Em 76% das UPPs no Rio há denúncia contra algum policial
Levantamento da Folha mostra que casos ocorrem em 25 das 33 unidades
Apesar de avanços como a queda de 68% nos homicÃdios de 18 áreas pacificadas, nº de desaparecidos sobe 56%
MARCO ANTÔNIO MARTINSDO RIO
Todos os dias, ao acordar, o primeiro pensamento da dona de casa Edleide Lessa, 52, é: “Por que um policial matou meu filho?”.
O ajudante de pedreiro Jackson Lessa dos Santos, 19, foi baleado na cabeça, em junho do ano passado, quando ia comprar biscoito, no morro do Fogueteiro, centro do Rio. Segundo os policiais, houve um confronto. A mãe nega e argumenta que o filho caminhava pelas vielas acompanhado de uma criança.
“Meu filho foi enterrado como bandido. Por quê? Bandido que trabalha todos os dias? Moramos no morro, mas não somos criminosos.”
O tiro de fuzil foi disparado por um soldado com um ano de polÃcia. Ele integrava a UPP instalada em 2011.
O principal programa da Secretaria de Segurança Pública do Rio já foi implantado em 33 favelas da capital.
Não há dúvidas de que as UPPs trouxeram progressos. Moradores readquiriram o direito de ir e vir pelas ruas de suas comunidades; o tráfico ostensivo desapareceu, assim como a exibição de armamentos pesados –eles ainda existem, mas de forma discreta.
Mas passados cinco anos do inÃcio do projeto, crescem denúncias de que policiais militares lotados nas UPPs se voltaram à s práticas da chamada “velha polÃcia”: são suspeitos de agressões, mortes e desaparecimentos.
Levantamento feito pela Folha a partir de relatos de moradores e documentos das polÃcias Civil e Militar mostra que há denúncias contra a atuação dos agentes em 25 das 33 UPPs (76% delas).
“Há necessidade de rever algumas práticas talvez ainda contaminadas por uma cultura antiga”, afirmou o coronel Frederico Caldas, coordenador das UPPs.
A análise de dados de 18 das UPPs mostra que o número de homicÃdios caiu 68%, mas o de desaparecidos subiu 56% –nas demais, inauguradas há menos tempo, ainda não há dados suficientes para comparação.
São casos como o do pedreiro Amarildo de Souza, 43, desaparecido desde 14 de julho da favela da Rocinha.
“Antes os desaparecimentos não eram relatados porque havia o tráfico de drogas nessas comunidades. E não dá para associar o desaparecimento à morte e nem à polÃcia”, afirma Caldas.
Um ano antes da inauguração da UPP, a Cidade de Deus registrou 18 desaparecidos; um ano depois, em 2010, o total subiu para 49. Em 2011 sumiram 22 pessoas.
Especialistas dizem que o problema não são as UPPs, mas a atuação de alguns PMs.
“Os policiais parecem estar substituindo os autos de resistência [mortes que ocorrem durante confronto com a polÃcia] pelo desaparecimento de pessoas”, afirma Margarida Pressburger, representante brasileira na Comissão Contra a Tortura da ONU.
“O que não pode é o comandante da UPP regular os conflitos no morro como se fosse dono do lugar”, diz JaÃlson de Souza, do Observatório de Favelas. “Não queremos voltar ao perÃodo pré-UPP. Mas é preciso cuidar do treinamento desses policiais”, diz Felipe Santa Cruz, presidente da OAB-RJ.
‘Acabou no dia do aniversário dele’, conta mãe de rapaz
DO RIO
Passava de 23h do último dia 22, quando Israel Mallet, 23, saiu de casa, de moto, pela favela do Jacarezinho (zona norte).
Com um amigo, queria convidar colegas para o aniversário, na sexta. Ao passar por quatro policiais da UPP local, levou um tiro de fuzil. Morreu no hospital.
O amigo que ia na garupa, que pede para não ser identificado, conta que em nenhum momento receberam ordem para parar.
“Estava deitada. Quando corri, já tinham levado o meu menino. Agora, acabou. E no dia do aniversário”, conta Maria Aparecida de Oliveira, 42, mãe do rapaz. “Meu filho tinha carteira assinada desde 2008.”
A viúva de 16 anos, que tem tatuado no braço o nome do filho do casal, diz que o rapaz só pensava na festa.
Em nota, a assessoria das UPPs diz que houve troca de tiros entre o rapaz da moto e os policiais. A investigação contém apenas os depoimentos dos policiais da UPP.
Coronel diz que vai rever práticas e trocar comando
DO RIO
Coordenador das UPPs (Unidades de PolÃcia Pacificadora) há 24 dias, o coronel Frederico Caldas disse que pretende rever algumas práticas nas 33 unidades.
Ele também substituirá o comando de algumas unidades. A primeira foi a Rocinha, onde o pedreiro Amarildo de Souza desapareceu em julho.
“Assumi um programa vitorioso. Estou fazendo diagnóstico, mas vou rever algumas práticas, principalmente dos policiais mais jovens, talvez ainda contaminadas por uma cultura antiga.”
De acordo com o coronel, ele se dedicará em elaborar treinamentos para a tropa com ênfase em relações humanas, mediação de conflitos e ética.
“É preciso que o policial tenha capacidade melhor de diálogo, se distanciando de estereótipos sobre os moradores” explica. Ele reconhece que fazer isso é o desafio.
Ele aponta que no Complexo do Alemão, por exemplo, na zona norte, os moradores ainda olham com “desconfiança para os policiais”.
“Ninguém gosta de ser revistado. As pessoas se sentem ofendidas. Quando a gente aborda alguém, dependendo da forma, isso é potencializado. O policial acaba produzindo uma ocorrência”, diz.
O coronel pretende se reunir neste mês com lÃderes comunitários de todas as favelas com UPPs para melhorar o relacionamento entre moradores e policiais.
Segundo o coronel, as denúncias de agressões praticadas por policiais são apuradas, e os PMs, afastados.