Centro Burnier de Fé e Justiça
Por Dafne Spolti
O Brasil tem utilizado força bruta para promover a paz. Com essa história toda de copa do mundo, a diretriz é clara: O Governo Federal, os estaduais e municipais, precisam se unir e dar jeito em quem vive na rua e em quem usa droga na rua. Nossos gestores demonizam, então, a questão das substâncias psicoativas e expõem o sofrimento das mães sensacionalmente. Em nome de qualquer negócio o poder polÃtico tem atuado de maneira perversa contra diversas pessoas. Geralmente pobres. Trata-se de limpeza e tem ocorrido com apoio da maior parte da sociedade, que não entende nada sobre as drogas, a não ser, talvez, do efeito de algumas delas. A violência contra jovens, velhos, todo mundo, ganha pontos com a defesa ignorante pela internação compulsória em massa. É isso que acontece. Assim o Estado chama de pacificados os lugares vazios antes ocupados.
Há um ano diversos policiais de São Paulo foram mandados, cada um com uma vassoura, à cracolândia, na rua Helvétia, região da Luz, centro da capital paulista.  Empurraram as pessoas para a rua seguinte, para a calçada, da calçada para a rua, numa tentativa de deixar o local limpo. As gentes que ali estavam – moradores de rua, usuários de drogas ou não – obedeciam aos mandos de andar em cÃrculos como mostra uma fotografia de Danilo Verpa (Folhapress) em que um milico passa atropelando todo mundo com sua motocicleta. Durante a “operação sufocoâ€, como foi apelidada, as pessoas foram agredidas com impedimento de acesso ao “Bom Prato†e ao “Alimentar-se na Ruaâ€, atropelamentos e tiros. Imagens, ferimentos e também as declarações de autoridades deixaram clara a intenção do governo Alckmin. Intenção comum a outros polÃticos, mesmo que as ações e discursos possam parecer palavras de proteção e amor.
Este ano a lógica da caça à s pessoas da cracolândia parece a mesma. Ao que tudo indica, porém, estão fazendo as coisas “direitinhoâ€. Pelo menos em São Paulo afirma-se nada será violento e tudo, tudo dentro da lei. É quase bonito o que dizem e ao mesmo tempo intrigante se pensarmos no ato de violência do ano passado.  Com um pouco de atenção é possÃvel ver que São Paulo não está dentro da lei e tampouco sabe exatamente o que está fazendo.
Profissionais estão de plantão no Centro de Referência de Ãlcool, Tabaco e Outras Drogas (Cratod). Disseram eles, que a polÃcia só irá acompanhar os trabalhos. A parceria toda engloba o Tribunal de Justiça, a Ordem dos Advogados do Brasil, o Ministério Público, a Secretaria de Estado de Assistência Social e a ONG Missão Belém.
Olha o que estão fazendo: A instituição parceira do governo de São Paulo, com quem está firmado um convênio anual de R$ 4 milhões (de acordo com a Folha de S. Paulo), é a Missão Belém, extremamente religiosa. O governo estadual não poderia fazer isso. E está fazendo. Há algumas semanas fui, por acaso, até o coração da cracolândia. No caminho encontrei os missionários.
O rapaz usou crack durante dois anos em Minas Gerais e depois em São Paulo. Foi para a Missão Belém. Ficou lá dois anos, virou monitor, coordenador, saiu para trabalhar e retornou por conta da parceria com o governo. Não duvido de que tenha boas intenções, porém, faz parte de uma coisa equivocada. Mais do que eu esperava. Lá, trabalham exatamente com isso: o catolicismo e a laborterapia. Laborterapia é trabalho. Limpar as coisas, carpir. Entre a manhã e a noite os usuários se reúnem umas quatro, cinco vezes para rezar o terço, ler a carta espiritual feita pelo padre. Passam cada dia tentando seguir uma parte do evangelho. Trabalham e ficam em lazer (bola, dominó, conversas). Têm feedback com os monitores. Após um mês fazem primeira comunhão, batismo, crisma e esses rituais todos, caso não estejam cumpridos ainda. Eles, na Missão Belém, não trabalham nem com os tão utilizados 12 passos de comunidade terapêutica. “Nosso passo é a oraçãoâ€, afirmou o trabalhador da Missão. Pergunto: Isso é tratamento? Não gente. Não é.
