Está para ser votado na Câmara dos Deputados o projeto de lei 7663, de autoria do deputado Osmar Terra (PMDB-RS), considerado por muitos especialistas em psicoativos como um tremendo retrocesso. Punição aos usuários, reforço do modelo manicomial de segregação e desrespeito aos direitos humanos, implantação do denuncismo vazio em escolas por suspeita de uso de drogas, aumento de penas sem um debate mais amplo. Segue, assim, o padrão das polÃticas públicas brasileiras: aumentar a punição ao invés de instituir o debate e meios de prevenção.
Mauricio Fiore, antropólogo, pesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) e do Núcleo de Estudos Interdisciplinares sobre Psicoativos (NEIP), é autor de diversos trabalhos sobre uso de substâncias psicoativas e um dos maiores especialistas brasileiros no tema. Pedi a ele um texto para o blog sobre o polêmico projeto:
O debate sobre polÃtica de drogas teve um avanço significativo nos últimos anos. Em todo o mundo, a “guerra à s drogasâ€, uma das piores heranças do século 20, está sendo questionada num debate que cada vez mais se distancia de dogmas e se aproxima do conhecimento cientÃfico e do paradigma da garantia dos direitos humanos.
As mudanças polÃticas, como esperado, seguem um ritmo mais lento, mas, no Brasil, esse descompasso é dramático. Quem acompanha o tema mais de perto não tinha expectativas sobre debates profundos que viessem do nosso Legislativo. Eis que, instigados ainda pela visão bélica do “combate à s drogasâ€, parlamentares constituÃram uma Comissão Especial, a CEDROGA, que durante os anos de 2011 e 12, agrupou os projetos de lei existentes no PL 7663, de autoria do deputado Osmar Terra (PMDB-RS). Enfim, de onde não se esperava muitos avanços, veio a ameaça de um retrocesso. Sem um debate qualificado, o projeto avançou rápido e está para ser votado em regime de urgência no plenário da Câmara dos Deputados. Seus autores não se mostraram abertos ao contraponto, o que se exemplificou na reação do seu relator, o deputado Gilvaldo Carimbão (PSB-AL), à s crÃticas do Conselho Federal de Psicologia: “O Conselho Federal de Psicologia é um assassino de dependentes de drogasâ€.
O texto da lei é longo e confuso, com muitas imprecisões conceituais e ambiguidades que certamente serão alvo de batalhas judiciais. Vou me deter apenas em dois pontos do projeto que considero muito delicados.
1) Reforço do modelo manicomial
O projeto pretende criar um “Sistema Nacional de PolÃtica de Drogas†que seria responsável por controlar todas as polÃticas do tema nas diversas esferas do Estado. Ele ignora que os aspectos relacionados à saúde pública devem estar em consonância com os marcos do Sistema Único de Saúde (SUS) e, portanto, de sua PolÃtica de Atenção à Saúde Mental.
Ao legislar sobre internação de usuários e dependentes de drogas – essa confusão aparece o tempo todo no projeto – o PL 7663 retira os transtornos mentais associados às substâncias psicoativas da Lei 10216/2001, criando uma duplicidade desnecessária, mas cujo objetivo é colocar ênfase na aceleração das internações como modelo de tratamento. Ele também torna muito mais rápido o processo de internação à força, último e emergencial recurso na assistência aos dependentes.
Além de ignorar o necessário aperfeiçoamento da rede de atenção psicossocial, o projeto tem como pressuposto que o poder público e o SUS não conseguirão responder à demanda por internações, abrindo a possibilidade de financiamento para clÃnicas e comunidades terapêuticas privadas. A diversidade dessas instituições é grande, sendo perigosa a generalização. O importante é que não há pesquisa ou literatura sobre a eficácia de seus tratamentos e há muitos indÃcios que elas reproduzam o trágico modelo manicomial de segregação e desrespeito aos direitos humanos.
Ao eleger a internação como centro da polÃtica pública para atendimento aos dependentes, a proposta parte de pressupostos questionáveis, como estabelecer um perÃodo máximo de 180 dias nessas instituições. Qual a justificativa desse número? Embora o projeto dedique muita atenção à s exigências de controle e verificação dessas instituições, não há um parâmetro claro sobre com essa eficácia será medida e avaliada.
