Por Júlio Delmano, no site BRCine
A história é real. Pai encontra cigarro de maconha em meio a roupas do filho de 17 anos e o interna em uma instituição psiquiátrica. Sem conversa, sem consentimento. E só não é sem resultado por eles existirem e serem catastróficos: tortura, humilhação, autoritarismo, medicalização, exclusão social, gente enriquecendo e engordando às custas do sofrimento alheio.
Essa é a história do curitibano Austregélsio Carrano, autor do livro O Canto dos Malditos, que inspirou o pesado e indispensável Bicho de 7 de Cabeças, lançado em 2001 e dirigido por LaÃs Bodanzky com roteiro de Luiz Bolognesi, diretor da animação engajada Uma História de Amor e Fúria. Além da trilha sonora excelente, baseada sobretudo em canções de Arnaldo Antunes, destacam-se também as atuações marcantes de Rodrigo Santoro, em seu primeiro longa-metragem, Othon Bastos, Gero Camilo, Cássia Kiss, Lineu Dias e Marcos Cesana – estes últimos falecidos em 2012 e 2010, respectivamente.
A história é real e se passou nos anos 1970. Não por coincidência a mais dura lei de drogas que o Brasil já teve é de 1968, perÃodo mais autoritário de nossa história. O preconceito e a violência da guerra à s drogas combinam perfeitamente com o totalitarismo que esta mentalidade bélica de se lidar com questões sociais representa. Desinformados e assustados diante do fantasma da “drogaâ€, não passa pela cabeça dos pais ouvir seus filhos, entender qual tipo de consumo eles têm, ver se há mesmo um problema. Melhor se ajoelhar diante do saber médico, mesmo que este seja em verdade apenas exercÃcio e busca de poder.
Sem nem ser examinado, Neto (Santoro) já é medicado, dopado, enfraquecido, controlado. Quando reclama disso em uma visita, “estão me entupindo de droga, paiâ€, o guardião dos bons costumes se enerva: “Droga não! É re-mé-dio! Droga é o que você tomava lá fora!â€. Ah, então tá. Enquanto os pacientes perambulam como zumbis por um pátio sujo, não por conta de suas supostas dependências em drogas “de fora†mas pelas drogas tomadas lá dentro, o médico os observa da janela, tomando também suas cápsulas e seu whisky.
A história desses “chiqueiros psiquiátricosâ€, como bem descrevia Carrano, é real e já bastante conhecida hoje em dia. O movimento conhecido como Reforma Antimanicomial conseguiu muitas vitórias desde então, fechando manicômios, combatendo eletrochoques e afins e aprovando a lei 10.216 de 2001, que estabelece os direitos das pessoas com transtornos mentais.
Em depoimento incluÃdo no livro de Carrano, até o pai faz um mea-culpa: “Hoje eu sei que essas instituições psiquiátricas não passam de verdadeiras ratoeiras, que usam nossos filhos como cobaias. Mas infelizmente, naquela época, a nossa ignorância sobre os chamados tratamentos psiquiátricos era totalâ€.
No entanto, o problema está longe de estar resolvido, como as operações de internação compulsória de supostos dependentes de crack ao redor do paÃs há muito têm demonstrado. Para piorar, um médico e, por infeliz coincidência, também deputado, o peemedebista Osmar Terra (vulgo Osmar Trevas), levou à Câmara em 2010 um Projeto de Lei que pretende piorar a atual Lei de Drogas, abrindo caminho não só para aumento de penas como para novas e menos criteriosas internações de marginalizados e vulneráveis sob a justificativa do combate a (qualquer tipo de) uso de (algumas) drogas.
Por incrÃvel que pareça, tal projeto não foi visto pela sociedade e pelos parlamentares com o desdém que merece. Pelo contrário: foi colocado em regime de urgência e está para ser aprovado, recebendo inclusive apoio do governo federal, liderado pela também tenebrosa Gleisi Hoffman, ministra da Casa Civil e assumida lobista das clÃnicas de internação. Aliás, sabem um outro cidadão muito próximo desse tipo de pensamento? O glorioso Marcos Feliciano, ele mesmo dono de uma clÃnica.
O Conselho Federal de Psicologia realizou recentemente, em conjunto com o Ministério Público, uma inspeção em 64 Comunidades Terapêuticas para usuários de drogas. Foram constatadas violações dos direitos humanos em TODAS elas. Violação de correspondência, exigência inconstitucional de exames, revista vexatória em parentes, trabalhos forçados, religião forçada, torturas, a lista é de absurdos é tão extensa quanto pouco coibida.
A história permanece real, só um pouco repaginada. O poder médico segue ocupando o mesmo lugar, lucrando com o sofrimento, a pobreza e a desinformação alheia, mas o fundamentalismo religioso ocupa hoje o local que durante a ditadura era dos militares. Isso implica mudanças de forma, evidente, mas não de conteúdo. Seguimos demonizando algumas drogas enquanto veneramos outras e enfurnando nossos pobres em depósitos humanos. “Somos currados em todos os direitos, pela omissão social e desleixos profissionais dos que nos usam como cobaias humanas em suas prisões intituladas instituições psiquiátricas. Tiram-nos a razão, transformam-nos em bestas humanas, não sabemos mais quem somos e o que somos, na forma de uma dupla prisão: fÃsica e quÃmicaâ€, apontava um tristemente atual Carrano.
A história é real, caralho, até quando vamos ficar assistindo-a como se fosse só um filme de terror?