Tratamento para usuários e dependentes de álcool e drogas, incluindo os que moram nas ruas, já tem forma e está nas diretrizes do Ministério da Saúde. Então, é desnecessário ficar quebrando a cabeça, pensando no que fazer. O Sistema Único de Saúde tem que estar com a Rede de Saúde Mental em funcionamento para que as pessoas pobres e ricas sejam atendidas de forma individualizada e multidisciplinar. É por essa rede que temos de nos esgoelar.
Ela é o modelo infalÃvel para o cuidado à s pessoas. Prevê que os profissionais da saúde dos bairros saibam orientar um usuário de drogas e seus familiares, que redutores de danos vão à s ruas conversar com os usuários de drogas e ser ponte para que estes possam buscar ajuda no percurso de ressignificação de algumas coisas na vida, se assim quiserem. A rede recomenda o atendimento dentro do mundo. A pessoa não terá que sumir. Prevê ainda casas para quem precisar morar provisoriamente até conseguir voltar para a famÃlia, ou poder ir para algum outro lugar. Enfim, a rede de saúde mental tem as ferramentas todas para um atendimento. Além disso, deve se ligar também a atividades culturais, educativas, de lazer.
Como seu funcionamento iria desviar o dinheiro dos corruptos, por enquanto, existem poucos instrumentos no SUS. Tanto que ao se pensar em Saúde Mental todos (às vezes até quem é da luta antimanicomial) só lembram-se dos Centros de Atenção Psicossocial (Caps), a parte que se tem. Mas não é só de Caps que vive a rede. Se não, não se chamaria assim: rede. Em São Paulo não funciona, nem em Cuiabá, nem em lugar nenhum (mesmo que tenha avançado em alguns estados). Apesar de eficiente e séria, até profissionais da saúde pública pensam que ela não dá certo; então tudo o que foi criado, estudado, que vem sendo pensado há anos, está frágil.
Com o apoio de psiquiatras que, medicam, mas em geral entendem pouco sobre o ser dos seres, será fácil mandar prender. Aliás, até psiquiatra de universidade fala que um sujeito que usa drogas é incapacitado e tem que ser preso. Posso parecer meio nojenta falando assim, mas é isso mesmo que estou dizendo. Conheço uma boa médica e existem outros, mas a posição dos psiquiatras em geral é a mais esdrúxula e retrógrada que se pode ter. Acho que dói no orgulho de um grupo deles a existência de coisas que não são fÃsicas, que apesar de estarem no cérebro o ultrapassam. Mas deixa pra lá. A questão é que acontecem também internações compulsórias de forma errônea com apoio de médicos e isso é triste.
No caso das internações de São Paulo, este ano o governo está buscando o amparo legal. A lei 10.216/2001, que rege as questões da saúde mental, diz que internações, em geral, só devem ocorrer quando os recursos outros, que não os hospitalares, se mostrarem insuficientes; e com objetivo de reinserção da pessoa. Além disso, deverá se oferecer “assistência integral à pessoa portadora de transtornos mentais, incluindo serviços médicos, de assistência social, psicológicos, ocupacionais, de lazer, e outrosâ€, sendo “vedada internação de pacientes portadores de transtornos mentais em instituições com caracterÃsticas asilares, ou seja, aquelas desprovidas dos recursos mencionadosâ€. A legislação também permite a internação compulsória, com determinação da justiça e laudo do médico.
No caso da cracolândia não deverÃamos prever internação nem voluntária, a princÃpio. Não há como dizer que os recursos extra-hospitalares não foram suficientes se ali não houve trabalho nenhum com aquelas pessoas – talvez tenha algo tÃmido em curso, o que seria uma pena interromper.
Supondo que algumas pessoas dali (ou de outros espaços) precisem mesmo de uma internação, ok para as que quiserem. Para as que não quiserem, é preciso entender. E se houver risco eminente de alguém morrer ou de matar, que se interne compulsoriamente, então, como diz a lei. Nem precisava ter estardalhaço. Mas nas ações pretendidas a mando do governo quem é que vai determinar esse risco? Acho ridÃculo, petulante e generalista da nossa parte querer afirmar que a galera da cracolândia coloca a vida das pessoas em risco e a delas próprias. Se for mandar internar usuário de droga, que se internem as pessoas que bebem e dirigem. Motorista embriagado no volante é muito mais perigoso do que o usuário de crack na cracolândia. Mas como determinar que todos os motoristas que bebem dirigem embriagados? Internação compulsória é delicada e extraordinária. Não dá pra fazer mutirão. Não tem de ser assim.