Num detalhe: o projeto revela seu objetivo de acelerar a internação coletiva à força que temos assistido no Rio de Janeiro e em outras cidades. Prevê que um “servidor público†pode, na ausência da famÃlia, requerer a internação, que deve ser respaldada por um médico. Abra-se o caminho, assim, para o contraditório “acolhimento compulsório†de moradores de rua e para a perversa associação entre assistência social e higienismo urbano.
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2) Recrudescimento da criminalização e do encarceramento
O tráfico de drogas é o segundo maior encarcerador no Brasil e, como o ritmo de prisão por esse crime cresce mais que os outros, ele deve ocupar, em breve, o primeiro posto (que já detém no caso das mulheres). Pesquisas demonstram que a maior parte dos detidos por tráfico foram flagrados com pouca quantidade de drogas e sem arma de fogo, são jovens, pobres e respondem presos ao processo (decisão já condenada no STF, mas comumente ignorada nos tribunais estaduais). Hoje, a lei já prevê uma pena dura – mÃnimo de 5 e máximo de 15 anos –próxima, portanto, daquelas previstas para estupro e homicÃdio. Encarcerados num sistema prisional “medieval†– palavras do Ministro da Justiça – as dificuldades de inserção desses jovens no mercado de trabalho se multiplicam.
O PL 7663 parte do princÃpio que esse encarceramento é insuficiente. Aumenta a pena mÃnima para tráfico de drogas para 8 anos e eleva as penas mÃnimas para todos os crimes relacionados ao tráfico, como, por exemplo, o de informante. No caso de um jovem flagrado soltando rojão para alertar “traficantes†sobre a presença da polÃcia, prática punida hoje com pelo menos dois anos de prisão, terá pena mÃnima de 6 anos, equivalente à do estupro.
Ainda há mais: a pena para tráfico pode ser aumentada em dois terços caso envolva “mistura de drogas†que potencializem o risco de dependência, atingindo 25 anos. Nesse caso, essa conceituação sem nenhum critério cientÃfico tem como alvo claro o crack, apostando na ideia de que se deve combate a todo custo uma“epidemia†até hoje não demonstrada objetivamente. Os EUA passaram a punir mais rigorosamente o tráfico de crack nos anos 1980 e o resultado foi uma enorme contribuição para que se tornasse o maior encarcerador mundial, com super-representação de pobres e de minorias étnicas. Essa polÃtica vem sendo paulatinamente abandonada por lá, mas ressurge como “solução†por aqui.
O projeto ignora a diferenciação mais clara entre o uso e o tráfico de drogas e dá tratamento semelhante a qualquer tráfico, inclusive o pequeno e não violento, um dos maiores equÃvocos da lei atual. Reforça, ainda, algumas das sanções previstas para os penalizados por uso, dobrando o tempo de suas sanções, além de acrescentar outras, como a “restrição de direitos relativos à frequência a determinados lugares ou imposição ao cumprimento de horáriosâ€. Caso aprovada, a lei levará a mais encarceramento cego por um crime não violento e continuará fracassando no seu pretenso objetivo, que é a diminuição de oferta e da demanda de drogas ilÃcitas.
Muitos outros pontos poderiam ser questionados no PL 7663, como o artigo que obriga as escolas a notificar compulsoriamente “suspeitas†de uso de drogas. Todas elas apontam para a falta de um debate profundo e democrático na construção do projeto e para a aplicação da lógica de guerra à s drogas na elaboração de leis e polÃticas públicas, cada vez mais percebidas internacionalmente como injustas e fracassadas.
Parece desalentador ter de lutar para que não haja retrocesso, enquanto poderÃamos discutir avanços. Mas esse pode ser um momento no qual a participação e o engajamento nesse debate contaminem a ação dos parlamentares e dos seus partidos, presos no discurso moral e inócuo do “combate à s drogasâ€.
Movimentos sociais, especialistas e personalidades estão se movimentando não apenas para que o projeto seja barrado, mas para que outra polÃtica seja construÃda. Há muitas formas de se engajar nessa discussão. Uma delas é assinar a petição contra o projeto de lei 7663, disponÃvel aqui.