“Com 16 anos, eu comecei como aviãozinho, fui crescendo de cargo, virei traficante, depois gerente, depois conquistei um espaço só meu, virei dono de uma boca.”
A ascensão de T., hoje com 18 anos, na carreira de tráfico de entorpecentes foi rápida e curta. Há sete meses, está internado na Fundação Casa (antiga Febem), depois de ter sido detido por policiais.
T. e outros três adolescentes apreendidos nas unidades Casa Osasco 1 e 2, em São Paulo, relatam ser fácil conseguir um espaço na comercialização de drogas ilÃcitas.
“Sempre começa com alguém que te chama. Só basta você querer. Se você falar não, é não”, diz F., 15.
O número de jovens que, como T. e F., não conseguiram dizer não ao tráfico de drogas, apesar da expansão do emprego formal e do aumento da escolaridade nos últimos anos, explodiu.
Eles representavam 7,5% dos adolescentes que cumpriam medida de restrição de liberdade em 2002, segundo a Secretaria de Direitos Humanos (SDH).
Em uma década, esse percentual mais do que triplicou, atingindo 26,6% em 2011. A expansão ocorreu em 22 das 27 unidades da federação.
Levantamento feito pela Folha mostra que a tendência de expansão continua. Entre 14 Estados que forneceram dados, 10 registraram aumento da incidência de tráfico entre adolescentes infratores.
Editoria de Arte/Folhapress | ||
A causa mais citada por especialistas para o maior número de jovens traficantes é o crescimento do consumo de drogas no paÃs.
“Existe uma grande epidemia de consumo de crack, que você consegue comprar até por R$ 0,50”, diz Joelza Mesquita Andrade Pires, presidente da fundação de atendimento socioeducativo do Rio Grande do Sul.
A dificuldade que os jovens, principalmente os de famÃlias com menor renda, enfrentam para entrar no mercado de trabalho formal também é ressaltada.
A maioria dos adolescentes infratores abandonou os estudos ou apresenta defasagem de série na escola.
“O jovem que tem formação educacional ruim e não consegue colocação no mercado de trabalho é recebido de braços abertos no tráfico”, diz Berenice Gianella, presidente da Fundação Casa. “Os menores são mão de obra farta e barata para o tráfico.”
A fatia de jovens internados por tráfico em 2011 (26,6% do total) era maior que a de adultos presos pelo mesmo motivo (24,4%). Hoje, o tráfico só perde para o roubo entre os delitos que levam à apreensão de adolescentes.
Em anos recentes, cresceram apreensões e internações de jovens por tráfico em 10 de 14 Estados que enviaram dados à Folha.
No Rio de Janeiro, o tráfico respondeu por 44,3% das apreensões de adolescentes no primeiro trimestre deste ano, contra 33,8% em 2010. Nem todos os jovens apreendidos são internados.
“A instalação das UPPs (Unidades de PolÃcia Pacificadoras) afetou a hierarquia do tráfico, abrindo espaço para maior participação dos jovens”, diz Roberto Bassan, subdiretor de ações socioeducativas do Rio.
São Paulo, Paraná, Bahia, Santa Catarina e Pará são exemplos de outros Estados onde a incidência do tráfico entre adolescentes aumentou nos últimos anos.
RESUMO Um quadro na parede expõe as avaliações dos internos da unidade socioeducativa Casa Osasco 1 (SP). Verde é bom, amarelo, regular e vermelho, ruim. D., 17, é o único que obteve cÃrculos prateados, que indicam desempenho ótimo, desde o inÃcio do ano. Com fala mansa e olhar sempre fixo no chão, D., que traficava drogas e roubava, conta porque terminou sendo internado há dois anos: “foi latrocÃnio, senhora”.
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Comecei a fazer violência com 14 anos. Tinha aprendido a dirigir e parado de estudar. Comecei movendo carros roubados de uma rua para a outra. AÃ, comecei a usar a droga e a sair bastante para a balada. No inÃcio, não traficava, não. Eu trabalhava com meu padrasto como ajudante de pedreiro.
