por Marcio Sotelo e Patrick Mariano, especial para o ViomundoÂ
Outubro de 1992, cidade de São Paulo [1]
“Houve, sim, uma negociação, que não teve muito sucesso. A tropa de choque invadiu e começou então esse episódio e o massacre. Eu me encontrava no quinto andar e me lembrei de uma carta que uma senhora tinha me trazido com o Salmo 91. Entrei na minha cela, na 504E e naquele momento já tinham diversas pessoas ajoelhadas, clamando por seu Deusâ€, descreveu.
Logo depois, contou que um policial entrou na cela e pediu para que todos tirassem a roupa e saÃssem nus, para fora.
“Descemos até o primeiro andar e todos tinham ficado sentados ao chão, com a cabeça entre as pernas, cobrindo a cabeça com os braços, e ali, por volta de umas 3 horas [da manhã], os policiais mandaram que os detentos retornassem para suas celasâ€.
Quando ele se dirigia para a cela, um policial o chamou com um toque no ombro. “Quando me virei e achei que ia tirar a minha vida, ele me pediu para ajudar a carregar alguns cadáveres. Eu ajudei a carregar, aproximadamente, 35 [corpos]â€.
Abril de 1996, rodovia estadual, municÃpio de Eldorado dos Carajás/PA [2]:
“A polÃcia começou a se preparar, como se fosse para um combate. Corriam com as armas, mostravam, apontavam se ajoelhavam e nós olhando. Fechamos todas as portas e ficamos olhando pelas brechas†(Miguel Pontes, 42 anos, tiro na perna)
“De acordo com eles mesmos era dar tiro em vivo ou morto. Quando ‘se’ demos conta, era bala pra cima de bala e nego caindo morto†(Meirton Germiniano, 29 anos, tiros na perna)
São Paulo, junho de 2013 [3]:
Uma viatura parou diante de nós. Policiais apontaram a arma e ordenaram: “corram que vamos atirarâ€. Corremos e eles cumpriram a promessa. Atingiram uma amiga. Nos desesperamos. As ruas estavam desertas, não havia onde entrar. Estávamos sozinhos. Humilhados e indignados pela arbitrariedade, pela violência, pela covardia, gritamos por socorro.
O primeiro fato resultou em 111 mortes de civis por agentes do estado. O segundo, em 19 e, o terceiro, em muitos feridos. O que eles têm em comum, numa primeira e superficial análise? A violência policial. Qual a informação latente que quase nos escapa: a decisão polÃtica que determina a ação repressiva.
Nos três lamentáveis episódios existiu um comando deliberado da autoridade polÃtica máxima do Estado para que a PM agisse com rigor e força.
As polÃcias militares estaduais são treinadas, desde sempre, sob a lógica do inimigo interno. Essa ideologia, todos sabem, se moldou e se fortaleceu na ditadura militar com a cartilha da segurança nacional e da manutenção da ordem pública.
Ou seja, partindo da premissa que a sociedade vive em eterna e plena harmonia, todas as ocorrências que causem ruptura a essa lógica, devem ser extirpadas do meio social. Assim, em um paÃs desigual e injusto como nosso a regra é a canção de Gil: “não me iludo, tudo permanecerá do jeito que tem sidoâ€.
Mesmo após a Constituição da República de 1988, esse pensamento, infelizmente, ainda constitui a base de estudos das escolas de formação das polÃcias e das forças armadas, estando presente em diversas leis e atos internos das corporações.
Não se fez uma releitura democrática dessa base ideológica. Daà que cada PolÃcia Militar se constitui como força polÃtica poderosÃssima nas mãos dos Governadores, que as usam ao seu bel prazer.
A ordem para a ação policial nesses três casos partiu de um Palácio. Mas, outro componente deve ser descoberto para revelarmos as nódoas desses fatos: a decisão polÃtica contou com o apoio da grande mÃdia. A mesma mÃdia que cria heróis como o Capitão Nascimento e lota as salas de cinema fazendo apologia da tortura.
