Daniela Fernandes
De Paris para a BBC Brasil
A internação compulsória de dependentes de crack não é a maneira mais eficiente de se lidar com o problema do vÃcio, segundo especialistas da ONU e da OMS (Organização Mundial da Saúde) ouvidos pela BBC Brasil.
O tema voltou a debate no Brasil em janeiro, quando o governo de São Paulo fez uma parceria com a Justiça para agilizar a internação forçada de casos extremos de dependentes da droga.
O governo paulista diz que suas propostas para o tratamento dos usuários de crack estão de acordo com as premissas da ONU e da OMS e afirma que, até hoje, nenhum paciente foi internado por ordem judicial e menos de dez foram internados involuntariamente (a pedido da famÃlia, mas sem ordem da Justiça).
Para o médico italiano Gilberto Gerra, chefe do departamento de prevenção à s drogas e saúde do Escritório das Nações Unidas contra a Droga e o Crime (UNODC, na sigla em inglês), é necessário oferecer aos viciados “serviços atrativos e uma assistência social sólida”.
“Uma boa cura de desintoxicação envolve tratamento de saúde, inclusive psiquiátrico para diagnosticar as causas do vÃcio, pessoas especializadas e sorridentes para lidar com os dependentes e incentivos como alimentação, moradia e ajuda para arrumar um emprego”, diz Gerra.
“O Brasil precisa investir recursos para oferecer serviços que funcionem e ofereçam acompanhamento médico completo, proteção social, comida e trabalho para os dependentes”, afirma.
De acordo com ele, o Brasil tem bons profissionais no campo do tratamento das drogas, mas faltam especialistas, e a rede médica nessa área é insuficiente.
Segundo Gerra, a internação compulsória deve ocorrer pelo prazo máximo de algumas semanas e só se justifica quando o dependente apresenta comportamento perigoso para a sociedade ou para si próprio.
O médico defende o acompanhamento contÃnuo mesmo após a fase de desintoxicação, como exames de urina para detectar drogas nas pessoas que receberam auxÃlio para arrumar um emprego ou a presença de assistentes na hora das compras no supermercado para fiscalizar se o cupom de alimentação recebido é realmente utilizado com essa finalidade.
Autor do documento “Da coerção à coesão: tratando a dependência à s drogas por meio de cuidados à saúde e não da punição”, do UNODC, Gerra diz que o tratamento do vÃcio do crack não é feito com remédios, e sim com acompanhamento psicológico e psiquiátrico.
Ele afirma ainda que os paÃses democráticos devem “estar atentos” ao sistema de internação compulsória para não transformar isso em uma “rede” de tratamento para lidar com o problema.
Para o médico australiano Nicolas Campion Clark, da direção do abuso de substâncias da Organização Mundial da Saúde (OMS), a internação compulsória traz o risco de “criar uma barreira com o dependente” e afetar sua confiança, dificultando, portanto, o tratamento.
Clark afirma que muitos paÃses possuem legislações que autorizam a internação compulsória de dependentes, mas “isso é usado raramente e não funciona realmente na prática”.
“É melhor encorajar o sistema voluntário de tratamento. É difÃcil forçar alguém a se tratar. Se você oferecer uma chance para as pessoas se recuperarem e terem comida, alguns vão agradecer, outros vão querer voltar para onde estavam”, afirma.
O especialista da OMS também afirma que o vÃcio do crack envolve problemas múltiplos (psicológicos e sociais) que devem ser tratados com ações em várias áreas além da médica, como moradia, alimentação, assistência geral e programas de emprego.
Ele afirma que há exemplos de programas de tratamento voluntário de dependentes em paÃses como os Estados Unidos e a Austrália que “ajudam as pessoas a reconstruir suas vidas e não são apenas soluções temporárias”.
O médico cita também o programa brasileiro que permite às grávidas viciadas em crack obter tijolos e materiais para construir casas em troca de tratamento.
“Isso dá instrumentos para que elas façam algo diferente em suas vidas”, afirma.
A OMS já criticou o sistema de internação compulsória de dependentes realizado em paÃses asiáticos. “Eles detém pessoas viciadas e estão tratando casos de saúde com a prisão”, diz Clark.
A organização publicou um documento no ano passado solicitando aos paÃses para fechar os centros de tratamento compulsório de drogas.
Segundo Clark, pelo menos 90% dos dependentes quÃmicos no mundo não recebem tratamento.
No último dia 21, o governo de São Paulo iniciou em parceria com a Justiça um plantão jurÃdico em uma clÃnica especializada no tratamento de dependentes quÃmicos no centro da capital.
A medida gerou polêmica e atraiu crÃticas de ativistas de direitos humanos, contrários à internação forçada e que temiam o uso da polÃcia para levar viciados para tratamento.
As autoridades de São Paulo afirmam que a participação da polÃcia na ação nunca esteve nos planos do governo e que a internação compulsória seria empregada apenas em casos extremos.
Mas a exposição do assunto na mÃdia aumentou o número de atendimentos voluntários na clÃnica. “Passamos a atender até 120 pessoas em um dia. Esse era o número de pessoas que recebÃamos em uma semana”, disse Rosângela Elias, coordenadora de saúde mental, álcool e drogas da Secretaria da Saúde do Estado de São Paulo.
Segundo ela, o Estado mantém ainda cerca de 300 vagas em moradias assistidas. Nelas, o viciado em crack em processo de desintoxicação recebe por até seis meses um local para morar, alimentos e incentivos para voltar ao mercado de trabalho.
Nesse perÃodo, também é incentivado a frequentar clÃnicas públicas especializadas onde recebe atendimento clÃnico e psicológico. De acordo com Elias, há uma mobilização de secretarias estaduais e municipais para ajudar o dependente quÃmico em recuperação a se reinserir na sociedade.