Um amigo criado comigo me chamou para roubar carro na [chave] micha. Eu roubava para curtir, para ir para o baile funk de carro. Depois, começamos a roubar carro para vender. Arrumei uma arma de brinquedo, comecei a roubar ônibus. AÃ, conseguimos uma arma de verdade.
Minha famÃlia descobriu em 2010, quando fui preso por furto. Minha mãe começou a me dar conselho, mas eu não ouvi.
Um dia, quando fomos para o baile funk, a polÃcia mandou parar e não paramos. O carro bateu. Eu corri para uma rua, meu amigo correu para outra e aà mataram meu amigo, atiraram nele. Eu fugi. Depois disso, fiquei uns tempos parado, umas duas semanas. AÃ, depois comecei a andar com umas pessoas e comecei tudo de novo.
Fui preso e liberado por furto de novo. Depois fui para a Bahia ficar com a minha avó. Fiquei sete meses e pedi para minha mãe para voltar, achava que tinha mudado.
Voltando, fiquei uma semana sossegado e aà começou tudo de novo. Estava indo comprar pão e um amigo me chamou. Foi quando comecei a traficar. Vendia crack, cocaÃna e maconha.
O dono da boca trazia e deixava um pouco na mão de cada um e na sexta-feira ele ia buscar o dinheiro. De R$ 100 que vendia, era R$ 30 meu, R$ 60 do dono e eu dava
R$ 10 para quem me ajudava.
Zé Carlos Barretta/Folhapress | ||
Jovem de 17 anos é interno da Fundação Cas desde o inÃcio da adolesência |
VIOLÊNCIA
Tinha violência quando alguém não pagava. Eu bati umas duas vezes, mas não gosto, não. A gente era obrigado. Quem não está com os traficantes está contra, né? Se não quiser, é só sair do tráfico. Tem que estar disposto para tudo lá.
Fui preso de novo e liberado por assalto, roubei um carro. Ia ficar com ele para mim. Era um Corsa Classic.
Depois de umas três semanas, eu vim para cá. Fui roubar uma moto, aà entrei na garagem do dono da moto. AÃ, ele reagiu e a arma disparou no meu braço. Não sei se fui eu que atirei ou se disparou, eu estava meio assustado. Quando ele se afastou de mim, eu saà correndo.
Só fiquei sabendo que ele tinha morrido quando eu estava no hospital. Era um cara meio velho já, tinha uns 40 anos. Acho que ele tinha uma filha de uns 17 anos.
Comecei a pensar que não era culpa minha porque ele tinha reagido. AÃ, depois que eu vim para cá, foram conversando comigo e eu vi que, se não tivesse ido lá, não teria acontecido aquilo.
Acho que a gente se envolve por causa de amizade mesmo. Nunca me faltou nada. Meu pai faleceu quando eu tinha quatro anos. Mesmo assim minha mãe me criou bem. Depois ela arrumou o marido dela de hoje. Ele ajudou ela e me criou bem.
O problema é amizade e querer curtir com coisa fácil. Eu só pensava em curtir, em namorada. Acho que nessa parte tem também umas meninas que influenciam bastante. Você pensa que a menina quer ficar com você por causa do carro. Você pensa que todo mundo está com você porque você é o tal.
Estou pensando em passar uns tempos com minha avó quando sair daqui. Não quero voltar para onde eu morava e ver tudo do mesmo jeito. Lá não é muito bom. Estou aqui há dois anos. Se voltar a fazer crime e for para o CDP [Centro de Detenção Provisória, para onde são levados adultos suspeitos de crimes], vou ficar ainda mais tempo.
A educação, indispensável para conseguir uma colocação no mercado de trabalho formal, não tem valor para as carreiras no tráfico de drogas.
A descoberta foi feita pelos acadêmicos Leandro Carvalho (University of Southern California) e Rodrigo Soares (FGV-SP), que divulgaram recentemente um estudo sobre o caminho dos jovens no tráfico nas favelas cariocas.
