COLETIVO DAR
Len Bias, “o arquiduque Francisco Ferdinando da Guerra Total à s Drogasâ€Termina nesta quarta-feira (17) a temporada regular da NBA, a liga de basquete profissional dos Estados Unidos, que a partir deste fim semana inicia sua fase final, os chamados playoffs (o que por aqui chamamos de “mata-mataâ€). E o que carajos isso tem a ver com um site sobre drogas e direitos humanos? Bom, poderÃamos dizer que a NBA, apesar de ter o direito de realizar testes antidoping com seus jogadores durante a temporada, é conhecida como uma liga bem maconheira, como atesta o Bola Presa, site referência do assunto no Brasil: “Em 2001, o ex-jogador Charles Oakley disse que pelo menos 60% dos jogadores da NBA devem usar maconha, já em 2005 uma pesquisa com alguns jogadores fez uma estimativa de que 30% fumam o baguio regularmenteâ€.
Mas ficaremos aqui com uma história mais ligada a polÃtica de drogas do que a seu consumo. Ela envolve a NBA pois trata do caso de Len Bias, cuja trajetória foi considerada de tamanha importância por Dan Baum, autor do livro Smoke and mirrors [Fumaça e espelhos], um estudo sobre a guerra à s drogas, que definiu este personagem como “o arquiduque Francisco Ferdinando da Guerra Total à s Drogasâ€.  Pra quem não lembra, Francisco Fernando Carlos LuÃs José Maria de Ãustria-Este, popularmente conhecido como Francisco Ferdinando, foi morto em um atentado em Sarajevo em junho de 1914, num evento que é visto como o estopim para o inÃcio da I Guerra Mundial.
Mas como Len Bias se tornou o estopim para o recrudescimento da guerra às drogas?
No dia 17 de junho de 1986, Leonard Kevin Bias realizou seu grande sonho de ser contratado por um time da NBA. Com 22 anos e jogando na posição de ala, ele tinha acabado de ser eleito para a seleção dos melhores jogadores do torneio universitário estadunidense de basquete (NCAA), espécie de vestibular para a liga principal, e foi escolhido pelo Boston Celtics para jogar a temporada de 1986-1987 em sua equipe. Detalhe: o Celtics era o atual campeão da NBA e contava com a lenda Larry Bird, um dos maiores da história desse esporte. Além disso, Bias assinara um contrato de 3 milhões de dólares com a empresa de material esportivo Reebok.
Na noite do dia 18, depois de uma rápida conferência de imprensa, Bias voltou à universidade de Maryland para celebrar a conquista com seus amigos. Na manhã seguinte foi encontrado morto em um dormitório da universidade. Causa mortis: envenenamento por cocaÃna. Overdose. De acordo com as investigações, Bias seria um usuário habitual de drogas, e a cocaÃna que ele consumiu no dia de sua morte tinha uma pureza de 98%.
Segundo o jornalista britânico Dominic Streatfield, autor do excelente livro Cocaine – an unauthorized biography  [CocaÃna: uma biografia não autorizada] , “a morte de Bias coincidiu perfeitamente com a chegada da ‘nova’ droga crack. Mesmo que não houvesse nenhuma evidência disso, o público imediatamente decidiu que foi o crack que o matouâ€. No final daquele mês de junho, pais preocupados e lÃderes civis estavam organizando marchas ao redor do paÃs. Em julho, a rede de TV ABC inovou ao enviar um cinegrafista para acompanhar uma batida policial em uma “crack houseâ€, casa de consumo e venda de cocaÃna fumada. A audiência foi tamanha que outras emissoras seguiram o exemplo, como a CBS, que preparou rapidamente o documentário 48 hours on Crack Street [48 horas na Rua do Crack].
Em artigo intitulado “Cocaine is a loaded gun†[A cocaÃna é uma arma carregada], a revista Newsweek apontava que “a lição da morte de Bias é que cocaÃna mataâ€. Em setembro, a revista Time, que poucos anos antes havia celebrado, em matéria de capa, a cocaÃna como a “All-american drug†[A droga de todos os americanos], apontando que ela não matava, não gerava câncer nem dependência e não trazia ressacas, publicou nova reportagem de capa intitulada “Drugs: the enemy within†[Drogas: o inimigo interno].
Um dia antes desta Time chegar à s bancas, Ronald e Nancy Reagan, presidente e primeira dama dos EUA no momento, clamam aos cidadãos estadunidenses que tomem parte de uma “cruzada nacional contra as drogasâ€: “diga sim para sua vida, quando se tratar de álcool e drogas apenas diga nãoâ€, bradaram, inaugurando uma nova etapa de repressão na guerra à s drogas.
Estava consolidada a fase que a pesquisadora espanhola Belén Luca de Tena qualificou, em seu livro A guerra da cocaÃna, como a etapa de “consolidação da cruzada†da guerra à s drogas. É durante esta fase que se instauram importantes dispositivos legais dentro dos Estados Unidos, o que obviamente traz consequências para a polÃtica em nÃvel continental e global. No ano de 1982 é aprovado o “Defense Autorization Actâ€, que permite ao exército federal participar da luta antidrogas através da modificação de uma lei de 1878 que impedia aos militares intervirem em questões civis. Em abril de 1986 é instituÃda a “National Security Decision Directiveâ€, que declara o tráfico de drogas uma ameaça “letal†para a segurança nacional dos Estados Unidos, atualizando a doutrina de segurança nacional dos tempos de Kennedy. A partir de então, ganha força o discurso que, ao imbricar narcotráfico e terrorismo, passa a justificar as ações de contra-insurgência, sobretudo na América Latina, por conta do suposto combate ao também suposto “narcoterrorismoâ€.
