Você está na sala assistindo à TV. Ou está no restaurante, com seus amigos. Ou está voltando para casa depois de um dia de trabalho. Você ouve tiros, você ouve bombas, você ouve gritos. Você olha e vê a polÃcia militar ocupando o seu bairro, a sua rua. É difÃcil enxergar, por causa das bombas de gás lacrimogêneo, o que aumenta o seu medo. Logo, você está sem luz, porque a polÃcia atirou nos transformadores. O garçom que o atendia cai morto com uma bala na cabeça. O adolescente que você conhece desde pequeno cai morto. Um motorista está dirigindo a sua van e cai ferido por um tiro. Agora você está aterrorizado. Os gritos soam cada vez mais perto e você ouve a porta da casa do seu vizinho ser arrombada por policiais, que quebram tudo, gritam com ele e com sua famÃlia. Em seguida você vê os policiais saÃrem arrastando um saco preto. E sabe que é o seu vizinho dentro dele. Por quê? Você não pergunta o porquê, do contrário será o próximo a ser esculachado, a ter todos os seus bens, duramente conquistados com trabalho, destruÃdos. Se você está em casa, não pode sair. Se você está na rua, não pode entrar.
O que você faz?
Nada.
Você não faz nada porque não aconteceu com você. Você não faz nada especialmente porque se sente a salvo, porque sabe que não apenas não aconteceu, como não acontecerá com você. Não aconteceu e não acontecerá no seu bairro. Isso só acontece na favela, com os outros, aqueles que trabalham para você em serviços mal remunerados.
Aconteceu na Nova Holanda, no Complexo da Maré, no Rio de Janeiro, na segunda-feira passada (24/6). Com a justificativa de que pessoas se aproveitavam da manifestação que ocorria na Avenida Brasil – o nome sempre tão simbólico – para fazer arrastão, policiais ocuparam a favela. Um sargento do BOPE morreu e a vingança da polÃcia começou, atravessou a madrugada e boa parte da terça-feira. Saldo final: 10 mortos, entre eles “três moradores inocentesâ€.
Os brasileiros foram às ruas, algo de profundo mudou nas últimas semanas, tão profundo que levaremos muito tempo para compreender. Mas algo de ainda mais profundo não mudou. E, se esse algo ainda mais profundo não mudar, nenhuma outra mudança terá o peso de uma transformação, porque nenhuma terá sido capaz de superar o fosso de uma sociedade desigual. A desigualdade que se perpetua no concreto da vida cotidiana começa e persiste na cabeça de cada um.
Quando a polÃcia paulista reprimiu com violência os manifestantes de 13 de junho, provocando uma ampliação dos movimentos de protesto não só em São Paulo, mas em todo o Brasil, houve um choque da classe média porque, dessa vez, muitos daqueles que foram atingidos por balas de borracha e bombas de gás lacrimogêneo eram seus filhos, irmãos e amigos. Como era possÃvel que isso acontecesse?
Era possÃvel porque a polÃcia militar – e não só a de São Paulo, como se sabe e tem se provado a cada manifestação, nas diversas cidades – agiu no centro com quase a mesma truculência com que cotidianamente age nas favelas e nas periferias. Quase com a mesma truculência, porque algumas vozes se levantaram para lembrar que nas margens as balas são de chumbo. Balas de borracha, como foi dito em tom irônico, seria um “upgradeâ€. A polÃcia fez, portanto, o que está acostumada a fazer no dia a dia das periferias e favelas, o que é ensinada e autorizada a fazer. E muitos policiais devem ter se surpreendido com a reação da opinião pública, já que agem dessa maneira há tanto tempo e as reclamações em geral ficavam, até então, limitadas à s mesmas organizações de direitos humanos de sempre.
E então veio a Maré. E, em vez de balas de borracha, as balas eram de chumbo. Em vez de feridos, houve mortos. E, ainda que o massacre tenha tido repercussão, especialmente no Rio de Janeiro, ela foi muito menor e menos abrangente do que quando a violência foi usada no centro de qualquer cidade. Por quê? Seriam os brasileiros da Maré ou de outras favelas menos brasileiros do que os outros? Seriam os humanos da Maré ou de outras periferias menos humanos do que os outros? Sangrariam e doeriam os moradores da Maré menos do que os outros?
É preciso que a classe média se olhe no espelho, se existe mesmo o desejo real de mudança. É preciso que se olhe no espelho para encarar sua alma deformada. E perceber que essa polÃcia reflete pelo menos uma de suas faces. Parece óbvio, do contrário essa polÃcia não seguiria existindo e agindo impunemente, mas à s vezes o óbvio é esquecido em nome da conveniência.