“Era de se esperar que jovens com melhor nÃvel educacional tivessem maior facilidade de ascender no tráfico por conseguir fazer contas e até pela capacidade de liderar”, diz Soares.
Mas os fatores que contam para crescer no mercado de drogas ilegais são: experiência, participação em conflitos armados e lealdade. Segundo o estudo, cada ano a mais de trabalho leva a uma remuneração 10% maior para os jovens traficantes.
Os dados analisados por Carvalho e Soares foram levantados pela ONG Observatório de Favelas em meados da década passada.
Segundo os economistas, naquele momento, o ganho dos jovens traficantes era em média 23% maior do que o salário de outros adolescentes moradores de favelas e empregados em atividades lÃcitas.
CONSUMO
Quatro jovens internados na Fundação Casa (SP) citam o desejo de comprar bens, como roupas e aparelhos eletrônicos, como principal motivação para entrar no tráfico.
“Quero ver chegar lá num baile de chinelo e de bermuda e catar alguém. Se tiver mais elegante, com umas roupas da hora, é mais fácil”, diz F., 15.
G., 15, afirma que os ganhos do tráfico (R$ 600 por mês) também ajudavam a sustentar seu vÃcio em maconha.
Eutácio Borges, presidente da fundação de atendimento socioeducativo de Pernambuco, diz que jovens infratores não percebem que a vantagem do tráfico não compensa.
“Um bom carpinteiro em Pernambuco tira até R$ 2.800 por mês, sem correr o risco de enfrentar o adversário traficante ou ir para uma unidade de internação.”
Enfrentamentos violentos fazem parte da rotina dos adolescentes no tráfico.
T., 18, chegou a ser apreendido por agressão. “Uma vez discuti com um cara que não pagou. Rachei o pote dele [a cabeça] com pedra e pau.”
O jovem conta que foi apreendido oito vezes, quatro ou cinco delas por tráfico. Apenas na última foi internado.
A história contrasta com a de G., que conta ter sido internado na segunda apreensão por vender drogas.
O Superior Tribunal de Justiça determinou que menores sejam internados por tráfico apenas na terceira apreensão.
Mas, segundo representantes das unidades socioeducativas, há juÃzes que têm sido mais rigorosos, contribuindo para o aumento das internações por tráfico.
Ao menos cinco em dez adolescentes detidos por delitos como roubo e tráfico voltam a praticar alguma infração, segundo o CNJ (Conselho Nacional de Justiça).
A dificuldade em conseguir emprego contribui para a alta reincidência. Para reduzir o problema, alguns Estados, como o Rio Grande do Sul, têm tentado aproximar jovens e empresas.
Diogo Santos da Silva, 23, ex-interno da Fase (Fundação de Atendimento Socioeducativo), do Rio Grande do Sul, diz, por exemplo, que “abraçou a chance” quando, em audiência na Justiça, perguntaram se ele gostaria de participar do programa POD Socioeducativo.
No projeto, jovens que saem da internação recebem uma bolsa de ensino profissionalizante.
Diogo fez um curso de padeiro. Há pouco mais de dois anos, trabalha na padaria de um supermercado de Porto Alegre.
“Era a oportunidade de arrumar trabalho, de seguir a vida do jeito que ela tem que ser”, diz ele, que havia sido detido por homicÃdio.
A Fase também tem tentado inserir os jovens infratores no mercado de trabalho por meio do programa “Aprendiz Legal”, que determina que uma fatia das vagas de médias e grandes empresas sejam ocupadas por jovens de 14 a 24 anos.
Falhas no sistema socioeducativo no paÃs também são apontadas como razão da alta reincidência. Em inspeções à s unidades socioeducativas dos diferentes Estados, o CNJ encontrou problemas como superlotação e determinou que uma série de mudanças sejam adotadas.
“Em alguns casos, há uma afronta aos direitos humanos, diz Guilherme Calmon, conselheiro do CNJ.