Estado brasileiro em prover um mÃnimo de dignidade e atenção à saúde para estes indivÃduos há muitos anos e remete a um modelo da dependência fechado no biológico, bastante ultrapassado (este sim, com mais de 50 anos) e que ignora as práticas no tratamento de dependência de todas as nuances, desde à s modalidades mais libertárias (que sugeririam a abertura de narcossalas, um modelo com bastante sucesso na Europa do Norte) até o discurso mais tradicional das comunidades terapêuticas (que preconiza como essencial a vontade do indivÃduo se tratar). Nenhum, repito, absolutamente nenhum tratamento da dependência pode funcionar como polÃtica pública se ficar somente focado no discurso da doença crônica e na coerção.
Perceber que o modelo do Dr. Varella é limitado por ser centrado somente no biológico e na doença nos auxilia a entender o trecho a seguir:
“–Fazendo uma analogia com a especialidade do Sr., é como tratar um tumor avançado?
– Exatamente. […]
A medicina não sabe tratar dependência. Vejo na cadeia meninas desesperadas, me pedindo ajuda. Eu fico olhando com cara de idiota. Não tem o que fazer. Só posso dizer: fique longe da droga.â€
É isso. Tratar dependência quÃmica não é e nunca será como realizar um tratamento oncológico. Ainda se o fosse, o doutor saberia que não se trata todas as doenças de todos os pacientes com apenas um único recurso terapêutico. Se ele pode, para cuidar de seus doentes, usar as combinações de diversas técnicas – quimio, rádio, imunoterapia, entre outras – por que compreende que a utilização de um recurso único, o da internação compulsória, irá resolver o problema? Olhar o crack como um tumor só pode levar a isso mesmo: o médico com cara de idiota.
“Droga é moda, e a moda do crack vai passar ou ficar restrita a pequenas populações.â€
Gostaria muito de saber em que literatura ele se baseou para dar esta resposta. Fico pensando também qual a definição do Dr. Drauzio de ‘moda’ quando aplicada à s drogas, pois aà acho que finalmente haveria a chance de que os determinantes psicossociais do adoecimento pudessem ser arejados dentro desse discurso focado exclusivamente no componente orgânico. Aliás, vale anotar que este modelo vem sendo paulatinamente destruÃdo inclusive pelas pesquisas de Neurociências, da genética à neuroimagem funcional, que mostram a natureza complexa e policausal do uso problemático de drogas.
“Nós perdemos muito tempo. Não fizemos campanha educacional, não trabalhamos as crianças. Agora todos ficam horrorizados. Temos que ter aulas nas escolas, aprender desde pequeno. Precisamos chegar antes da dependência.â€
Só para fecharmos, vale apontar que os estudos focados na prevenção dos malefÃcios do uso da droga indicam que as tradicionais abordagens educativas, informando que as drogas ‘fazem mal’ têm baixÃssima eficiência, embora, é claro, sejam muito bem intencionadas. Isso já foi demonstrado até por um recente estudo de Neurociências.
O discurso moralizante, em diversos âmbitos, tem frequentemente transbordado os limites do razoável em nosso paÃs. Quando o assunto é drogas, todo mundo tem sua teoria pessoal. Essas teorias tendem a ser muito arraigadas em valores morais individuais e não raro há quem fique pessoalmente ofendido quando algum estudioso do tema apresenta dados que seriam contra-intuitivos. Para a nossa desgraça, além da própria polêmica que existe entre os especialistas, dados contra-intuitivos estão presentes aos montes, neste campo. Por isso, é muito importante que pessoas de influência na mÃdia, especialmente médicos de grande renome, abstenham-se de falar com base unicamente no senso comum, ainda que seja um senso comum médico. Quando o assunto é polêmico, seria de bom-tom ao menos trazer o benefÃcio da dúvida e o equilÃbrio dos especialistas divergentes. Desejo sinceramente que a ‘revolta’ do Dr. Drauzio Varella se equilibre em breve, pois essa zanga poderia servir de desculpa para que as nobres intenções da internação compulsória sejam transformadas, por diversos tipos de oportunistas de plantão,  em uma fonte escusa de lucro financeiro ou eleitoral.
– LuÃs Fernando Tófoli é Psiquiatra e Professor Universitário