Este Viomundo, bem demonstrou isso ao trazer o editorial da Folha de São Paulo clamando por ação enérgica da PM contra os estudantes. O clamor do jornal resultou na batalha trágica da Consolação. A ideologia da repressão à s manifestações não foi superada pelos novos ares do regime democrático e ainda compõe o pensamento não só das forças policiais, como também, da “elite pensante†brasileira que comanda as redações dos grandes veÃculos de comunicação de massa.
Para entender o pensamento com que são formados nossos policiais, basta uma rápida passada de olhos no youtube. Escolhemos um vÃdeo [4] que demonstra um pouco desse pensamento ao enaltecer a ação da Cavalaria da PMDF contra trabalhadores rurais sem terra, em frente ao Congresso Nacional.
É preciso, portanto, (re) discutir o papel da polÃcia na Democracia e sua formação para se evitar que fatos como esses se repitam. Não se desconsidera que grande parte desses policiais não gostaria de reprimir manifestantes, ganham pouco e são desvalorizados pelo Poder Público, sendo compelidos, quer pela formação, quer pelas desastrosas decisões polÃticas que os orientam, a agirem dessa forma.
Ao final, quem deu a ordem nunca é punido. No recente julgamento pelo massacre dos 111 do Carandiru, no banco dos réus estavam 26 policiais militares, dos quais 23 foram condenados. NÃtido neste caso que decisões polÃticas (decorrentes da própria estrutura do Estado brasileiro) ignoraram a distinção – inafastável no Direito Penal Internacional e no Direito Internacional dos Direitos Humanos e evidentemente possÃvel em nosso ordenamento – entre mandantes ou responsáveis polÃticos e perpetradores. Um mandato, um gabinete oficial e um telefone significou muitas vezes neste paÃs licença para matar.
Refletir sobre essas questões é tarefa imperiosa de todos que buscam a efetivação de uma sociedade mais justa, fraterna e solidária. Exigir dos governos – estadual e federal – que pautem essa questão e que abram o diálogo com os movimentos sociais é o primeiro e necessário passo. Existem exemplos paÃs afora, como a experiência da Policia Militar do Estado de Sergipe na negociação de ordens de reintegração de posse, que devem ser estudados e seguidos. [5]
Enquanto se louvar o Capitão Nascimento em milhares de salas de cinema e enquanto não se debater essa questão, fatos como esse se repetirão Brasil afora.
O regime democrático, ainda mais em um paÃs injusto socialmente como o nosso, não só deve conviver bem com o conflito, como necessita dele para avançar ainda mais em sua consolidação. A lógica da militarização da polÃcia obedecia à doutrina da segurança nacional, que tinha raÃzes na ideia de que os inimigos seriam “internosâ€. A questão, portanto, é: ainda hoje, trata-se ainda conflitos sociais como se os seus protagonistas fossem inimigos do Estado ou como cidadãos que tem o direito elementar de reivindicar, inclusive, ou principalmente, nas ruas?
Sufocar, através da repressão, os gritos da sociedade por transformação é prática de regimes autoritários, de amarga lembrança de todos nós.
O momento de pautar essa questão é agora. Assim, será possÃvel completar a canção de Gilberto Gil, citada há pouco, para que se possa continuar a (e nos) transformar “as velhas formas do viverâ€.
Marcio Sotelo Felippe é jurista e ex-Procurador Geral do Estado de São Paulo. Patrick Mariano Gomes é mestre em Direito, Estado e Constituição pela Universidade de BrasÃlia e integrante da Rede Nacional de Advogados e Advogadas Populares – RENAP.
[1] http://ultimosegundo.ig.com.br/brasil/sp/2012-10-01/sou-um-sobrevivente-do-carandiru-relata-ex-detento.html
[2] http://www.radioagencianp.com.br/node/1101
[3] http://blogdeumsem-mdia.blogspot.com.br/2013/06/movimento-passe-livre-relato-coletivo.html
[4] http://www.youtube.com/watch?v=c0qd5rKxyf8
[5] http://www.youtube.com/watch?v=GDh0a7LBBpY