É fácil renegar a polÃcia militar como algo que não nos diz respeito, como sempre fazemos com as monstruosidades que nos envergonham. Sem precisar assumir que essa polÃcia existe como resultado de uma forma de ver a sociedade e se posicionar nela – uma forma que perpetua a desigualdade, dividindo o paÃs entre aqueles que são cidadãos e têm direitos e aqueles que não têm nenhum direito porque, mesmo que trabalhem dura e honestamente, são criminalizados por serem pobres.
No momento em que os mortos da Maré incomodam menos que os feridos da Paulista ou de outros lugares do Brasil, se justifica e legitima a violência da polÃcia. Se justifica e legitima de várias maneiras – e também por aqueles que sentem menos a violência da Maré do que a da Paulista, apesar de ela ser numa proporção muito maior, a começar pela diferença das balas. Se justifica e se legitima e se perpetua porque, ainda que não confessado, mas claramente expressado, vive-se como se os mais pobres, os que moram em favelas e periferias, pudessem ter suas casas invadidas, seus bens destruÃdos e suas vidas extintas.
Se fosse você ou eu na Maré, reconhecerÃamos os rostos dos que tombam e estarÃamos lá, aterrorizados com a possibilidade de sermos os próximos a virar estatÃstica. O garçom que caiu morto com um tiro na cabeça é Eraldo Santos da Silva, 35 anos. Quem estava no restaurante contou que os policiais do BOPE atiraram no transformador para o local ficar à s escuras e então mudar a cena do crime, retirando as cápsulas do chão. O garoto de 16 anos que foi assassinado se chama Jonatha Farias da Silva. A polÃcia disse que ele estava com uma arma na mão, mas várias pessoas que o conhecem desde criança afirmam ser impossÃvel. Jonatha é descrito como um menino tÃmido e muito sozinho que perdeu a mãe de tuberculose aos 11 anos e vivia com um irmão mais velho num quarto de quatro metros quadrados. Engraxava sapatos e vendia biscoitos nos congestionamentos da Linha Vermelha para sobreviver, enquanto sonhava com ser mecânico. O motorista ferido quando dirigia a van alvejada por tiros é Cláudio Duarte Rodrigues, de 41 anos. Foi levado ao hospital por moradores, mas despachado para casa com a bala ainda alojada no glúteo. Só depois uma ONG obteve a promessa de uma ambulância para buscá-lo. Você ainda poderia ser a empregada doméstica que ouviu os policiais arrombarem a porta da casa do seu vizinho, ouviu seus gritos – “Me larga! Socorro!†– e o viu ser retirado de lá, dentro de um saco preto.
Mas isso não acontece com você, nem com seus filhos. Nem comigo. Mas, ainda que não aconteça, como é possÃvel sentirmos menos? Ou mesmo não sentir? Ou ainda viver como se isso fosse normal? Ou olhar distraidamente para a notÃcia no jornal e pensar: “mais uma chacina na favelaâ€?
Em que nos transformamos ao sentir menos a morte de uns do que a de outros, a dor de uns do que a de outros, mesmo quando olhamos para uns e outros apenas pela TV?
O que torna isso possÃvel?
É preciso parar e pensar. Porque esses, que assim morrem, só morrem porque parte da sociedade brasileira sente menos a sua morte. É cúmplice não apenas por omissão, mas por esse não sentir que se repete distraÃdo no cotidiano. Por esse não sentir que não surpreende ninguém ao redor, à s vezes nem vira conversa. Essa polÃcia que mata nos reflete, por mais que recusemos essa imagem no espelho.
São vários os discursos que se imiscuem na vida cotidiana e penetram em nossos corações e mentes, justificando, legitimando e perpetuando a ideia de que a vida de uns vale menos do que a de outros, de que a vida dos mesmos de sempre vale menos do que a dos mesmos de sempre. Um desses discursos é a afirmação, que nesse caso foi assumida e amplificada por parte da imprensa, de que a polÃcia teria admitido que “três moradores mortos eram inocentesâ€. A frase tem tom de denúncia, ao afirmar que a polÃcia reconheceu a morte de “inocentes†na Maré. A declaração expressa, de fato, a ideia de que ao menos esses três não deveriam ter sido assassinados. Por oposição, cabe a pergunta: e os outros deveriam?
Essa frase diz ainda mais: se “três são inocentesâ€, aceita-se automaticamente e sem maior investigação que os demais seriam suspeitos de tráfico e outros crimes – e destes, quase nada ou nada é contado. É nesse ponto que se oculta algo ainda pior contido nesse discurso, que é a aceitação da pena de morte de suspeitos. Ou seja, os supostamente “não inocentesâ€, os supostamente “bandidosâ€, “traficantesâ€, “vândalos†poderiam, então, ser mortos? É isso o que se diz nas entrelinhas. Mas não seriam todos “inocentesâ€, até julgamento em contrário, dentro do ritual jurÃdico previsto pelo Estado de direito? Sem contar que a lei brasileira não prevê a pena de morte de julgados e condenados por crimes, nem sequer os hediondos. Mas o Estado, com o aval de uma parte significativa da sociedade, executa suspeitos.