Gente, as cracolândias e todas as pessoas precisam que haja redutores de danos, têm necessidade de um processo antes de se pensar em internar. Aliás, internação deve ser parte do processo todo. Não a regra, não o princÃpio. E ali, no centro de São Paulo, estamos falando de pessoas em situação de vulnerabilidade. Lembro aqui de uma fala do Júlio Delmanto, do Coletivo Desentorpecendo a Razão, durante o Simpósio Internacional “Esquerda na América Latinaâ€, realizado em setembro do ano passado sobre o crack e a questão social que o envolve nesses locais. Ele diz: “a pessoa não tem casa, saúde, educação, moradia e o problema dela é o crack. Evidentemente que não. Se não fosse crack seria pinga, colaâ€. É fundamental não perder de vista essa dimensão quando falamos do crack. O crack não é esse demônio que assombra a sociedade.
Existem ainda mais alguns pontos preocupantes sobre a internação compulsória como aparentemente está colocada em São Paulo. O governo usa o discurso de que a polÃcia não pegará as pessoas à força, mas que irá acompanhar as abordagens, feitas por um assistente social e uma pessoa da Missão Belém. Essas pessoas levarão os usuários para o Cratod, onde serão avaliados, então, por médicos. Risos. Como o assistente social e a pessoa da Missão irão levá-los? Para convencer – não deveria ser um convencimento, mas sim um consenso sobre a importância de se fazer o que é proposto – é preciso que haja convÃvio suficiente e confiança entre o usuário e a pessoa que está fazendo a abordagem. Nesse caso será um profissional e um religioso, chegando “do nadaâ€. Não sei como farão. Só consigo imaginar uma assistente social pequena como eu tentando puxar a galera pelos braços pro CRATOD. Risos novamente. Imagino também discursos como “se você não vier, a polÃcia, que está parada aqui, terá que te levarâ€, o que é uma agressão. Dá para visualizar tudo se descambar e os milicos botarem pra quebrar outra vez. E se não levarem à força, com mando judicial, então não é internação compulsória. Afinal o que o governo de São Paulo está fazendo?
Eu não sei o que irá acontecer e ninguém sabe. Mas precisamos pensar. Um trecho explicativo sobre esse tipo de internação no portal do governo de São Paulo diz: “após receber o primeiro atendimento (quando o paciente é levado de maneira voluntária ao CRATOD por um assistente social), o dependente quÃmico será avaliado por médicos que vão oferecer o tratamento adequado. Caso a pessoa não queira ser internada, o juiz poderá determinar a internação imediata (desde que os médicos considerem que a pessoa corra risco e atestem que ela não tem domÃnio sobre sua condição fÃsica e psicológica)â€. Não é lindo?
Com uma fala dessas, afirmativas de que o usuário será “levado de maneira voluntária†ao CRATOD, parece até que podemos ficar tranquilos Seria uma forma normal de atendimento a pessoa ir ao local, ser acolhida, receber o atendimento dos profissionais (psicólogos, enfermeiros, assistentes sociais, médicos etc). Por que estão falando uma coisa que deveria ser corriqueira num Cratod? Por que o barulho absurdo sobre as internações compulsórias seguido de uma coisa tão natural como esse atendimento descrito no portal do governo? Porque estão chamando de internação compulsória uma coisa que aparentemente não é internação compulsória? Está tudo estranho. O discurso não bate com a prática. A coisa está de tal jeito que nem é possÃvel saber do que, afinal, estamos falando.
No fim das contas, o governo de São Paulo só sabe “resolverâ€Â o “problema†das drogas com polÃcia e internação. Assim como o governo do Rio de Janeiro, onde a internação também já começou. Assim como em Cuiabá. Quando fica feio demais utilizar a violência, se perdem. É isso que está acontecendo. Por isso os discursos não se sustentam. Os gestores não sabem como agir e de forma rápida. A copa está logo aÃ, as olimpÃadas também. E afinal, o que é importante? As pessoas são importantes. Mas isso muita gente ainda não entendeu.
Sugestões de leitura:
A banalização de medidas autoritárias
Humberto Verona
Nem comunidades, nem terapêuticas
Por Gabriela Moncau
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‘Indústria da loucura’ impede avanços
Gabriela Moncau
http://www.carosamigos.com.br/
Drogas e Psicanálise
Maria Rita Khel
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Redução de Danos
Mônica Gorgulho
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Justiça e Democracia: Cracolândia II
Com Daniela Skromov de Alburquerque
Internação compulsória – TV Justiça
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Carta aberta dos trabalhadores do Cratod
Posicionamento do Fórum Popular sobre Internação Compulsória
Missão Belém
Entenda o que é a internação compulsória para dependentes quÃmicos – Governo de São Paulo