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Ao final de 1986, Time e Newsweek tinham lançado cinco edições cada uma com drogas ilÃcitas na capa. Mas havia de fato um problema tão grande com crack permeando a sociedade estudanidense quanto mÃdia e polÃticos faziam parecer? Dominic Streatfield aponta, com farta base documental, que não.
Professor de Universidade da Califónia (UCLA), Ron Siegel pesquisava o uso de “freebaseâ€, cocaÃna em sua forma fumável, desde o final da década de 1970, e afirmou a Streatfield que o que a partir de meados dos anos 1980 passou a ser chamado de “crack†não se tratava de nenhuma novidade. Não só a cocaÃna era consumida há cerca de um século no paÃs como também sua versão fumada era há muito conhecida, mesmo que com outros nomes.
E mais. Mesmo a DEA (agência estadunidense de combate à s drogas), que no inÃcio estimulou, e muito, as notÃcias alarmantes em torno de uma suposta epidemia de crack, passou a se preocupar com o papel que a mÃdia estava cumprindo em relação ao tema, temendo que ao invés de informar ela estivesse na verdade estimulando mitos e curiosidade em torno da substância. É o que declarou o agente aposentado Robert O’Leary a uma reportagem da Newsweek: “Estamos muito preocupados com um mercado sendo desenvolvido por causa de toda essa publicidade. Nós sentimos que isso está sendo acelerado pelo furor da mÃdiaâ€.
Se de fato existia crack sendo consumido nos EUA, a extensão do problema estava longe dos diagnósticos alarmantes. Na verdade, fora de certas regiões de Miami, Los Angeles e Nova Iorque não existia consumo algum de crack, aponta Streatfield. “Ninguém queria acreditar na verdade: que crack era simplesmente cocaÃna normal que podia ser fumada, que já estava por ali há pelo menos uma década. A história continuou crescendoâ€, aponta o jornalista.
A partir de então, “muitos dos estereótipos que foram aplicados à cocaÃna quando ela chegou aos Estados Unidos nos anos 1880 foram reaplicados ao crack nos anos 1980â€, prossegue Streatfield. Crianças estavam ficando viciadas. Não existia uso recreativo: experimentou, viciou. Seu consumo leva ao crime, à violência e à miséria. É uma droga de negros e imigrantes.
Segundo um estudo chamado Cracked Coverage, escrito por Reeves e Campbell, as agências envolvidas no controle de narcóticos tinham grande “interesse em manter um permanente estado de urgência, inclusive de histeria, em relação à cocaÃnaâ€, a fim de angariarem mais verbas e poder polÃticos para seus departamentos. Já os governantes tinham nessa histeria uma importante arma de controle social e também de sensibilização passional de eleitores. Por outro lado, como apontado anteriormente, os veÃculos de imprensa perceberam que a soma pânico + drogas era certeira para aumentar as vendas: a edição da Newsweek que trazia como chamada de capa a reportagem “Kids and cocaine: a new epidemic strikes middle America†[Crianças e cocaÃna: uma nova epidemia atinge a América], por exemplo, vendeu 15% a mais que a média daquele ano.   Â
Enquanto isso, no ano de 1985 foram relatadas 1.092 mortes associadas a consumo de cocaÃna nos Estados Unidos, sendo “a vasta maioria†sem qualquer relação com a ingestão dela na forma fumada,como ressalta Streatfield. Por outro lado, segundo dados de 1986, para cada morte relacionada à cocaÃna ocorriam outras 100 por conta de álcool e 300 por tabaco, e no caso dessas substâncias não há os problemas relativos a incertezas sobre a pureza do que é ingerido, como no caso da cocaÃna ilegal.
Também em 1985, antes do crack atingir com força as manchetes de todo os EUA, uma pesquisa indicava que apenas 1% dos estadunidenses consideravam “drogas†um problema importante para a nação. No ano seguinte, ano eleitoral, as “drogas†foram colocadas como o problema número um em pesquisa semelhante, segundo Streatfield. Já as palavras de pessoas como o professor Bruce Johnson, do Instituto Nacional de Desenvolvimento e Pesquisa (NDRI), de Nova Iorque, que apontou em 1995 que “a violência associada à cultura do crack nos centros das grandes cidades não é causada por efeitos farmacológicos mas sim pela violência sistemática associada ao comércio de drogasâ€, permaneciam longe de serem ouvidas.
E como tragédia nunca é demais, em 1990 o irmão mais novo de Len Bias, James Stanley Bias III, conhecido como Jay Bias, também ele uma promessa no basquetebol, foi assassinado a tiros aos vinte anos em uma briga no estacionamento de um shopping Center.
Em 2009 a TV ESPN lançou o documentário Without Bias, a respeito da vida de Len Bias, que pode ser visto na Ãntegra abaixo (infelizmente sem legendas), logo depois de um vÃdeo com lances da carreira dele durante a universidade.