A aceitação dessa quebra cotidiana da lei pelo Estado está presente na narrativa dos acontecimentos – e a imprensa tem um papel importante na reprodução desse discurso: “três deles eram inocentesâ€, “morreram em confrontoâ€, “morreu ao resistir à prisãoâ€, “troca de tiros†são algumas das expressões entranhadas nos nossos dias como se tudo explicassem. Como se isso fosse corriqueiro – e não monstruoso. Mesmo para a morte de “inocentesâ€, fora as mesmas vozes dissonantes de sempre, se atribui expressões como “efeito colateralâ€. E parece ter sido fácil para a classe média aceitar que o “efeito colateral†é a morte dos filhos, dos irmãos, dos pais e das mães dos pobres.
Em um artigo no site do Observatório de Favelas, que vale a pena ser lido (aqui), Eliana Sousa Silva, diretora da Redes da Maré e da Divisão de Integração Universidade Comunidade PR-5/UFRJ, faz uma análise da frase dita na TV pelo consultor de segurança pública Rodrigo Pimentel: “Fuzil deve ser utilizado em guerra, em operações policiais em comunidades e favelas. Não é uma arma para se utilizar em área urbanaâ€. Ele criticava, em 18/6, a imagem de um policial militar atirando para o alto com uma metralhadora, perto de manifestantes que praticavam ações violentas em frente à Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro. Como afirma Eliana, parece um comentário “natural, racional e equilibradoâ€, mas, de fato, o que ele está dizendo? Que na favela pode. E, fora uma ou outra voz, como a dela, não causa nenhuma surpresa. Nem mesmo se estranha que na favela pode, nos protestos do centro não.
A palavra “confronto†encobre forças desiguais – e o que tem sido chamado de “confronto†seguidamente não é o que diz ser. Mesmo em confrontos de fato trata-se o que é desigual como se fosse igual, também simbolicamente. Como se uma das forças em confronto não encarnasse o Estado e tivesse, portanto, de respeitar a lei e seguir parâmetros rÃgidos de conduta – e não igualar-se a quem supostamente está no outro lado. Como se a polÃcia, como aconteceu na Maré, tivesse autorização para se vingar pela morte – lamentável – do sargento do BOPE, entrando na favela e arrebentando. E o sargento do BOPE Ednelson Jerônimo dos Santos Silva, 42 anos, é também uma vÃtima desse sistema avalizado por uma parte significativa da sociedade dita “de bemâ€.
A questão é que, se a polÃcia não tem autorização de direito, tem de fato. E tem porque a classe média sente menos a dor dos pobres. Tem autorização porque uma parcela da sociedade primeiro criminaliza os pobres – e, depois, naturaliza a sua morte. É por isso que a polÃcia faz o que faz – porque pode. E pode porque permitimos. A autorização não é dos suspeitos de sempre, apenas, mas de parte considerável dessa mesma classe média que vai à s ruas gritar pelo fim da corrupção. Mas haverá corrupção maior, esta de alma, do que sofrer menos pelos mortos da Maré do que pelos feridos da Paulista?
A autorização para a morte dos pobres é de cada um que sente mais as balas de borracha da Paulista do que as balas de chumbo da Maré. Sentir, o verbo que precede a ação – ou a anula.
“Estado que mata, nunca mais!†é o chamado de um ato ecumênico marcado para as 15h desta terça-feira (2/7), com concentração na passarela 9 da Avenida Brasil, pelos moradores da Maré. A manifestação, anunciada como “sem violência e pacÃficaâ€, pretende lembrar os 10 mortos de 24 e 25 de junho, inclusive o sargento do BOPE. “Não é mais aceitável a polÃtica militarizada da operação do estado nos territórios populares, como se esses locais fossem moradas de pessoas sem direitos. Responsabilizamos o governador do Estado e o secretário de Segurança Pública pelas ações policiais nas favelas. Exigimos um pedido de desculpas pelo massacre e o compromisso com o fim das incursões policiais nas favelas cariocas, sustentadas no uso do Caveirão e de armas de guerraâ€, diz a chamada na internet.
Este ato poderá se tornar um momento de inflexão nos protestos que atravessam o paÃs. Saberemos então se os cidadãos das favelas estarão sozinhos, como sempre, ou acompanhados pelas mesmas organizações de direitos humanos de sempre – ou se o Brasil está, de fato, disposto a começar a curar sua abissal e histórica cisão.
(Eliane Brum escreve às segundas-feiras)